Nota introdutória (Alta Linguagem),
Neste artigo, retirado do blog do teólogo e padre Giovanni Cavalcoli O.P., retrata-se de forma acessível alguns pontos com relação a dinâmica da salvação, pontos de soteriologia e demais diferenças teológicas são ressaltados entre dois teólogos católicos cujas ideias são divergentes (Luís de Molina, S.J., e St. Tomás de Aquino) e Martinho Lutero. Esta primeira parte, de três, dedica-se mais a falar sobre noções teológicas próprias de Lutero, puxando também aspectos biográficos-críticos para ressaltar algumas noções teológicas. Via de regra, esta primeira parte joga luz, em termos históricos, sob as querelas sobre a justificação, iniciadas com as divergências teológicas de Lutero com a teologia ortodoxamente católica, passando pela teologia calvinista, o jansenismo e, sobretudo e no aspecto a que esta série de três textos se dedica, nas disputas nas universidades espanholas no século XVI entre jesuítas e dominicanos, que ficaram conhecidas como "controvérsia de auxilis".
A Dinâmica da Salvação em São Tomás, Luís de Molina e Lutero [Primeira Parte (1/3)]
“é Deus quem efetua em vocês tanto o querer quanto o realizar, de acordo com a boa vontade dele”. (Filipenses 2,13)
“porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus”. (Romanos 8:14)
Por que essa tríade?
Esses três nomes de teólogos estão interligados, apesar das oposições, porque desempenharam uma função muito importante no grande debate sobre a relação entre a graça e o livre-arbítrio na questão da salvação, um debate suscitado por Lutero e que teve um desenvolvimento no final do século XVI com a famosa controvérsia De Auxiliis entre Dominicanos, sob a liderança de Domingo Bañez, e Jesuítas, liderados por Luís de Molina.
Ele havia oportunamente identificado a grave questão teológica que mais dividia os ânimos em seu século, dilacerado pelas guerras de religião, que haviam seguido à imprudente reforma luterana, apesar do remédio que o Concílio de Trento, encerrado em 1563, havia tentado opor a ela.
O Concílio não só não conseguiu conciliar os ânimos dos cristãos divididos e fazer os luteranos retornarem ao seio daquela Igreja que haviam abandonado, mas seus decretos foram duramente atacados, e um dos principais pontos de discórdia girava em torno da resposta que o Concílio havia dado à instância moral fundamental da reforma luterana: o papel primário da graça na vida do cristão.
A mensagem luterana havia sido de fato resumida em três palavras de ordem intransigentes, peremptórias e altamente sugestivas, que pareciam expressar uma necessidade absoluta de pureza e espiritualidade: sola Scriptura, sola fides, sola gratia, quase um forte apelo para concentrar a atenção somente em Deus, no unum necessarium, deixando de lado tudo o que não se refere a Ele.
Assim, acima de tudo, apenas a Palavra de Deus, Verdade absoluta e salvífica, livre dos entraves das tradições humanas; somente a fé, luz indefectível, força invencível, livre dos sofismas e das mesquinhas pretensões de uma razão arrogante e soberba; somente a graça, dom incomensurável, consolador e gratuito da misericórdia, senhora incontrastada, fonte de humildade e liberdade—«livres sob a graça», como diz a Regra de Santo Agostinho, guia segura do agir humano e castigadora de uma vontade altiva e autossuficiente.
Lutero começou bem
Lutero começou sua vida religiosa muito bem: zelosíssimo observante da regra, assíduo ao sacramento da Penitência, com grande capacidade organizativa, tanto que logo os Superiores lhe confiaram cargos de responsabilidade, sendo um fascinante pregador, teólogo erudito e bem preparado, zeloso pela reforma da Igreja, que realmente precisava dela, pois o espírito do paganismo renascentista, que alguns anos antes havia sufocado a vida santa de Savonarola, havia penetrado inclusive no papado, enquanto a pureza do Evangelho e a sede de Deus desapareciam sob uma montanha de interesses terrenos mascarados de religiosidade. Era o triunfo do farisaísmo e da hipocrisia.
A pregação e o exemplo do jovem ardente monge agostiniano logo atraíram a admiração e as esperanças de muitas almas piedosas e sinceramente desejosas de uma Igreja e de um papado conforme ao Evangelho, sedentas de santidade e não de riquezas, de luxo e de poder.
Enquanto jovem monge, Lutero escreveu uma carta comovente e extremamente respeitosa ao Papa Leão, invocando a reforma e declarando submeter-se totalmente às suas decisões. Assim se explica o juízo do Papa Francisco sobre Lutero, quando em uma entrevista em um voo, disse que Lutero «tinha intenções retas, não queria dividir a Igreja e ofereceu um remédio»: referia-se a seu começo.
Lutero poderia ter se tornado outro Santo Agostinho. Não concordo com aqueles que afirmam que ele não recebeu uma verdadeira vocação religiosa, muito pelo contrário. Ele sentiu de repente, como São Paulo, que sempre foi seu modelo, um chamado absoluto e peremptório para total entrega a Deus. Como Agostinho, sentiu poderosamente a necessidade de Deus como o unum necessarium.
Por isso, São João Paulo II disse que Lutero foi uma «alma profundamente religiosa». Não há dúvida de que ele, mesmo como herege, fez de sua vida um constante giro em torno de Deus, embora, infelizmente, permitindo a interferência de seu próprio eu. E isso foi sua ruína. Mas o sola fides, sola gratia e sola Scriptura derivam da fulgura de um chamado divino, do qual o famoso raio foi quase um símbolo aterrador, mas iluminador.
Concordo com Villoslada[i] ao considerar que a vocação religiosa de Lutero foi uma verdadeira vocação, que lhe apareceu com total clareza no episódio do raio aos 22 anos de idade, mas que já havia maturado anteriormente. O motivo que ele várias vezes apresentou para sua escolha religiosa foi um motivo exclusivamente sobrenatural: a necessidade de salvar sua alma e obter a misericórdia de Deus; mola da espiritualidade luterana, de sabor agostiniano, que o acompanhará por toda a vida, mesmo após abandonar a vida religiosa e caducar na heresia.
Concordo, portanto, com o parecer de Maritain, o qual, em seu excelente e insuperável estudo sobre Lutero, afirma que ele «saboreou as flores ocultas da graça de Cristo; entrou no jardim espiritual da Igreja»[ii], mas, infelizmente, esse ímpeto místico foi logo bloqueado pela angústia dos escrúpulos e pelo assalto da concupiscência, de modo que o eu, no terror de perder o Deus-para-mim, voltou-se para si mesmo, mas ao mesmo tempo direcionou-se a Deus em um dilacerante dualismo, entre eu e Deus. Daí o vão remédio de uma rendição à concupiscência e uma ansiosa avidez pela graça de Deus. Lutero aspira ao amor Dei [amor de Deus] junto com o amor sui [amor próprio].
A sede de Deus precisa habitar na alma de Lutero e confrontar-se com seu eu invasivo, ainda que este se preocupe com a graça de Deus. Simultaneamente, cresce o interesse pelo eu e diminui o por Deus. O Deus-em-Si torna-se o Deus-para-mim. Não mais a própria alma feita para Deus, mas o próprio eu, escravo da concupiscência e, ainda assim, livre pela graça, torna-se, de agora em diante, o centro da atenção e das ocupações de Lutero. Pecca fortiter et crede firmius.
Mas como foi possível que tudo isso acontecesse? O que ocorreu? Como essas altas aspirações, esse nobre programa, esse ímpeto espiritual, em certo momento, corromperam-se e se reverteram em seu contrário? O que se deu na alma de Lutero?
É necessário lembrar que, em Lutero, o sincero propósito inicial de uma reforma religiosa se combina com a questão angustiante de sua salvação pessoal, de modo que, em certo ponto, Lutero, falsamente pacificado na famosa «experiência da torre» (Turmerlebinis) de 1514, fixou-se tão totalmente na ideia de estar salvo que, quando o Papa Leão condenou essa fixação na Bula Exsurge Domine e o excomungou, concebeu contra ele um ódio tão furioso e implacável que nada e ninguém foi capaz de acalmá-lo, e talvez, com o tempo, esse ódio tenha até aumentado.
Do ponto de vista de Lutero, pode-se, de certo modo, entender, ainda que objetivamente não se possa justificar: seria como se alguém tentasse arrancar de nós aquilo que é nossa própria razão de vida, o que nos conduz à beatitude e nos salva do desespero e da condenação. O que faríamos? Não lutaríamos com todas as nossas forças? Foi por isso que o Papa Leão começou a parecer para Lutero o anticristo e o diabo em pessoal.
Assim, também se explica a veemência com que Lutero iniciou e deu prosseguimento, durante todos os anos que lhe restaram, a demolição daquela Igreja e daquela doutrina, das instituições e tradições eclesiais das quais o Papa Leão X era o supremo guardião, até o ponto de se opor, para além da pessoa de Leão, à própria instituição do papado. Entende-se, então, a frase amarga e desconcertada do Cardeal Caetano após o encontro com Lutero: «isto quer dizer fundar uma outra Igreja!»[iii]. E de fato é evidente que Lutero, ao idealizar uma Igreja sem o Papa, concebia uma Igreja que já não é aquela fundada por Cristo, embora estivesse mais convencido do que nunca, em sua rebeldia, de que ele, contra o Papa, havia redescoberto a verdadeira Igreja de Cristo.
Nessa obra destrutiva, Lutero preservou a Escritura, mas com tamanha contradição! De quem ele de fato a havia recebido, se não da Igreja? E como a Escritura pode viver se não na Igreja? E quem registrou o Evangelho, se não os Evangelistas? E de que coisa nasce a Escritura, se não da Tradição? É verdade que a Escritura está acima do dogma, mas não é possível interpretá-la corretamente senão através do dogma. O sola Scriptura é a destruição da Escritura.
Por que, então, essa mudança tão repentina e radical? A certeza de salvar-se pela fé havia se tornado o sustento de sua vida, a consolação contra seus terrores, a paz na luxúria. A essa certeza espasmódica ele se agarrava com unhas e dentes, convencido de que, sem ela, não se salvaria. Por isso, interpretou a condenação papal como uma negação do valor de sua esperança, como um obstáculo à sua salvação. Sentiu-se roubado de seu tesouro mais precioso: a certeza de salvar-se pela fé e aquilo que lhe parecia ser a experiência da graça, o Deus-com-ele.
O desfecho fatal
Assim, Lutero foi envolvido por essa reviravolta espiritual interior, que o arrastou a um estado de falsa euforia e exaltação, levando-o a corromper aquelas três palavras de ordem, de modo que aquilo que poderia ter sido uma reforma tornou-se uma deformação.
Aí temos então a Escritura contra a Tradição, a fé contra a razão, a graça contra o livre-arbítrio. Daqui provém o confronto entre católicos e luteranos. Enquanto no catolicismo o humano se harmoniza com o divino, o livre-arbítrio com a graça, no luteranismo ocorre um conflito: o divino afirma-se contra o humano, de modo que o humano, para afirmar-se, se opõe ao divino. Assim, a razão se levanta contra a fé, a natureza contra a graça, a filosofia contra a religião, a história contra o dogma, o homem contra Deus.
Impressionante, a esse respeito, foi a reversão radical de seu juízo sobre os votos religiosos, decididamente escolhidos a princípio como meios de liberdade espiritual e, após a Turmerlebnis, igualmente decididamente rejeitados como obstáculo à liberdade. A força da concupiscência, que antes a Lutero parecia uma escravidão da qual se busca liberdade, agora lhe parecia uma lei da natureza a qual era preciso obedecer. Da angústia pela própria salvação, Lutero passou, depois da Turmerlebnis, à certeza absoluta de sua salvação.
Enquanto isso, a preocupação com a própria salvação não desaparece. Surge em Lutero o terror de não estar em graça de Deus e, como reação, uma necessidade espasmódica de ter a certeza absoluta de estar em graça. Não lhe bastava, de modo algum, o recurso tradicional e comprovado de contentar-se com a probabilidade sugerida por certas passagens da Escritura. Ele queria a certeza absoluta, queria a experiência, que parecia ser garantida em outras passagens.
De fato, a Sagrada Escritura, sobre esse ponto, parece ter duas séries de textos contrapostos: em alguns parece afirmar que não sabemos com certeza se estamos ou não em graça;[iv] outros textos, no entanto, parecem admitir que podemos ter a experiência de estar em graça.[v] A primeira serve para cultivar o temor de Deus; a segunda, a confiança. Ora, a paz e a perfeição espiritual são dadas pela sábia combinação desses dois fatores aparentemente contrastantes, mas que são, na realidade, reciprocamente complementares. O temor faz evitar o pecado, a confiança proporciona o impulso do amor.
Ora, é preciso observar que, certamente, cuidar da própria salvação e fazer de tudo para estar em graça com a observância de seus deveres é, sim, o maior dever do cristão e, por consequência, de se estar em graça. Afinal, que pode o cristão desejar acima de tudo, senão estar em graça, sem a qual ele é perdido? Mas pode ele saber que está em graça? Pode experimentar isso como algo à sua disposição?
Maritain, portanto, corretamente desaprova esse desejo desmedido de Lutero de ter a certeza ou de sentir que está em graça. De fato, tal desejo é demasiado pretensioso, pois, para saber com certeza absoluta, por experiência ou intuição, se estamos em graça, seria necessário que nos puséssemos no ponto de vista divino, que tivéssemos, por assim dizer, o mesmo olhar de Deus sobre nós, que estivéssemos na mente de Deus, considerando-nos a partir das decisões divinas, coisa evidentemente impossível para nós.
Podemos, ao contrário, como já ensinava S. Tomás[vi], ter sinais conjecturais do nosso estado de graça, dados pelo nosso gosto pelas coisas divinas[vii] e pelo sentimento de sentir-se em paz na consciência. Mas o ponto é que Lutero, assaltado pelos escrúpulos, nunca se sentia em paz e exagerava, até uma insuportável angústia, à suspeita, para não dizer a convicção, de que, sob sua sensação de inocência, sempre se ocultava a hipocrisia e um «sutilíssimo orgulho oculto », como ele mesmo disse.
Assim, em 1515, ocorre a virada dramática e exaltante, aparentemente libertadora, que transparecia em suas lições sobre São Paulo, infestadas de ataques ao Magistério e à teologia escolástica. O que havia acontecido? Que por volta dos anos 1513-14, Lutero começou a ser atacado pelos escrúpulos. Ele não soube reagir da maneira correta e se deixou vencer pela tentação. A 'Turmerlebnis' de 1514 o levou a passar do desespero para a arrogância e a presunção. E a partir daí, seguiu-se todo o resto.
Lutero era um espírito fortemente intuitivo e isso certamente o sustentava em sua vida intelectual e moral; mas que, não obstante, agravou seu drama espiritual e jogou muitos para fora do caminho, tanto por sua tumultuada emotividade, que ofuscava a clareza da visão espiritual e o proceder ordenado e correto do raciocínio, quanto pela própria linguagem com a qual expressava suas ideias, uma linguagem hiperbólica, semelhante à de S. Paulo ou do próprio Santo Agostinho.
Sabemos quais são os riscos desse modo de se expressar, típico dos retóricos ou poetas, mais do que dos teólogos e moralistas: o risco de ser mal compreendido e, ainda pior, o de cair, arrastado pelo ímpeto oratório, em verdadeiros erros de conteúdo.
Quem usa tal linguagem, para esclarecer o que pretende dizer, sobretudo ao ver-se mal compreendido ou instrumentalizado, deveria cuidar para expor o mesmo argumento de uma maneira equilibrada e comedida. Mas, infelizmente, Lutero recusava-se a dar essas explicações, de modo que suscitava a impressão em quem o ouvia ou lia, que se tornava uma certeza, de que ele não estava tratando de uma questão de linguagem, mas de conteúdo verdadeiro e próprio. E foi assim que caiu na heresia.
Molina tenta remediar
Molina, diante do dolorosíssimo espetáculo de uma Igreja dilacerada—as guerras de religião haviam cessado há pouco mais de vinte anos—sofreu profundamente com o ataque dos luteranos à Igreja; ele entendeu que o ponto crucial da questão estava justamente na relação entre a graça e livre arbítrio, onde Lutero havia fracassado miseravelmente e tentou, de forma generosa, remediar este conflito provocado por Lutero com sua famosa obra de 1588, De concordia liberi arbitrii cum divinae gratiae donis. Mas a primeira grande obra teológica produzida pela jovem Companhia de Jesus talvez tenha dado um passo maior que a perna, e, talvez confiando excessivamente no prestígio que obteram e no favor dos Papas, tenham se posicionado de forma inoportunamente competitiva com a Ordem Dominicana. Comecemos, contudo, pelos pontos em comum entre Tomás, Molina e Lutero.
Pontos em comum entre os três em relação à doutrina
Tanto Tomás quanto Molina e Lutero admitem a Sagrada Escritura como revelação divina, caminho de salvação eterna e regra absoluta das verdades a serem cridas, transmitidas pela tradição apostólica sob inspiração do Espírito Santo. Todos os três reconhecem o Credo Niceno-Constantinopolitano contendo os dogmas do Mistério Trinitário e da Encarnação redentora do Verbo.
Tomás e Molina afirmam a infalibilidade da doutrina dos Concílios e dos Papas até o fim do mundo. Já Lutero acredita que, com a Idade Média, o Magistério da Igreja perdeu a infalibilidade e foi adulterado por falsos dogmas e tradições meramente humanas. Segundo ele, resta apenas a Escritura como regra da verdade de fé.
Segundo Lutero, a tradição eclesial deve ser purificada dos elementos humanos adicionados na Idade Média e retornada à pureza das origens. Essa é a reforma que ele propõe: recuperar o Evangelho, os dogmas, a tradição e os sacramentos em sua pureza original.
O papado, como poder infalível para interpretar a Escritura, esgotara sua função. Como já haviam predito Joaquim de Fiore, John Wycliff e Jan Hus, a Igreja superou a era do Filho, representada pela hierarquia, e entrou na era do Espírito, em que «todo cristão inspirado pelo Espírito ouve diretamente Cristo no Evangelho e—diz Lutero—é Papa».
O sacerdócio reservado a alguns chegou ao fim, pois todo cristão é sacerdote. Não é mais necessária uma mediação sacramental para interpretar a Escritura (sola Scriptura), mas todo cristão inspirado pelo Espírito é capaz de interpretar a Escritura, eventualmente com o auxílio do exegeta bíblico. A comunidade cristã é dirigida pelo pastor eleito pelos fiéis.
Para Tomás, Molina e Lutero, a salvação consiste certamente na libertação do pecado por meio da fé em Cristo recebida no Batismo, e o objetivo final da salvação é, além da libertação do pecado, a liberdade e a glória celeste dos filhos de Deus. Para Tomás, Molina e Lutero, seremos totalmente livres do pecado e completamente salvos apenas no paraíso.
Tanto para Tomás quanto para Molina e Lutero, a iniciativa da obra da salvação é de Deus. A justificação começa com o dom da graça. É a graça que provoca no homem o cumprimento das boas obras. Por isso, as boas obras realizadas sem a graça não têm valor para a salvação. Mas, a partir deste ponto, as posições divergem: para Tomás, Deus move o livre arbítrio a acolher a graça; para Molina, Deus oferece a graça, mas a concede efetivamente apenas se o homem aceita a oferta; para Lutero, Deus concede a graça ao pecador, que permanece pecador, mas justificado pela justiça de Cristo, que lhe é imputada.
Tomás, Molina e Lutero concordam em confessar que a salvação é puro dom da misericórdia divina. Todavia, enquanto Tomás e Molina sustentam que não somos apenas salvos, mas simultaneamente nos salvamos, de modo que nossos próprios méritos sobrenaturais são dom da misericórdia de Deus, e o paraíso é não apenas gratuito mas também merecido, ou seja, objeto de nossa conquista ou aquisição, Lutero sustenta que somos pura e simplesmente salvos, que nossos méritos não têm valor algum e que o paraíso não é de modo algum objeto de conquista, mas puro dom da graça.
Todos os três concordam em sustentar que a salvação é gratuita. Mas enquanto para Tomás e Molina o livre arbítrio precisa colaborar com a graça, para Lutero a salvação depende somente da graça, pois o livre arbítrio está extinto. Para todos os três, não é o homem que salva a si mesmo com suas obras ou méritos, mas é Deus quem salva o homem, fazendo-o operar o bem.
Tanto para Tomás quanto para Molina e Lutero, o sacrifício expiatório e redentor de Cristo e Sua satisfação vicária são mais do que suficientes para obter o perdão do Pai e a salvação, sendo que, enquanto para Tomás e Molina é necessário que participemos deste sacrifício divino infinitamente meritório com nossos sacrifícios, que também são meritórios, embora apenas de forma congruente e não digna como o de Cristo, e sobretudo com o sacrifício eucarístico; para Lutero, exigir que também realizemos sacrifícios expiatórios é pretender adicionar algo à obra de Cristo, já perfeita em si mesma. A Lutero escapa o conceito de participação. É necessário esclarecer que se unir ao sacrifício de Cristo não significa aperfeiçoá-lo, mas apenas participar, pela graça, de sua potência salvífica e imitá-lo.
Pontos em comum em relação ao testemunho cristão
Todos os três estavam convencidos de que deveriam viver segundo o Evangelho, o amor a Deus e o amor ao próximo. Aceitavam a oração cristã e a vida da comunidade cristã, com o dever de anunciar o Evangelho e de dar testemunho, de viver em Cristo e de testemunhá-lo com o exemplo.
Lutero, como se sabe, ao contrário dos outros dois, aceitava apenas a Escritura (sola Scriptura) e não a Tradição como fonte da Revelação. Aboliu todos os sacramentos, exceto o Batismo e a memória da Ceia. Concebeu a fé como certeza da própria salvação unida à caridade, com base na promessa de Cristo (sola fides). Concebeu a salvação como puro dom gratuito de Deus, sem a necessidade de obras e méritos (sola gratia). Concebia a justificação como dom da graça divina acompanhado pela declaração divina de justiça, não pela libertação intrínseca do pecador, que permanece pecador, mas pela imputação divina da justiça de Cristo ao pecador.
Todos os três foram extremamente ativos em sua atividade teológica, em seu magistério, no comentário das Escrituras, na difusão do Evangelho, no combate aos erros, na promoção e organização da vida cristã, na busca de Deus e da salvação para si e para os outros.
FIM DA PRIMEIRA PARTE
Notas
[i] Ricardo Garcίa-Villoslada, Martin Lutero. Il frate assetato di Dio, Istituto Propaganda Libraria, Milão 1985, vol. I, pp. 129-131.
[ii] Cf J. Maritain, Tre Riformatori, Morcelliana 1964, p. 46.
[iii] Cf J. Lortz-E. Iserloh, Storia della Riforma, Il Mulino, Bolonha 1990, p. 54.
[iv] Cf Ec 9:1; Eclo 5:5; 1 Cor 4:4; Pr 25:3; Jó 9:21; Sl 18:3; Fl 2:12.
[v] Sl 34:9; 63:4; 90:14; 119:76; 143:8.
[vi] Sum. Theol., I-II, q.112, a.5. O Concílio de Trento confirmou a tese tomista, observando que «qualquer um, ao considerar a si mesmo e sua fragilidade e indisposição, pode recear e temer, dado que ninguém pode saber com certeza de fé, na qual não pode haver falsidade, se alcançou a graça de Deus» (Denz.1534). Cf R. Garrigou-Lagrange, De Gratia. Commentarius in Summam Theologicam S. Thomae I-II, qq. 109-114, Edizioni LICE-R.Berruti&C., Torino 1946, pp. 252-258.
[vii] Ibid., II-II, q.97, a.2, 2m.