"A Dinâmica da Salvação em São Tomás, Luís de Molina e Lutero [PARTE 2/3]", por Giovanni Cavalcoli

"A Dinâmica da Salvação em São Tomás, Luís de Molina e Lutero [PARTE 2/3]", por Giovanni Cavalcoli

Nota introdutória (Alta Linguagem),

Nesta continuação do texto de mesmo título, o sacerdote e teólogo dominicano busca examinar melhor as posições sobre a relação entre livre-arbítrio e graça segundo as noções de S. Tomás de Aquino, Luís de Molina S.J. e o reformador Martinho Lutero. Naturalmente, o dominicano tomará o partido de S. Tomás e seu defensor contra Molina, Domingo Báñez O.P., contra as posições de Molina e Lutero. Ademais, o teólogo faz afirmações interessantes e desconcertantes a alguns para uma leitura católica da persona histórica e religiosa de Lutero, escandaloso a alguns é talvez a curiosa implicação de uma doutrina de Dupla Predestinação em Lutero--coisa que não está de acordo com a doutrina oficial do luteranismo mas que, por sinal, pode ser encontrada em determinadas posições individuais do teólogo. Obviamente, em virtude da ausência de sistematização e do caráter igualmente antissistemático de Lutero, é fácil supor que ele não tenha procedido em defender tal doutrina durante toda a vida--já que encontra contradição em outros escritos seus--, mas que, por ser traçada em um de seus principais tratados, A Escravidão da Vontade, é notável de se encontrar. Não somente isso, mas a desconsideração do reformador pela argumentação lógica pode tê-lo feito falar coisas que implicavam em posições indesejáveis a ele mesmo--por isso a posição, prudente até certo ponto, das igrejas luteranas e da ortodoxia luterana em apelar ao mistério divino na relação entre graça e livre-arbítrio (ver nota 3).

 

A Dinâmica da Salvação em São Tomás, Luís de Molina e Lutero (2/3)

Lutero se lança no turbilhão da ação

De fato, em relação a Lutero, pode-se perguntar o que o levou a operar tão intensamente, com tanta energia por toda a vida, em meio a tantas batalhas e sofrimentos, com tanta renúncia e sacrifício, suportando inúmeros inimigos, com tanta decisão e determinação, gastando todas as suas forças, se é verdade, como ele mesmo diz, que a razão está corrompida, então o livre-arbítrio não existe, a penitência é inútil, os mandamentos não são obrigatórios, a concupiscência é invencível e as obras e os esforços não contribuem para a salvação, pois não temos mérito algum a adquirir e tudo é feito pela graça.

Na realidade, Lutero estava muito consciente da existência do livre-arbítrio nele e no próximo, e sabia usá-lo à vontade. Estava muitíssimo bem ciente que fazia escolhas continuamente. Lutero era, por excelência, homem de ação. E de que depende a ação humana senão do livre-arbítrio?

Essa consciêncioa de possuir uma vontade livre transparece muito bem em sua conduta concreta, nas ações que realiza. Na verdade, a ética luterana, apesar do aparente quietismo da pura e passiva submissão à graça (sola gratia), é, em essência, freneticamente voluntarista, como a de Ockham. Lutero era tão ativo porque se considerava impulsionado pelo Espírito Santo. Mas sabia muito bem que quem empregava suas decisões era ele, pois, quando alguém lhe apontava que o Papa também possuía o Espírito Santo, ele respondia com blasfêmias. Portanto, é de se duvidar que Lutero realmente fosse guiado pelo Espírito Santo e suspeita-se que o Espírito Santo fosse um pretexto para justificar e validar suas decisões inflexíveis.

Essa consciência de ser senhor de suas próprias ações é vista, antes de tudo, em sua vontade de reformar a Igreja, em suas contínuas decisões, muitas vezes sofridas, em resolver dúvidas ou problemas, em ensinar, exortar ou comandar os outros, em aprovar ou condenar, em elogiar ou desaprovar ideias ou condutas do próximo, em recompensá-lo ou ameaçá-lo, em proibir, dar normas ou fazer propostas, nas medidas que toma em várias situações, no modo como lida com dificuldades, nas astúcias que usa para derrotar os adversários e conseguir o que quer.

Será que Lutero tinha consciência de que o agir cristão é um agir livre sob o impulso da graça do Espírito Santo, como o eram Tomás e Molina? Não se diria. De fato, enquanto Tomás e Molina não têm problema em afirmar o livre-arbítrio sem negar, obviamente, o movimento do Espírito Santo, a negação do livre-arbítrio em Lutero não significa apenas uma visão demasiadamente pessimista da situação da vontade em decorrência do pecado original; significa também que, para ele, a ação do homem que age sob o impulso da graça é a mesma ação da graça que move o homem a agir, não como um instrumento livre, mas como um instrumento inerte, assim como, ao mover o mouse do meu computador, não o movo a mover-se, pois sozinho ele não se move; ele só se move se eu o mover.

Assim, para Lutero, o homem, corrompido pelo pecado original e escravizado por Satanás, é um paralítico que não sabe mais se mover, a menos que a graça o faça mover; é um prisioneiro que não consegue escapar do cárcere, a menos que Cristo o liberte. Essas ideias não estão totalmente erradas. Sabemos todos que Cristo faz os paralíticos andarem e que liberta os prisioneiros.

Uma pergunta que ainda se pode fazer é o quanto Lutero sabia distinguir vontade e paixão. A impetuosidade com que enfrentava certas empreitadas, a impulsividade de seu caráter, a ferocidade de certas de suas polêmicas, a obstinação de certos propósitos e comportamentos: seriam eles efeito do Espírito Santo ou de suas paixões descontroladas?

Deus move a vontade do homem

Para Tomás, Deus, causa primeira e motor imóvel de todas as suas criaturas, é o criador e motor dos atos do nosso livre-arbítrio, que é uma causa causada, ou seja, uma causa segunda. Isso implica que a vontade é dona de seus próprios atos (compos sui), decide por seus atos, move a si mesma para seus atos, quer ou não quer, quer isto ou quer aquilo, e por isso seus atos são livres e causados por ela mesma. É por isso que ela é responsável.

Note-se, entretanto: compos sui não significa causa sui. O livre-arbítrio move a si mesmo, assim como todo ser vivo, já que a vida é caracterizada precisamente pela automoção ou ação imanente, diferindo da energia física ou cósmica que, emanando de determinísticamente de um agente material, é toda projetada fora do princípio agente, seja fora de um princípio ativo interno ao agente, seja fora do próprio agente. Esta é a chamada ação transitiva.

Absurda, no entanto, é a ideia de que o sujeito possa criar ou «colocar» (setzen) a si mesmo, como diz Fichte,  isto é, o próprio ser, ideia já sugerida pelo cogito cartesiano. De fato, o efeito (o próprio eu) de uma causa (o próprio eu) não pode ser simultaneamente anterior e posterior à causa: anterior para causar o efeito e posterior como efeito da causa.

Tomás também distingue o modo livre do modo necessário, necessitado ou determinístico de agir. O primeiro é o da vontade e do livre-arbítrio; o segundo é o dos agentes inferiores. Deus causa a ação das criaturas de acordo com o modo de causação dessas mesmas criaturas, fazendo com que a vontade cause livremente e o agente infra-humano cause necessariamente.

Molina, todavia, não consegue conceber uma causalidade que não seja determinística ou necessitante, como é a causalidade a dos agentes mecânicos e infra-humanos. Ele sabe que a vontade humana move a si mesma, mas não consegue entender que essa mesma moção é movida por Deus. Trata-se daquilo que Báñez chamou de «premoção física»: Deus move a vontade para mover a si mesma, de modo que passe do pecado à justiça. Para Lutero, na justificação, a vontade passa do pecado à justiça, mas essa justiça lhe é apenas imputada, pois, em si mesma, ela não é senão a justiça de Cristo.

Para São Tomás, no entanto, a vontade humana move a si mesma e é livre precisamente porque é movida por Deus. Para Molina, a vontade move a si mesma, mas, se fosse movida por Deus, não seria livre. Para Lutero, o livre-arbítrio é serve para os assuntos deste mundo, mas não para obter a salvação. O único ato do livre-arbítrio admitido por Lutero neste campo é a escolha de Cristo («agarrar-se a Cristo») como Salvador.

A Intervenção de Domingo Bañez

Tomás diz claramente que a graça move o livre-arbítrio na aceitação da graça e na realização do bem meritório da salvação.[1] O Padre Bañez, na disputa De Auxiliis, sustentou exatamente essa tese tomista, perfeitamente alinhada com a doutrina paulina (Fl 2:13), só que usou para essa moção divina uma expressão infeliz e grosseira de sua própria invenção: premoção física, que parecia feita sob medida para interpretar erroneamente o pensamento do Aquinate.

O termo premoção poderia até ser adequado, pois Deus realmente move o livre-arbítrio para mover-se; assim, existem duas moções: a moção divina (causa primeira) e a automoção do livre-arbítrio (causa segunda). A expressão infeliz era o termo «física», que fazia pensar no modo de causalidade mecanicista, necessitante ou determinista, própria dos fenômenos físicos ou naturais, que nada tem a ver com o tipo de causalidade espiritual envolvida na dinâmica da salvação, a qual é uma dinâmica espiritual, não física.

Mas o que Bañez pretendia expressar com essa infeliz palavra? Ele queria se opor à tese de Molina, que concebia o conferimento da graça (gratia collata) não no sentido de uma moção ou causalidade divina, portanto, ontológica, em que o Ser move ou causa o ser, mas como se fosse uma causalidade simplesmente moral, no modelo do Presidente da República, que concede o título de Cavaliere del Lavoro a um bem merecedor chefe de empresa. Bañez queria apenas impedir a perigosa inclinação antropocêntrica na qual Molina estava se colocando, com uma interpretação grosseira da dinâmica da Aliança e das parábolas evangélicas sobre a relação operador-empregador da obra [operaio-datore di lavoro].

Como em Tomás não ocorre a expressão «premoção física», Molina distinguiu o tomismo do bañezismo, como se Bañez não fosse fiel a São Tomás, para assim poder evitar a interpretação estritamente tomista de Bañez, que, no entanto, acabou prejudicando a si próprio com sua premoção «física».

Por outro lado, Molina teve facilidade em acusar Bañez de mecanicismo e determinismo, à maneira de Lutero, anulando a liberdade do querer. Bastava que Bañez tivesse falado de premoção espiritual ou ontológica para evitar o equívoco provocado pelo termo «física».

A Função da Graça

Para Tomás e Molina, a graça é uma qualidade e um acidente da alma, destrutível pelo pecado mortal. Para Lutero, no entanto, a graça não é uma qualidade inerente à alma, mas a própria justiça «externa» (extra nos), é a própria justiça de Cristo imputada ao homem com base na fé confiante [fiduciale], de modo que, se há essa fé, a graça é dada não obstante o pecado. Talvez Lutero, com essa justiça externa, pretendesse referir-se à justiça sobrenatural, distinta da justiça meramente humana e natural.

Contudo, permanece o fato de que Lutero não aceitava, como lhe fez notar o Concílio de Trento, que essa justiça é inerente à alma, sem ser, por isso, uma justiça humana. É preciso afirmar enfaticamente que a alma passa a possuir uma justiça que não pertence à natureza humana, mas que é participação da natureza divina.

Lutero não soube utilizar este conceito de participação, que é essencial à doutrina da graça (cf. II Pe 1:4). Assim, a graça passa a pertencer ao homem, sem com isso pertencer à natureza humana. Lutero, no entanto, devido à sua formação occamista, tendia a reduzir o abstrato ao concreto. Como a graça não é uma qualidade essencial da natureza humana, ele nega que ela possa pertencer a este homem concreto. Vê-se a preocupação em salvar a sobrenaturalidade e a gratuidade da graça, mas expressa em uma conceituação equívoca, que acaba por separar o homem da graça, deixando-o no pecado.

A Justificação

Para Tomás e para Molina, a justificação consiste no fato de que Deus nos torna justos, de forma que, participando da justiça de Cristo, adquirimos uma justiça nossa. Para Lutero, entretanto, a justificação consiste no fato de que, embora permaneçamos pecadores, Deus nos imputa a justiça de Cristo. Assim, na vida presente, a graça não elimina o pecado, mas o encobre e o torna inócuo. Somente no paraíso ele será completamente removido.

É verdadeiríssimo que a «justiça» de Deus, da qual Paulo fala em Rm 3:21, é a misericórdia de Deus, pela qual «somos justificados gratuitamente por sua graça» (v.24), «independentemente das obras da lei» (v.28). Mas o que isso quer dizer? Paulo explica alguns versículos abaixo: «Então, anulamos a lei pela fé? De modo nenhum! Pelo contrário, confirmamos a lei» (v.31).

Paulo quer excluir a ideia de que a justificação é obtida apenas pela simples obediência à lei mosaica, e não pela prática da lei obtida pela fé e pela graça de Cristo. Lutero compreendeu isso, assim como Tomás e Molina. O que Lutero não compreendeu, e que o levou a negar o mérito, é que o conceito de justiça como unicuique suum [a cada um aquilo que lhe é devido] é substituído pela misericórdia somente aqui; de modo que permanece a distinção entre a justiça que retribui o mérito e a misericórdia que concede graça. E ambas atuam juntas na obra da salvação.

Para Lutero, contudo, a justificação é incondicional, porque na vida presente, devido à corrupção da natureza humana, é impossível observar os mandamentos, de modo que sua observância não é necessária para a salvação. Ao contrário, a salvação ocorre por sermos salvos. Para Lutero, as boas obras são apenas um efeito da graça e não merecem o paraíso, a entrada no qual é completamente gratuita.

Assim, para Lutero, não existe uma verdadeira e própria esperança de salvação como fato futuro, mas o homem, crendo na promessa infalível de Cristo de que o salvará, já que Cristo mantém a promessa, sente-se salvo já agora, sem qualquer temor de se perder, quaisquer sejam os pecados que possa vir a cometer. Pecca fortiter et crede firmius (que será salvo). Daí vem essa segurança absoluta, tipicamente luterana, de estar em graça e de ter Deus consigo. O luterano não espera salvar-se, mas já sabe agora que foi salvo.

Além disso, Lutero erra ao considerar a justificação o artigo de fé que «governa e julga todos os outros aspectos da doutrina cristã».[2] Na verdade, o vértice da doutrina cristã não é a justificação, mas o mistério trinitário, objeto da visão beatífica celeste, que é o escopo últimio da justificação. É à luz do mistério trinitário que podemos avaliar a importância da justificação como passagem da miséria do pecado para a vida de graça como filhos do Pai, vivendo em Cristo e movidos pelo Espírito Santo.

A Decisão Fundamental

Tanto Tomás quanto Molina e Lutero concordam em sustentar que a vida cristã e o caminho da salvação começam com a escolha por Cristo, que nos oferece a graça da salvação e a vida eterna. Essa escolha inicia-se com a decisão fundamental, que compromete toda a nossa vida e lhe dá o sentido último, o de acolher a graça que Cristo nos oferece, aquela que Molina chama de gratia oblata e Bañez de graça suficiente.

No entanto, há um fato—e todos os três reconhecem isso—: alguns aceitam a proposta ou oferta de Cristo, enquanto outros a rejeitam. A questão que surge é: por que e como ocorre essa separação? Ao responder, Lutero opõe-se a Molina e a Tomás, seguido por Bañez. Lutero fala de uma dupla predestinação: tanto a vontade do justo quanto a do ímpio são movidas por Deus; a vontade do primeiro para a salvação e a do segundo para a condenação.[3]

Em Lutero, Deus não deixa ao homem decidir aceitar ou rejeitar; quem decide é somente Deus, e o homem apenas executa a decisão divina. Assim, se Deus decide salvar um homem, por mais mau que ele seja, ele é salvo. Se decide condená-lo, por mais justo que ele seja, ele se perde. Isso significa que Deus não reconhece o valor moral das obras; que para ele seriam todas más e não há recompensa segundo os méritos, não dá a cada um o que lhe é devido, supondo que existem aqueles que agem bem e aqueles que agem mal;  para Lutero, os méritos não existem, dado que o livre-arbítrio é escravo do pecado.

Já para Bañez e Molina, Deus concede a graça pela qual o homem escolhe o bem, enquanto nega essa graça àquele que escolhe o mal. Essa graça que permite ao homem escolher o bem e efetivamente salvar-se é chamada por Bañez de graça eficaz e por Molina de gratia collata, ou seja, conferida.

Mas, a propósito dessa graça, há uma diferença entre Bañez e Molina: para Bañez, se Deus concede a graça eficaz, o efeito salvífico na vontade do homem segue infalivelmente; ou seja, Deus move infalivelmente o livre-arbítrio do homem para o ato salvífico. Se, no entanto, o homem decide por conta própria, independentemente da moção divina, então ele escolhe o mal e se condena. A posição de Bañez, portanto, na qual o homem é infalivelmente movido por Deus a realizar o bem, assemelha-se à posição luterana.

Para Molina, ao contrário, o homem decide por conta própria tanto ao alcançar a salvação quanto ao se condenar, pois para ele a característica de decidir por conta própria, não sendo movido por Deus, é o caráter essencial do livre-arbítrio. Nesse ponto, porém, Bañez, que via Molina sustentar, em essência, que cabe ao homem decidir se aceita ou não a graça, ainda que Molina falasse de graça conferida, considerava-o caminhando na linha do pelagianismo. Por outro lado, Molina, ao observar Bañez sustentar que Deus move infalivelmente a vontade humana, via nesse pensamento uma reminiscência do determinismo luterano e da negação luterana do livre-arbítrio.

A posição equilibrada entre o determinismo luterano e o liberalismo molinista foi a de Bañez, fiel seguidor de Tomás de Aquino, com sua distinção entre a graça suficiente, oferecida a todos mas livremente rejeitada por iniciativa própria e por culpa própria daqueles que se condenam; e a graça eficaz, dada por Deus apenas aos eleitos ou predestinados, ou seja, aquela graça com a qual Deus move infalivelmente o livre-arbítrio do homem para a aceitação da graça e, assim, para a salvação.

Lutero preservou a moção divina na vontade humana, mas negava o livre-arbítrio, negando ao homem a possibilidade de decidir entre o bem e o mal e, portanto, admitindo também uma moção divina para a condenação. Molina admitia o livre-arbítrio, mas exagerava em sua autonomia em detrimento da moção divina. Somente Bañez conseguia preservar a doutrina de São Paulo: «Deus suscita em vós o querer e o operar» (Fl 2:13).

A Corrupção da Razão

Para Lutero, a razão tornou-se irremediavelmente soberba após o pecado original, está imersa nas trevas e acredita ver a luz. É ambígua, sofística, enganadora, desleal e hipócrita. É a «prostituta do diabo». Ela não é má em si mesma, mas foi corrompida pelo pecado original.

Por outro lado, para Tomás e Molina, a razão, com o pecado original, não foi completamente obscurecida; ela permanece capaz de demonstrar a existência de Deus e conhece a lei natural, embora seja falível e inclinada à mentira. Contudo, o uso correto da razão ainda é necessário para adquirir a fé e alcançar a salvação.

Para Lutero, o ato de fé é absurdo e é um «escândalo» para a razão, de modo que a razão é inimiga da fé. O fato de a Palavra de Deus ser escandalosa é prova de que é por fé. Aquilo que é por fé é, por essência, contraditório. Por isso, Lutero não se preocupa em resolver as aparentes antinomias das Escrituras; pelo contrário, ele as exacerba, convencido de que assim demonstra sua credibilidade. Ele adota a ideia occamística, típica de seu voluntarismo, de que aquilo que para nós é contraditório não o é para Deus e, por tanto, torna sua a célebre frase de Tertuliano: «credo quia absurdum» (creio porque é absurdo).

A fé, segundo Lutero, não é considerada tolice pelos tolos e sabedoria pelos sábios, como ensina São Paulo (I Cor 1, 2-25); ela é sabedoria para os tolos e tolice para os sábios, a qual é necessária para se salvar. Correspondentemente, a graça não está em harmonia com o livre-arbítrio, mas o destrói, de modo que, facilmente, o luterano que se sente em estado de graça e «sente» ter Deus consigo facilmente torna-se um fanático e exaltado. É significativo o lema nazista Gott mit uns, Deus conosco.

O rancor de Lutero em relação à razão pecadora não o impede de fazer amplo uso dela em seus sermões, discursos, escritos e comentários das Escrituras. Ele acusa a teologia escolástica de sofística, mas não hesita em recorrer ao sofisma para se esquivar de impasses, para ocultar truques ou para impor suas teses.

Seu modo irascível e impetuoso de raciocinar, mesmo que drástico, eficaz e contundente, assemelha-se ao de São Paulo, com seus paradoxos, os fortes contrapontos, exageros, falta de nuances, de transições lógicas, de precisões e de ligações entre dois termos, colocando-os em contradição entre si. Basta como exemplo o raciocínio paulino: «quando sou fraco, então é que sou forte» (II Cor 12, 10).

Quando Paulo fala, na Carta aos Romanos, do homem escravo do pecado, que não consegue fazer o bem que deseja, ou quando polemiza na Carta aos Gálatas contra a lei e as obras, afirmando que a salvação é gratuita e vem da fé, não das obras, não se pode dizer que brilha pela clareza.

Além disso, para explicar o mistério da justificação, Lutero focou-se unilateral e fanaticamente apenas na doutrina de São Paulo, ignorando completamente o Cristo do Evangelho de Mateus, que enfatiza com veemência que a salvação ocorre apenas para aqueles que observam os mandamentos e que compara a prática cristã à de um trabalhador que espera sua recompensa. Esse unilateralismo é típico dos hereges, que não possuem ideias firmes, mas sim ideias fixas.

Lutero também não se atentou ao fato de que a razão, embora enfraquecida e desviada pelo pecado original, pode e deve ser corrigida e retificada mediante a disciplina e as regras fornecidas pela lógica. Devendo usar a razão de algum modo para argumentar, acaba servindo-se dela de instintiva e passionalmente, o que o leva, por consequência, a distorcer o verdadeiro sentido das verdades de fé, não podem ser expressas senão pelas modalidades da razão.

Em contraste, Tomás e Molina, como bons teólogos escolásticos, eram peritos no uso da lógica, e, por isso, estavam treinados para raciocinar corretamente mesmo no campo da teologia, onde por outro lado o raciocínio de Lutero, não guiado pelas regras da lógica, é facilmente incorreto e sofístico.

O teologar de Lutero, por outro lado, é todo encharcado de emotividade, semelhante ao estilo agostiniano. Para Lutero, o teólogo não é um especulativo, mas um crucificado. O pensamento é belo, mas Lutero o entende de forma unilateral, excluindo a teologia como ciência, a teologia sistemática ou dogmática, que utiliza a filosofia e a metafísica.

A teologia especulativa, do tipo daquela de São Tomás, que se intererroga sobre as essências e as define pelo método dedutivo-silogístico, para Lutero é perda de tempo e um vaguear nas nuvens, é ocasião para a vanglória. Ele tinha em mente o alerta paulino «scientia inflat» (I Cor 8:1) e a prática paulina da teologia como «logos tu staurù» (I Cor 1:18), que ele chama de «theologia crucis». O risco da soberba é, de fato, real, mas, para evitá-lo, não é necessário reduzir toda a teologia à homilética e pastoral; é preciso ter a humildade de curvar a própria mente às exigências da verdade, adaequatio intellectus et rei.

Ainda assim, Lutero não estava totalmente equivocado, apenas esqueceu irracionalmente o momento calmo, sereno e meditativo do teologar, ao qual tanto a sabedoria indiana quanto o melhor da sabedoria grega são sensíveis, momento bem delineado na Escritura pela figura do escriba sábio (Eclo 39:1-11).

Não há motivo para conceber o teólogo em um constante estado de tensão, numa situação perenemente dramática, sem o risco de criar uma figura artificial, anormal, agitada e gesticulante, psiquicamente sobrecarregada, um ator que pode perder a lucidez mental, ceder à paixão e ao exibicionismo, sem que isso tenha qualquer relação com os sofrimentos suportados por Cristo e sem trazer benefício algum ao próximo ou ao seu próprio equilíbrio mental.

FIM DA SEGUNDA PARTE

Pe. Giovanni Cavalcoli

Fontanellato, 28 de janeiro de 2024.

Notas

[1] Sum.Theol.,I-II, q,113, a.3, 4 e 5.

[2] WA, Opere di Lutero, H.Bolhaus, 1883, 39, I, 205.

[3] [NOTA DO EDITOR: a posição de uma “dupla predestinação” em Lutero para muitos causa escândalo na medida em que, oficialmente, tal não é doutrina oficial do luteranismo e, na verdade, é recorrente e segura a opinião de que a primeira formulação de tal opinião se encontra na teologia sistemática de Calvino. De todo modo, por mais que, no final das contas, a teologia luterana recorra ao mistério divino da salvação e da condenação e não professa necessariamente uma doutrina de dupla predestinação, em certos escritos seus—nada sistemáticos—Lutero sugere implicações lógicas que sustentam o parecer de Giovanni, como por exemplo, em seu A Escravidão da Vontade (The Bondage of the Will, trad. James I. Packer and O. R. Johnston (Grand Rapids: Revell, 1957), 80-81), Lutero diz que é “fundamentalmente necessário e salutar que os cristãos saibam que Deus não conhece de antemão nada de forma contingente, mas que Ele antevê, proposita e faz todas as coisas de acordo com Sua própria vontade imutável, eterna e infalível. Essa bomba derruba o “livre-arbítrio” e o destrói completamente. [...] Uma vez que Sua vontade não é impedida, o que é feito não senão ser feito onde, quando, como, até onde e por quem Ele antevê e deseja”.

Ora, segue-se, por uma irresistível lógica, que, se a presciência de Deus não admite contingência, então não há contingência, tudo quanto existe é necessário, se Deus antevê e proposita as coisas de acordo com Sua vontade, quer dizer que, no final, a condenação do pecador é antevista e desejada por Deus, e não só isso, como é também tornada necessária e não contingente pela presciência de Deus—nesse sentido, o conhecimento de Deus teria um impacto causal sobre o que ocorre—, isso certamente abre alas para uma predestinação ao inferno, já que não foi por livre vontade, mas por desígnio de Deus. A grande diferença disto com a doutrina de Calvino, por sinal, parece ser o fato de que, para este, a predestinação não tem relação com a presciência de Deus.

Assim também (Ibid., 80, 318, 313.) Lutero diz que “Se Ele [Deus] deseja o que Ele sabe de antemão, Sua vontade é eterna e imutável, pois Sua natureza é tal. Do que se segue, por uma lógica irresistível, que tudo o que fazemos, por mais que pareça para nós ser feito mutável e contingentemente, é, na realidade, feito necessária e imutavelmente a respeito da vontade de Deus [...] logo, de acordo com o testemunho da própria razão, não pode haver no homem qualquer ‘livre-arbítrio’ [...] sabendo que a salvação não depende do ‘livre-arbítrio’”.

Pode-se encontrar um testemunho maior ainda, o de que Deus "oculto em Majestade, nem deplora nem afasta a morte, mas trabalha a vida, e a morte, e tudo em tudo. [...] Ele deseja [a morte de um pecador] por Sua vontade inescrutável" (ibid., 170).

Tais noções remetem em muito ao que disse posteriormente Calvino, um fatalismo e uma noção de liberdade puramente compatibilista, isso encontra, de fato, alguns ecos no teólogo de Genebra, como se pode ver, por exemplo, no seguinte trecho: “declaramos que não apenas o céu, a terra e as criaturas inanimadas, mas também os planos e as intenções dos homens, são governados por Sua providência de tal forma que são levados por ela diretamente ao fim que lhes foi designado. E então? você perguntará. Nada acontece por acaso, nada por contingência? Eu respondo [...] que ‘fortuna’ e ‘acaso’ são termos pagãos, com cujo significado a mente dos piedosos não deve se ocupar” (ed. John T. McNeill, trad. Ford Lewis Battles (Philadelphia: Westminster, 1960), 1.16.4, 8) Cf. também Institutas, 1.16.6].

Ademais, tanto tal posição de Lutero quanto a de Calvino dão uma solução final, mas indesejável e questionável, para o problema do conhecimento de Deus dos futuros contingentes: simplesmente não existem futuros contingentes, tudo quanto ocorre é necessário. Para uma análise parecida com esta feita por um teólogo protestante e um contraste das posições de Lutero e Calvino com as posições de Luís de Molina S.J., e de S. Tomás de Aquino, veja Kirk R. Macgregor, Luís de Molina: The Life and Theology of the Founder of Middle Knowledge (Michigan: Zondervan, 2015), especialmente caps. 3-5.

Mais que óbvio, todavia, é ressaltar que Lutero, diferente de Calvino, não era um escritor, autor, teólogo, sistemático, mas cambaleante e experimental. Há mais de uma contradição nas obras de Lutero a respeito desse assunto e esta é uma delas. Todavia, o fato de dela se encontrar não em sermões mas em uma das principais, quiçá a principal, obra sua é alarmante o suficiente. Pouco necessário também é dizer—mas para alguns pode ser já que às vezes é necessário dizer o óbvio—que essa posição não reflete a posição dos teólogos da ortodoxia luterana, tais como Chemnitz, Gehard e outros].

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