
A Física Quântica e os Três Mundos de Roger Penrose
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A clareza do seguinte texto dispensa um parágrafo introdutório por nossa parte (Alta Linguagem).
A Física Quântica e os Três Mundos de Roger Penrose
Escrito por Vinícius Lozio ("Sintaxe da Razão")
O final do século XIX foi um momento em que os físicos pensavam se encontrar sobre seguros alicerces teóricos e os problemas ainda não solucionados pareciam ser esparsas nuvens habitando em um céu nitidamente azul. Possivelmente, nenhum dos maiores cientistas da época previam que as divergências experimentais com os modelos clássicos em fenômenos como o efeito fotoelétrico e a estabilidade dos átomos gerariam uma verdadeira revolução no paradigma filosófico e matemático das teorias físicas da época.
Entre essas pedras no sapato aparentemente pequenas, uma se destaca pela sua relevância histórica, denominada de “desastre do ultravioleta”. Esse problema consistia no fato de que, em análises espectroscópicas, em especial, no estudo das densidades de energia emitidas em determinadas temperaturas e comprimentos de onda específicos da radiação, a Lei de Rayleigh-Jeans, que se propunha a descrever como deveria ser o comportamento dessa distribuição, previa uma densidade de energia espectral tendendo ao infinito para comprimentos de onda cada vez menores, abaixo da faixa do ultravioleta, para os corpos negros, que são emissores ideais de radiação. Evidentemente, os dados experimentais divergiam dessa previsão, demonstrando, para todas as temperaturas, uma queda das densidades de energia espectrais, em comprimentos de onda pequenos.
Max Planck, físico teórico alemão, se debruçou sobre esse problema e, no ano de 1900, propôs, em seu artigo Über eine Verbesserung der Wien'schen Spektralgleichung (Sobre uma melhoria da equação espectral de Wien) uma resolução matemática engenhosa e genial, que intermediou uma união de dois modelos, até então independentes: a Lei de Wien, válida em altas frequências e a Lei de Rayleigh-Jeans, válida em frequências baixas. Essa união veio a custo de uma implementação ad hoc nas equações que descreviam a radiação: a quantização da energia em números inteiros (como se a energia fosse dividida em vários pacotes, denominados posteriormente de ‘quanta’).
Planck, todavia, demonstrou-se muito cético em relação ao que havia realizado, e, com um forte ar de anti-realismo científico, apesar de prudente, julgou não estar diante de uma descoberta ontológica da natureza, mas sim de apenas um truque matemático.
Apenas após a utilização desse mesmo ‘truque’ por Albert Einstein em 1905, no projeto que lhe conferiu a laureação no Nobel de Física de 1921, tratando de uma solução para o problema clássico do efeito fotoelétrico, e por Niels Bohr, com seu modelo atômico com energia quantizada, em 1913, que a comunidade científica passou a olhar esse “ansatz” como uma emergente e eruptiva realidade física.
Esse momento, em conjunto com a retirada da característica absoluta do tempo na Relatividade Restrita de Einstein, foi uma verdadeira ignição de ideias flamejantes na física moderna que demonstraram que muitos paradigmas da Física Clássica deveriam ser abandonados em detrimento dos novos modelos, com alta capacidade de abstração matemática. Essa precessão axial dos fundamentos científicos deu origem a Espaços de Hilbert de infinitas dimensões, transformações de Lorentz do espaço-tempo, grupos de Heisenberg e espaços métricos de Minkowski, que, aos poucos, passaram a ser introduzidos no plano ontológico em que residiam antes as corriqueiras transformações de Galileu e o espaço euclidiano.
Diante desses eventos históricos, somos compelidos a analisar o percurso das ideias na Física, onde vimos um artefato, a princípio puramente matemático, evidenciar um novo predicado ontológico de um ente físico. Analisando a partir desse prisma, o grandioso físico e matemático inglês Roger Penrose, ganhador do Nobel de Física de 2020, nos fornece um microscópio epistemológico que nos torna capaz de diagnosticar esses fenômenos de aparentes coincidências e de realidades ontológicas que surgem de construções teóricas com camadas espessas de idealismo.
Em The Large, the Small and the Human Mind, Penrose apresenta, de forma sintética e objetiva sua concepção da realidade a partir dos “três mundos”: o físico, o mental e o platônico-matemático. Apesar de existirem de forma conceitualmente distintas, possuem ligações intrínsecas e incontornáveis entre si: cada um, de alguma forma, parece emergir ou se fundamentar em aspectos do mundo anterior.
Como explica Penrose, o mundo físico é o mundo da matéria: cadeiras, seres humanos, objetos macroscópicos, entidades microscópicas, fótons, elétrons, quarks e o próprio espaço-tempo.
O mundo mental, é posto como “o que conhecemos de forma mais direta” e abarca todas nossas percepções conscientes. Nesse mundo temos a felicidade, a dor, o amor, a percepção das cores e as imagens mentais dos objetos do mundo físico.
E finalmente temos o mundo platônico-matemático: o mundo das formas, das verdades matemáticas abstratas. Penrose argumenta que as entidades matemáticas possuem realidade objetiva própria, independentemente de serem descobertas ou concebidas pela mente. Nesse mundo, segundo ele, encontramos os números naturais, a álgebra dos números complexos, as geometrias euclidiana e as não-euclidianas, as equações eletromagnéticas de Maxwell, as equações gravitacionais de Einstein e os espaços-tempos teóricos que as satisfazem, sejam eles fisicamente realistas ou não. Esse mundo é atemporal e não espacial, de forma que as realidades matemáticas não possam depender de serem descobertas ou criadas.
Além disso, ele sugere o fundamento da realidade desses 3 mundos em uma realidade mais fundamental a essas.
“...each of three worlds — Platonic-mathematical, physical, and mental — has its own kind of reality, and where each is (deeply and mysteriously) founded in the one that precedes it (the worlds being taken cyclicly).” - Roger Penrose em Road to Reality (2004)
Penrose propõe grandes questões que traçam as relações intrínsecas entre esses mundos. Aqui nos interessa suas colocações a respeito da relação dos mundos físico e matemático: por que a matemática descreve tão bem o mundo físico?
Em ampla correlação com o que foi discutido anteriormente a respeito da solução matemática de Planck para o desastre do ultravioleta que descreveu minuciosamente esse e mais diversos outros problemas físicos, o destaque de Penrose em Shadows of the Mind (1994) é: “o mistério de por que leis tão precisas e profundamente matemáticas desempenham um papel tão importante no comportamento do mundo físico” a ponto de “o mundo da realidade física parecer quase misteriosamente emergir do mundo platônico da matemática”. O autor enxerga uma misteriosa ressonância entre a realidade física e as verdades matemáticas, tal qual o mundo físico pareça ser uma projeção ortogonal do espaço vetorial da matemática para um sub-espaço de dimensões menores.
Penrose argumenta a favor dessa tese com inúmeros exemplos de Leis Físicas que foram postuladas e, mesmo submetidas a décadas de experimentos exaustivos, mantinham-se com uma exatidão espantosa. Tal como, em paralelo com o princípio da unificação científica e da consiliência, a aplicabilidade desses postulados na explicação e previsão correta da dinâmica de diversos fenômenos físicos evidencia essa qualidade.
Além disso, Roger Penrose, traz a questão que relaciona o mundo mental com o matemático: como a mente acessa verdades matemática abstratas?
Isso é devidamente algo contra-intuitivo, no sentido em que a mente é finita e consegue apreender ideias como infinito, descobrir teoremas atemporais e estruturas que nem sequer tem uma conexão direta com nossas percepções do mundo físico. Parece haver uma ponte que permite a conexão entre a consciência humana e a realidade matemática platônica que permite que possamos saber, com certeza, por exemplo, que não há um último número primo.
Dessa forma, observamos que Planck, identificando que, matematicamente, chegaria ao resultado esperado utilizando de uma proposição auxiliar, que aparentava ser puramente algébrica, desvelou uma realidade física, confirmada por ínumeros experimentos e pela adequação em diversos outros modelos também testados empiricamente. Parece ser o caso que, se utilizando da intersecção dos domínios da mente e da matemática, Max Planck observou uma verdade ainda mais fundamental que a realidade física em si e, a partir de sua finita, porém brilhante, mente, mudou o mundo.
Bibliografia
PENROSE, R. The Emperor’s New Mind: Concerning Computers, Minds, and the Laws of Physics. Oxford: Oxford University Press, 1989. (Trad. port.: A Nova Mente do Rei. Lisboa: Gradiva, 1991).
PENROSE, R. Shadows of the Mind: A Search for the Missing Science of Consciousness. Oxford: Oxford University Press, 1994. (Trad. port.: As Sombras da Mente. Lisboa: Gradiva, 1996).
PENROSE, R. The Large, the Small and the Human Mind. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. (Trad. port.: O Grande, o Pequeno e a Mente Humana. Lisboa: Gradiva, 2000).
PENROSE, R. The Road to Reality: A Complete Guide to the Laws of the Universe. London: Jonathan Cape, 2004. (Trad. port.: O Caminho para a Realidade: Um Guia Completo das Leis do Universo. Lisboa: Gradiva, 2007).
KATZIR, S. The Beginnings of Quantum Theory. Oxford: Oxford University Press, 2019.
KUHN, T. S. Black-Body Theory and the Quantum Discontinuity, 1894–1912. Oxford: Oxford University Press, 1978.