"A Grande Inteligência de Otto Maria Carpeaux", por Wilson Martins

"A Grande Inteligência de Otto Maria Carpeaux", por Wilson Martins

Nota introdutória, Gabriel Gotthelf;
Wilson Martins foi jornalista e crítico literário de primeira categoria. Documentou toda a intelectualidade brasileira (História da Inteligência Brasileira, 7 volumes). À moda antiga, escreveu os dois volumes de "A Crítica Literária no Brasil", com ênfase nas reações ideológicas e evolução estilística (influência óbvia de Carpeaux neste ponto). Aparece-nos hoje como figura desconhecida, mas foi grande escritor: o artigo em questão é prova disso.

A Grande Inteligência de Otto Maria Carpeaux, por Wilson Martins

Dia · 28 de janeiro de 1943

NÃO SEI deste autor mais do que me esclarece a melodramática apresentação dos editores: “Otto Maria Carpeaux é o pseudônimo de um notável escritor europeu, que a guerra, a atmosfera conturbada do Velho Mundo, exilou para as terras da América”. Mas a publicação de suas páginas de crítica em volume (A cinza do purgatório: ensaios, C.E.B., Rio, 1942) oferece-me oportunidade de escrever sobre esse homem, que produziu em mim uma das mais fortes impressões até hoje sentidas. De há muito venho lendo-o no Correio da Manhã, e se alguma coisa posso coordenar, no turbilhão de idéias que suas palavras me provocam, é que estamos diante de uma grande inteligência.

De fato, há dois aspectos fundamentais no espírito de Otto Maria Carpeaux que eu desejo desde logo salientar: a sua grande inteligência e a sua imensa cultura. Lendo-o, sentimo-nos diante de alguém cujo olhar nos atemoriza, tão fundo pode atingir, mas, ao mesmo tempo, diante de alguém que nos pode transmitir a sabedoria dos séculos, quero dizer — tudo aquilo que o Espírito já conseguiu produzir de mais genuíno e de mais característico.

Se estivéssemos no século dezenove, naqueles anos tão convencidos de sua infalibilidade e tão amantes das definições empoladas, eu diria: eis um crítico! Otto Maria Carpeaux reúne tudo aquilo que a gente idealiza para um crítico, mas que pensa jamais encontrar. Porque, ao lado do cabedal de seus conhecimentos, de uma grande simpatia humana, de um seguríssimo bom gosto, ele pode dizer: “[...] como nós outros, que sentimos a poesia com o coração e com todos os sentidos, e a quem não foi dado o verso. Isso também é poesia, mas com uma nuança” (pág. 110). Ele é o crítico de todos os detalhes e é o crítico de uma extraordinária visão de conjunto. Não sei de muitos exemplos na literatura universal que possam me apresentar esse mesmo complexo de qualidades, e posso afirmar que jamais me entreguei tanto a um autor como a esse notável Otto Maria Carpeaux, que parece não falar das inteligências mas das almas, onde os destinos do mundo se decidem (pág. 39).

Sobre Otto Maria Carpeaux é inútil escrever ensaiando métodos de crítica. Nem Taine, nem Saint-Beuve, nem Charles Du Bos; é melhor deixar a pena ir correndo, sem sentido, escrevendo tudo, como numa confissão psicanalítica, onde o subconsciente possa esclarecer, com sua sabedoria incriada, tudo o que a inteligência não consegue exprimir na irritante insuficiência das palavras [...] Vamos buscar, portanto, um pouco de sua alma, onde ela se traia, num soluço mal sufocado:

Hoje, para dizer a verdade, toda a humanidade está no exílio. Havendo perdido ou estando ameaçada de perder a sombra exterior, reconhece o valor desses pobres bens terrestres; recaída na solidão ansiosa do homem primitivo, grita como uma criança na escuridão. Ninguém o compreende melhor do que nós outros, propriamente exilados, que perdemos a nossa sombra terrestre, a pátria, que nenhum amor de amigos poderia substituir. Nesse destino, a última consolarão, para nós outros e para todos, é a retirada para a alma que não precisa do sol de lá fora, para a luz interior que é o reflexo da luz eterna (págs. 93- 94).

Desse refúgio, Otto Maria Carpeaux nos envia algumas páginas de interpretação, alguns julgamentos, algumas profecias, que nos conduzem, já desligadas da pessoa do autor, a um mundo que julgávamos extinto — o mundo do Espírito que não morre e da Inteligência que há de sobreviver a todas as dominações. Não será por acaso que o livro começa e termina com uma página sobre Jacob Burckhardt, aquele mesmo que “quando nos consola dizendo que os males da história são sempre maiores que os nossos, ao mesmo tempo desfaz beneficamente as nossas ilusões de progresso” (pág. 19). Esse mesmo Burckhardt, “o último dos humanistas” (pág. 24), que não exige de si mesmo e de nós outros senão isto:

[...] no meio da crise que está sacudindo tudo, guardar o ponto firme do espírito livre e da continuidade histórica, para, no turbilhão de uma época ilusionista, estar consigo mesmo, sem ilusões e consciente. É uma atitude altiva e humilde ao mesmo tempo. É a atitude de uma consciência europeia, e que me lembra uma frase, cheia de desespero e de confiança, de Barrès: “Il y a là mes blâmes, mes éloges, et tout ce que j’ai dit” (pág. 356).

A Otto Maria Carpeaux eu devo a leitura do mais lúcido ensaio que conheço sobre Dostoiévski, “esse bárbaro barbado, com a face sulcada de sofrimentos”, e contra quem “os europeus entrincheiram-se num baluarte de interpretações erradas” (pág. 176). A Otto Maria Carpeaux devo ainda a mais maravilhosa de todas as viagens pela literatura europeia, numa época em que tudo se nos apresenta tão convulsionado que parece chegado o tempo da vinda dos anjos do Apocalipse. E tudo o que ele nos diz não traz o travo amargo do ressentimento ou do ódio; é, pelo contrário, banhado de uma suave luz crepuscular, como no interior das grandes catedrais, onde os raios, que se esmaecem ao passar pelos vitrais, se chegam menos fortes chegam em compensação coloridos e suaves, já perfumados de incenso e com um aspecto sereno de eternidade. Otto Maria Carpeaux é bem isso: o interior de uma infinita catedral, povoada das vozes misteriosas dos santos, dos profetas, dos artistas, tudo ordenado pela mão de um régisseur invisível e onde o silêncio que reina não é pesado mas cheio de insinuações de esperança e de lições de sabedoria.

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