"A dinâmica da salvação em São Tomás, Luís de Molina e Lutero"[3/3], Por Giovanni Cavalcoli

"A dinâmica da salvação em São Tomás, Luís de Molina e Lutero"[3/3], Por Giovanni Cavalcoli

Texto introdutório (Alta Linguagem),

Neste último texto da série, o dominicano Giovanni Cavalcoli toma de forma diretíssima o partido dos tomistas na disputa contra os molinistas. Como é natural de se esperar de um dominicano, a opinião minha é inversa, o dominicano é injusto com o gênio jesuíta, primor do pensamento católico e que hoje é muito melhor aproveitado até mesmo por protestantes de vertentes desde as mais históricas até as mais modernas. O maior problema ao meu ver da argumentação empregada no texto está na simples acusação da noção de livre-arbítrio tratada por Molina como sendo occamista. Isso dá ares de parecer na verdade uma simples forma de reconceitualizar o livre arbítrio para não negá-lo efetivamente, já que uma definição melhor não é apontada. A negação do conhecimento médio em Deus ao se dizer que não há distinção entre o que será o caso em determinadas circunstâncias (contrafactual, objeto do conhecimento médio) e aquilo que pode simplesmente ocorrer (potência), dá um impasse significativo à liberdade do arbítrio—isto é, à indeterminação da vontade humana, conhecida intimamente por Deus e perfeitamente controlável, mas, ainda sim, indeterminada, estocástica em um sentido análogo—, na medida em que se diria, no final, que Deus ao criar o mundo no final determina o que será em determinadas circunstâncias, inclusive ao mover a vontade humana—desse modo, não há aqui uma acusação de "luteranismo", mas parece ser dificílimo ao tomista escapar de uma acusação de determinismo (caso não apele simplesmente para ressignificar o termo “livre”) sem simplesmente apelar ao “mistério divino”, algo válido, mas que aqui é conveniente até demais. E não se pode desafiar a noção molinista de livre arbítrio simplesmente dizendo: é occamista! Isto não é uma refutação, parece mais uma fuga.

Obviamente, não se busca aqui desacreditar o dominicano, mas apenas apontar que, logicamente por se tratar de um texto de blog, de cunho pessoal e sujeito a imprecisões, a possibilidade de se discordar. A própria Concordia de Molina encontrou, de início, pouco apoio entre os sacerdotes e hierarcas da Igreja, mas tirou sua força inicial de leigos letrados, que buscam crescer na fé através de melhor compreensão da teologia do catolicismo. O texto de Giovanni, no final, é uma excelente reflexão sobre três teólogos que foram influentes na teologia católica e na teologia em geral, e com as devidas reflexões para um católico—sobretudo útil aos leigos—e para qualquer simpatizante dominicano.

A dinâmica da salvação em São Tomás, Luís de Molina e Lutero

Última parte [3/3]

A fé como princípio da salvação

Certamente, a fé, tanto para Tomás, quanto para Molina e Lutero, é acolher como verdadeiro o ensinamento de Cristo pela força da autoridade de Cristo. No entanto, enquanto para Tomás e Molina o Papa recebeu de Cristo a tarefa de interpretar infalivelmente a Palavra de Cristo, para Lutero essa Palavra, contida no Evangelho, já é clara por si mesma e não necessita de interpretação senão do exegeta bíblico.

Para Lutero, a fé não é tanto a aceitação dos dogmas, mas sim um impulso confiante do coração e de nós mesmos em totalidade em direção a Cristo, que fala, com nossa convicção de que Cristo não nos abandona, mas acolhe o pecador, arrependido ou não, na medida que o arrependimento como obra do livre-arbítrio é superado pela obra da graça.

A desgraça do homem, que o priva da salvação, não é para Lutero a desobediência aos mandamentos, mas a rejeição da fé confiante [fiduciale], isto é, a crença de que Cristo prometeu me salvar. Poderia Deus falhar em Suas promessas?

Tomás e Molina, entretanto, não admitem que Cristo nos prometa salvar-nos, mas revela o caminho dos meios para a salvação, de modo que nos salvamos somente se observarmos aos mandamentos.

Para Tomás e Molina, a fé é apenas o início da salvação: é necessário colocá-la em prática com a caridade. Para Lutero, por outro lado, a fé é suficiente para salvar-se, pois, para ele, fé e caridade são a mesma coisa. A fé reduz-se a ser o único mandamento. O intelecto é confundido com a vontade. Fazer é saber. Não se trata de pôr em prática um saber, mas de fazer emergir o saber do fazer.

Para Tomás e Molina, o momento decisivo da salvação é a caridade, que é a colocação em prática da fé. Para Lutero, no entanto, toda a virtude salvífica se resolve na fé, dita “confiante”, pois é a confiança de salvar-se de todo modo. E essa não é um puro assentimento do intelecto a uma doutrina, pois Lutero rejeita o pensamento abstrato e é todo concentrado no concreto.

A concupiscência

A concupiscência, em seu significado originário, é um forte desejo ou ânsia por objetos ou atos sensíveis intensamente prazerosos. É um impulso afetivo emotivo, difícilmente resistível, consequente do pecado original e incita pecados que aparecem sob a forma de bens extremamente atraentes ou desejáveis.

Conhecida desde sempre, aparece ainda nas Escrituras como desejo sensível, passional e desmedido por objetos, coisas, atos ou pessoas, decorrente do pecado original.[1] O Concílio de Trento (Denz.1515) alarga o significado para o desejo pecaminoso, por prazeres seja sensíveis, seja espirituais, uma tendência ou inclinação mórbida da vontade e das paixões.

Para Tomás e Molina, a concupiscência é um estímulo a pecar (fomes peccati) como consequência do pecado original. Para eles, a concupiscência torna inevitável o pecado venial. Já para Lutero, também o pecado mortal. Para Lutero, a concupiscência é irresistível e é o próprio pecado, em linha com seu pessimismo em relação ao poder da razão e do livre-arbítrio.

Tomás e Molina,  todavia, distinguem a concupiscência do pecado. A concupiscência é uma tendência permanente; o pecado é um ato intermitente, substituível por um ato bom em graça. Já Lutero a identifica com o pecado. E, como ela perdura por toda a vida presente, para Lutero, nós estamos sempre em estado de pecado e cada ação é, para ele, pecado mortal, frequentemente oculto sob as aparências do bem, pecado que, porém, pela força da fé na misericórdia de Deus, é perdoado, não no sentido de apagado, mas no sentido de que é encoberto pela graça mediante a fé. Deus desvia o olhar do pecado e olha para a justiça de Cristo.

A concupiscência, para Tomás, Molina e Lutero, pode e deve gradualmente diminuir sua força à medida que progredimos na vida cristã, até chegar ao fim completamente no paraíso. Para esse fim, Tomás e Molina consideram úteis os exercícios ascéticos; para Lutero, porém, eles são inúteis e até danosos, pois criam sentimentos de culpa desnecessários. Lutero não distingue o pecado de fragilidade do pecado voluntário. Essa confusão leva à escrupulosidade. Lutero acreditou libertar-se disso com uma solução laxista, que mantém a confusão, só que, ao invés de antes a fragilidade ser culpabilizada, agora a culpa se torna fragilidade.

O pecado, por outro lado, é um ato mau causado pela má vontade. Tomás e Molina tinham plena consciência de que, se a vontade, reconhecendo a culpa, arrepende-se e muda a direção do mal para o bem, pode, sob o impulso da graça, repudiar o pecado, tornar-se boa e cumprir um ato bom, tornando a viver em graça. Enquanto a concupiscência está sempre ativa, os atos bons podem alternar-se com os pecados.

Lutero, ao contrário, identifica o pecado com a concupiscência. E por isso fala do pecado não como ato que ora existe, ora é apagado pela graça, mas fala de pecado permanente (peccatum permanens), evidenciando que o confunde com a concupiscência. E, por isso, acredita que toda ação do livre-arbítrio seja pecado.

Enquanto Tomás e Molina viveram serenamente o voto de castidade, Lutero, desde os primeiros anos de vida religiosa, começou, além de ser atormentado por escrúpulos, a sofrer fortíssimas tentações contra a castidade, de forma que, ao descobrir sua fragilidade, provou uma enorme angústia, a qual se associou de modo dramático e espiritualmente devastadora à doença dos escrúpulos.

Ele tinha sempre diante de si a imagem de um Deus irado, que o levava a desesperar-se pela salvação e sentia terríveis sensos de culpa, para os quais não sabia encontrar alívio, pois nem mesmo na confissão encontrava consolo. Ao mesmo tempo, formou a ideia de que a concupiscência era invencível. Foi assim que, em certo ponto, depois de ter feito o voto de castidade com plena convicção, ao se convencer da ideia de não poder observá-lo, começou a odiá-lo com todas as suas forças, e essa foi a estrada que o conduziu a abandonar a vida religiosa, como é documentado na famosa obra de Denifle.[2]

As aprovações e os repreensões da consciência

Para Lutero, não devemos levar em conta as acusações da consciência, para não sermos inutilmente escrupulosos, assim como a sensação de ter a consciência tranquila é sempre ilusória, pois surge do orgulho. As acusações e aprovações da consciência em relação às nossas obras, para Lutero, não servem para nos corrigir ou melhorar, mas geram somente desespero ou uma vã autocomplacência: o essencial para salvar-se é acreditar que Cristo nos ama, morreu por nós e, portanto, nos salvará. Nessas condições, segundo ele, Deus se revela na consciência e nos faz experimentar a Sua graça.

Não existe autoridade humana, nem mesmo eclesiástica, que possa ou tenha o direito de interpor-se entre Deus e nossa consciência como intérprete da vontade de Deus. Cada um sabe diretamente do Espírito Santo qual é a vontade divina.

Tomás e Molina admitem uma inspiração divina diretamente na consciência, mas apenas para aqueles atos que envolvem o espaço de liberdade decisória do indivíduo, dentro das verdades morais, naturais e cristãs, cujo conteúdo é dado pela Escritura na interpretação da Igreja.

Por outro lado, Tomás e Molina afirmam que é necessário levar em consideração a voz da consciência, a qual, enquanto sindérese, contém os preceitos da lei natural, para remediar o pecado quando nos acusa e para agradecer a Deus quando somos inocentes.

O significado da aliança do homem com Deus

Para Tomás e Molina, somos salvos se observamos a lei estabelecida pela Aliança. No entanto, para Lutero, Deus salva quem quer, independentemente de ter ou não observado a lei da Aliança. Por outro lado, para Tomás e Molina, a salvação está condicionada à observância dos mandamentos.

Tanto Tomás quanto Molina e Lutero concordam que a salvação depende do fato de respeitarmos a Nova Aliança. Para Tomás e Molina, tal respeito consiste em observar a lei da Nova Aliança. Para Lutero, consiste unicamente em acreditar que Cristo nos salvará, independentemente das obras.

Tomás e Lutero compreendem que a Aliança entre Deus e o homem é uma simples metáfora, retirada dos contratos humanos, onde o senhor protege o servo ou o patrão faz o trabalhador trabalhar, por meio da qual se salva a transcendência divina e o mistério da predestinação.

Por outro lado, Molina leva essa imagem a sério demais e parece homologá-la ao modo como funcionam os pactos ou convenções entre homens, nos quais o trabalhador que realizou um bom trabalho merece o pagamento acordado pelo trabalho realizado conforme o combinado.

Ora, é verdade que Deus é fiel e cumpre os pactos, mas Ele não é um empregador que observa o comportamento do trabalhador para decidir se deve pagá-lo ou puni-lo. De tal modo, Molina dissolve o mistério da predestinação devido por conta de sua vã preocupação de que este anulasse as escolhas humanas. Daí surge o Deus do «conhecimento médio», que prevê que o homem escolherá bem para lhe conceder a graça, sem perceber que cai no pelagianismo.

Tomás, no entanto, com extrema energia e vigor racional inquestionável, mostra que não é absolutamente assim: Deus é justíssimo e dá a cada um o que merece. Portanto, Tomás se posiciona tanto contra Molina, que dissolve o mistério da eleição divina, ressuscitando Pelágio, quanto Lutero, que nega os méritos.

Tomás baseia-se no Deus bíblico, que, fundamentando-se em Sua sabedoria e justiça, explica ao homem o porquê de seus prêmios e de suas punições, como compreendeu claramente o bom ladrão: «recebemos aquilo que é justo por nossas ações» (Lc 23:41).

Lutero, por outro lado, é vítima do voluntarismo de occamista, de modo que, para ele, Deus é um puro querer de si mesmo, sem qualquer luz de sabedoria ou critério de justiça, que de forma totalmente estranha, arbitrária e injustificada, sem dar explicação alguma, manda ao paraíso, conforme deseja, quem praticou o mal, e manda ao inferno quem praticou o  bem, sem considerar qualquer mérito, que para ele não tem valor.

Enquanto para Tomás e Lutero Deus predestina os eleitos independentemente de sua vontade, para Molina, Deus concede a graça e salva se o homem der prova de boa vontade.

A relação do livre-arbítrio com a salvação

Para Tomás e Molina, com o livre-arbítrio, fazemos ou bem ou o mal, escolhemos isto ou aquilo, desejamos escolher ou não desejamos escolher. Para Lutero, o livre-arbítrio funciona assim apenas nos assuntos terrenos. Em relação à salvação, ele está corrompido e inutilizável. Somente Cristo exercia plenamente o livre-arbítrio. E nós só podemos exercê-lo ao escolher Cristo como Salvador. Contudo, devemos aceitar a dupla predestinação e, portanto, estar prontos para ir até mesmo para o inferno, se assim Deus quiser.

Para Tomás e Molina, para que possamos nos salvar, é necessário fazer uso do livre-arbítrio, isto é, que nos arrependamos dos nossos pecados, façamos penitência e nos esforcemos para corrigir-nos. Para Lutero, porém, a pretensão de que o livre-arbítrio coopere na salvação é presunção e hipocrisia. O único ato de escolha—uma opção fundamental—que Lutero admite para a salvação é a escolha de crer em Cristo e em Sua promessa de nos salvar, ainda que sejamos pecadores. Essa escolha nos coloca sob o regime da graça e nos confere a liberdade cristã, ou seja, a liberdade dos filhos de Deus, movidos pelo Espírito Santo.

Para Tomás e Molina, após o pecado original, o livre-arbítrio está enfraquecido, mas não extinto. Portanto, ele deve ser usado para a salvação. Já para Lutero, a vontade humana, após o pecado, é escrava do pecado e, por isso, é inutilizável para fins de salvação.

A verdadeira noção de mérito

A noção de mérito é uma ideia espontânea, certa, imediatamente intuída pela consciência moral universal, relativa àquele estado da vontade que decorre de um ato cumprido pelo indivíduo, seja ele em respeito ou em contravenção a um contrato prévio estipulado entre ele e a pessoa junto a qual se comprometeu a realizar uma determinada obra e que deve retribuir o mérito da obra cumprida ou não cumprida, bem cumprida ou mal cumprida, com prêmio ou castigo. Já a religião natural aplica, em sentido analógico, a noção de mérito ao campo da ação humana em relação às leis divinas.

Tomás, Molina e Lutero estão de acordo em reconhecer que Cristo possuía perfeitamente o livre-arbítrio, por meio do qual, dispondo da graça infinita de Filho de Deus, pôde expiar por nossos pecados na cruz e merecer para nós, com Sua bem-aventurada paixão, a graça do perdão dos pecados e a vida eterna.

Lutero, todavia, opõe-se a Tomás e Molina, os quais sustentam a necessidade de o homem usar o livre-arbítrio para se salvar, afirmando que no homem pecador o livre-arbítrio está tão corrompido que é inutilizável para a salvação, a qual depende unicamente da graça.

Além disso, Tomás e Molina concordam com Lutero que, se o mérito humano vale perante os homens, porque comporta uma obra finita para uma retribuição finita, o homem, com as forças de seu livre-arbítrio, não pode realizar uma obra tão meritória perante Deus tal que O obrigue a retribuir o homem de forma proporcional ao seu mérito, pois tal mérito, em sua limitação, está infinitamente abaixo de uma obra que deveria ser infinita, de tal modo a obrigar Deus a retribuir adequadamente à obra cumprida. Somente Cristo, Filho de Deus, realiza uma obra desse tipo. Todos os três reconhecem isso.

Eles concordam, assim, em reconhecer que a Revelação cristã ensina que Cristo, com Seu sacrifício redentor, mereceu a salvação para toda a humanidade. Mas a divergência surge ao tentar estabelecer ou entender qual deve ser a parte do livre-arbítrio humano, pois enquanto Tomás e Molina defendem que o homem deve usá-lo e usá-lo bem, Lutero sustenta que, pela corrupção do livre arbítrio, ele é inutilizável.

Por outro lado, Tomás e Molina sustentaram que o homem, para salvar-se, deve, em estado de graça, praticando o bem, aplicar a si mesmo os méritos de Cristo, merecendo a salvação pelo exercício das boas obras. Tomás e Molina distinguem, portanto, o mérito natural perante os homens do mérito sobrenatural, efeito da graça, pelo qual o cristão em graça merece o aumento da graça e a vida eterna.

Eles concordam sobre esta noção de mérito. Lutero, pelo contrário, não recebeu o conceito de mérito sobrenatural, dom da divina misericórdia, e se obstinou em rejeitar essa noção de mérito, acusando injustamente a noção católica de pelagianismo, o que mostra claramente que Lutero confundiu o mérito sobrenatural com o mérito natural. Para o católico, o homem, ainda que realizando boas obras, não pode merecer a graça. No processo da justificação, a iniciativa cabe à graça. É o que os escolásticos chamam de graça preveniente. Nesse ponto, os três concordam.

Onde Molina e Tomás se opõem a Lutero é quanto ao valor da graça, que torna o ato humano meritório sobrenaturalmente, graça que para Molina e Tomás é necessária para completar o processo de justificação, o qual não se limita, como acreditava Lutero, ao fato de que o homem recebe a graça, mas é preciso também que ele aja em graça, assim como não basta que o doente esteja sob tratamento; é necessário que ele cure.

A presença do pecado na alma impede o homem de fazer o bem que o salva. É verdade que nesta vida nunca estamos completamente curados, pois sempre resta a concupiscência. A graça preveniente, que é graça sanadora, tolhe o pecado, mesmo que reste a concupiscência, e torna a ação humana sobrenaturalizada pela graça, de modo que, agindo em graça, o homem merece sobrenaturalmente um aumento de graça.

Essa é a graça consequente. Somente nesse ponto o homem é justificado. Enquanto liberado do pecado, pode-se dizer que ele está curado. Mas trata-se apenas de uma cura parcial, pois, enquanto ainda sujeito à concupiscência, ele ainda está em vias de cura. Para trilhar, portanto, o caminho da salvação, não basta a graça preveniente; é necessária também a graça consequente.

Por outro lado, o mérito é efeito do livre-arbítrio, e, portanto, compreende-se que Lutero, negando ao livre-arbítrio uma função ativa na obra da salvação, consequentemente ignora a função do livre arbítrio. Isso quer dizer que Lutero ignora a doutrina bíblica da recompensa e do castigo divino como efeito do mérito. Isso não significa que ele negue a existência do inferno e do paraíso; apenas que, segundo ele, Deus predestina ao paraíso e ao inferno por Sua pura e absoluta vontade, sem relação alguma com os méritos bons ou maus dos homens.

Ainda hoje, infelizmente, os luteranos se recusam a admitir o mérito sobrenatural, conforme consta na Declaração conjunta sobre a doutrina da justificação publicada pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos em 31 de outubro de 1999. E, com isso, não reconhecem a graça consequente, sem a qual o processo de justificação fica incompleto, como se o doente recebesse alta do hospital sem estar curado de uma doença curável.

Justo e pecador

Assim se explica por que Lutero fala de um «iustus et peccator», pois para ele, peccator significa, ao mesmo tempo, o homem permanentemente inclinado a pecar, ou seja, concupiscente, e o homem em estado de pecado, pecado que pode cessar instantaneamente se a vontade arrependida o desejar. Nesse caso, Deus faz com que a graça retorne imediatamente à alma, graça anteriormente perdida pelo pecado.

Por isso, Lutero fala de ser ao mesmo tempo justo e pecador, onde, se por pecador entendemos alguém que esteja em estado de pecado ou de culpa, é claro que se chega a um absurdo, pois graça e pecado se excluem mutuamente por definição. Mas, provavelmente, Lutero queria se referir à concupiscência, que ele, no entanto, confundia com o pecado. Para ser mais claro, ele deveria ter dito: concupiscens et iustus.

O próprio Concílio de Trento foi ao encontro dessa questão ao distinguir entre pecado mortal e pecado venial, e ao especificar que o pecado que não pode ser evitado, sendo frequente e presente até mesmo nos santos, é o pecado venial. De tal modo, preserva-se a ideia de iustus et peccator, sempre tendo em mente, porém, que pecador não deve ser entendido como alguém que permanece em estado contínuo de pecado, mas como o homem, filho de Adão, escravo da concupiscência.

Como explicar que a salvação é ao mesmo tempo gratuita e meritória?

Mas o ponto que devemos ter presente, acima de tudo, é que os relatos evangélicos da misericórdia gratuita, dos milagres de Cristo e a apresentação geral da obra salvífica de Cristo no Novo Testamento, a fim de que não caiamos numa visão unilateral e insuficiente, devem ser acompanhados por outras passagens da Escritura, inclusive do Antigo Testamento, onde é evidente que se ensina que o homem obtém a salvação ao praticar os mandamentos. Nesses trechos, é ordenado que não se apresente diante de Deus de mãos vazias[3], e a salvação é apresentada como um prêmio a ser conquistado (Fil 3:12; Col 2:18), como o prêmio do justo (Sl 58:12), o prêmio de quem se sacrifica pelos outros (Is 53:12), o prêmio das boas obras (Lc 6:35), ou o prêmio por fazer render os talentos recebidos (Mt 25:14-30), ou o prêmio de uma competição esportiva (I Cor 9,24), ou como a retribuição por um trabalho (Mt 20:1), ou como o salário por um trabalho realizado (I Tm 5:18), ou como o objeto de uma conquista laboriosa, como uma mercadoria que é comprada e paga, ou como a coroa de glória que precisa ser conquistada.[4] Não faltam passagens da Escritura onde a salvação é apresentada como uma recompensa. E agora?

Queremos descartar metade da Bíblia porque está em contraste com a outra metade? É a Bíblia que se contradiz, ou somos nós que não entendemos? A salvação é gratuita ou se paga? Recebe-se como um dom ou conquista-se como um prêmio? É efeito da misericórdia de Deus ou da justiça do justo? Deus nos recompensa segundo nossas obras ou nos salva gratuitamente, independentemente de obras e méritos?

O mérito de Tomás foi mostrar a conciliabilidade do mérito com a gratuidade na obra da salvação: a parte do homem que merece, graças aos méritos de Cristo da parte de Deus, que doa por misericórdia. Se Lutero tivesse lido atentamente São Tomás e estudado como o Aquinate explica o sentido bíblico do mérito sobrenatural, ele não teria caído no absurdo de rejeitar o mérito em nome da graça.

Mas também Molina não compreendeu São Tomás

Se Molina tivesse lido com mais atenção São Tomás, estou convencido de que ele não teria escrito o famoso De concordia liberi arbitrii cum divinae gratiae donis, que ele pretendia contrapor à explicação razoável de São Tomás, que conciliava perfeita e insuperavelmente a graça e o livre-arbítrio, com outra explicação inventada por ele. Esta que, por suas falhas, deu origem a uma infinidade de discussões entre jesuítas e dominicanos, ainda não resolvidas até hoje.

De fato, se a interpretação luterana da relação entre a graça e o livre-arbítrio exigia uma reavaliação do livre-arbítrio, a concepção filo-pelagiana de Molina, que passava de um extremo a outro, não era necessária. Bastaria, como estavam fazendo os teólogos dominicanos, retomar a solução tomista, de modo algum afetada pela heresia luterana.

Essa discussão intricadíssima e exasperante fez os teólogos de ambas as Ordens perderem tempo precioso, quando poderiam ter feito melhor ao, juntos, criticarem a posição luterana, recorrendo todos a São Tomás, cujo estudo fora recomendado até mesmo por Santo Inácio a seus seguidores.

Quanto aos Papas, estes não tomaram posição na controvérsia, permitindo a livre adesão a uma ou outra explicação, mas preferindo implicitamente a visão tomista, ao recomendar constantemente São Tomás como príncipe dos teólogos, e certamente não Molina ou seus seguidores, recomendação que perdurou até o Concílio Vaticano II.

Méritos e defeitos de Molina

  1. Molina não compreendeu a noção tomista dos graus analógicos da causalidade. Em particular, ele negligenciou considerar que a vontade divina é a causa primeira criadora e motriz da vontade humana, a qual é causa segunda.
  2. São Tomás compreendeu melhor que Molina o valor do livre-arbítrio e, por conseguinte, o valor do mérito. De fato, Tomás nos faz perceber que, se é verdade que a vontade humana move a si mesma, ela é, no entanto, criada e, portanto, movida por Deus.
  3. O conhecimento divino tem por objeto, além do próprio Deus, toda a realidade criada, seja ela atual, presente, passada e futura, ou apenas potencial. O «conhecimento médio » de Molina é um conceito contraditório, pois não existe um ente intermediário entre o real atual e o puramente possível. Enquanto, aos nossos olhos, apenas o presente está em ato, aos olhos de Deus o passado e o futuro também são atuais.

Os futuríveis, dos quais fala Molina—ou seja, os atos humanos que podem ocorrer e que Deus prevê—são realidades possíveis ou atualizáveis para nós, mas não para Deus. Portanto, não faz sentido colocá-los como objetos de um conhecimento no meio, entre o conhecimento do real e do puramente possível. Os futuríveis são objetos reais, mesmo que possíveis ou atualizáveis.

Mas por que Molina inventou o conhecimento médio? Com que propósito? Porque ele queria reconhecer a graça preveniente sem renunciar à sua concepção, de origem occamista, do livre-arbítrio, não como movido por Deus, mas como movido apenas por si mesmo.

Ele não percebeu que, se realmente queria conservar a graça preveniente, como faziam corretamente tanto Lutero quanto São Tomás, ele deveria reconhecer também que essa graça move o livre-arbítrio. Desse modo                , o ato do livre-arbítrio de aceitar a graça não precede a conferição[5] da graça, mas a segue; caso contrário, nada de graça preveniente! Em outras palavras, não é apenas a graça oblata, ou seja, oferecida, que precede o ato de aceitação do livre-arbítrio, mas também a graça collata, ou seja, efetivamente conferida, para usar o vocabulário de Molina. Aqui, São Tomás concorda com Lutero, enquanto Molina parece um pelagiano!

Lutero, portanto, não erra nesse ponto, mas erra ao negar o livre-arbítrio, enquanto Tomás o afirma. Por isso, era caluniosa a acusação de luteranismo feita aos tomistas pelos molinistas.

  1. Molina entende de maneira muito ao pé da letra a metáfora da Aliança, a qual, embora não desprovida de utilidade para pessoas simples não habituadas à abstração, é uma imagem bíblica. Mas sabemos que ela implica o risco do antropomorfismo e, pior ainda, do antropocentrismo, o qual, em última instância, pode levar ao ateísmo.

Tomás, ao tratar do argumento, não faz referência a essa metáfora. Ele fala apenas de uma ordinatio divina. Trata da Nova Aliança apenas ao falar da Nova Lei, preferindo manter-se no plano metafísico da causalidade analógica, que, embora certamente mais abstrato, evita o risco de antropomorfismo e de fazer Deus parecer um patrão ou empregador qualquer, que contrata seus trabalhadores.

Molina dá importância excessiva à vontade humana e à sua liberdade, arriscando torná-la independente da vontade divina. Isso evoca um ditado que circula entre os jesuítas, uma expressão paradoxal que propõe duas práticas que, tomadas literalmente, representam duas hipóteses impossíveis, mas que, interpretadas cum grano salis [com um pé atrás], podem ser compreendidas e aceitas. Porém, ao meu ver, esse lema é mais desaconselhável do que recomendável, pois nele vejo, de um lado, Marx, e do outro, Rahner—as duas tentações atuais da Companhia.[6] É o seguinte: «Faz tudo o que puderes, como se tudo dependesse de ti. Confia totalmente em Deus, como se tudo dependesse Dele». Na primeira, falta a graça; na segunda, falta o livre-arbítrio.

A situação hodierna

O método do confronto teológico hoje mudou muito em relação ao século XVI. Naquela época, o debate teológico era concebido como um confronto entre os dois campeões das escolas jesuítica e dominicana, no caso, entre Luís de Molina e Domingo Bañez. Assim, o jesuíta tinha a obrigação de apoiar Molina, e o dominicano, Bañez. Ou então, esse alinhamento ocorria de forma espontânea, como acontece hoje entre duas equipes de futebol: é lógico que o bolonhês torça pelo Bologna e o napolitano pelo Napoli. Naturalmente, há exceções, e o mesmo acontecia na disputa entre os dois campeões teológicos.

Hoje, ainda existem dominicanos e jesuítas, mas os teólogos são mais livres, dentro dos limites da ortodoxia, para escolher seu teólogo preferido, embora a Igreja continue recomendando, acima de todos, São Tomás. Dessa forma, enquanto Tomás e Bañez, seu intérprete perfeito, permanecem atuais, ninguém hoje, nem mesmo entre os jesuítas, defende o conhecimento médio ou o conceito de livre-arbítrio de Molina.

No entanto, Molina deixou herdeiros, e ao mesmo tempo Lutero continua a influenciar a teologia católica. O conceito molinista de livre-arbítrio como um poder do homem independente de Deus foi um germe patogênico que, nos séculos seguintes, através de Descartes, Kant, Fichte e Hegel, chegaria ao ateísmo de Marx, Nietzsche, Sartre e Heidegger.

Por outro lado, Molina não conseguiu corrigir a concepção luterana da graça, pois conferia muito poder ao livre-arbítrio, ultrapassando para o pelagianismo e, assim, caindo sob a crítica de Lutero. Desse modo, Molina não fez mais do que acentuar, como reação, a polêmica dos luteranos contra o livre-arbítrio.

Assim, continua válida e necessária a solução tomista, capaz de acolher a perspectiva luterana da gratuidade da salvação e, ao mesmo tempo, levar em conta o evidente ensinamento das Escrituras sobre a função essencial do livre-arbítrio, movido por Deus e, ainda assim, livre, como meio para a prática dos mandamentos, sustentado pela graça, prática que é uma condição essencial para merecer o paraíso.

Notas

[1] Nm 15, 39; Eclo 23:5; 2 Pe 2,4; 1 Jo 2.16; Rm 7,7

[2] Enrico Denifle, Lutero e il luteranesimo nel loro primo sviluppo, Desclée, Lefebvre e C. Editori, Roma 1905.

[3] Ex 3:21; 23:15; Dt 16:16; Eclo 35:4.

[4] 1 Cor 9:25; 2 Tm 4:8; Tg 1:12; 1 Pe 5:4; Ap 2:10.

[5] Molina distingue entre uma graça oferecida (oblata) e uma graça conferida (collata). A primeira pode ser aceita ou rejeitada pelo livre-arbítrio. A segunda é aquela efetivamente conferida se o livre-arbítrio a aceita. Este conceito pode ser aceitável, desde que fique claro que a aceitação é movida pela graça, algo que Molina se recusa a admitir (contrariando São Tomás), pois teme que isso destrua a liberdade do arbítrio.

[6] Essas desventuras são narradas nas seguintes obras: Malachi Martin, I Gesuiti. Il potere e la segreta missione della Compagnia di Gesù nel mondo in cui fede e politica si scontrano, SugarCo Edizioni, Milão, 1987; Antonio Caruso, SJ, Tra grandezze e squallori, Edizioni Viverein, Monopoli (BA), 2008.

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