"A propósito de críticos", por Gilberto Freyre

"A propósito de críticos", por Gilberto Freyre

Nota introdutória (Alta Linguagem),

Neste texto de Gilberto Freyre, ele trata de críticos literários, não simplesmente de críticos, avaliando e recomendando e parcialmente resenhando o livro do "sr. Olívio Montenegro" denominado "O Romance Brasileiro". Assim também, faz apontamentos para a vida intelectual brasileira da primeira metade do século XX, mencionando figuras como Otto Maria Carpeaux e o Sérgio Buarque de Holanda.

A propósito de críticos

O Jornal, 14 de Abril. 1942.

Do sr. Olivio Montenegro--do seu saber, do seu vigor de expressão e do seu talento de historiador da literatura, às vezes arbitrário mas sempre sugestivo e lúcido--o público brasileiro dado a leituras mais profundas já tivera a revelação nas páginas do livro “O Romance brasileiro”. Agora a direção da revista “Diretrizes” consegue este quase milagre: fazer que um dos nossos intelectuais mais esquivos, mais felinos, mais presos à doçura do borralho provinciano, se torne o crítico literário efetivo da mais saliente das nossas revistas de hoje: tão saliente que chega a ser ruidosa.

É quase certo, entretanto, que o sr. Olivio Montenegro achará jeito de conservar alguma coisa do borralheiro já agora incorrigível que é, em plena revista “Diretrizes”. Em seu primeiro artigo de crítico efetivo ele se afirma, com tranquilo vigor, o Olivio Montenegro de sempre: o intelectual em quem o gosto fino e até voluptuoso da análise, da discriminação, da seleção não abafa o poder, a capacidade, a alegria, o entusiasmo de admiração pelo próximo: mesmo o próximo que politica, religiosa ou pessoalmente lhe repugne. Poder tão raro nos intelectuais quanto o amor cristão nos homens, em geral. 

Esse primeiro artigo--verdadeira profissão de fé do sr. Olivio Montenegro como crítico independente--não é simples afirmação de valor literário: é também a revelação de uma personalidade complexa e ampla, incapaz das mesquinharias que tantas vezes impelem os indivíduos de personalidade insignificante e rala--embora, às vezes, homens de algum talento e de alguma cultura literária ou filosófica--para o exercício da crítica. Felino ele é e capaz de suas unhadas sutis e de seus arreganhos crus: mas não mesquinho. Não incapaz de admirar o contemporâneo, inimigo ou amigo. Não desonesto de espírito nem árido de emoção, de sensibilidade ou de simpatia humana. 

Algumas de suas palavras, ao iniciar a colaboração efetiva na revista metropolitana, refletem a amplitude de personalidade, ao mesmo tempo compreensiva e criadora, que é uma garantia da boa crítica que vai nos dar: não só intelectual e artisticamente rica e substancial, como empenhada, quase por consciência de dever, em revelar, excitar e desenvolver valores: os que “caracterizem superiormente” um autor ou um livro. Em “surpreender contrastes entre aparências que se assemelham”. E, “tratando-se de uma literatura ainda mal definida nos seus principais caracteres como a nossa, ainda vacilante nos seus motivos originais, e mal segura, nas suas verdadeiras tendências”, procura realizar, principalmente, obra de ativo e rigoroso discernimento. Função corajosa, essa de discernir, de salientar valores autênticos, de fixar característicos reais, de surpreender motivos originais, que não deve ser confundida com a do pedagogo ranzinza nem com a do simples policial das letras. Nem tampouco com a do moralista.

Com a crítica ativa e regular de escritores como o sr. Olivio Montenegro é a própria literatura brasileira que tende a se enriquecer e a se estabilizar--até onde esta estabilização é possível--nos seus motivos originais e nos seus verdadeiros característicos. Ele é dos que dão à difícil atividade de crítico, dignidade criadora e até complexidade psicológica e filosófica, elevando-a do simples parasitismo ou do censorismo rasteiro, embora pretensioso em que a conservam os falsos profetas. Dignidade criadora que é também a condição da crítica admirável do sr. Alvaro Lins, no “Correio da Manhã”, a do sr. Tristão de Athayde nos “Diarios Associados” e a de três ou quatro outros escritores de primeira ordem hoje dedicados à crítica regular em revistas e diários brasileiros de menor ou maior importância. Inclusive o erudito e penetrante Otto Maria Carpeaux, cuja integração na nossa vida intelectual se vai processando com rapidez surpreendente.

A verdade é que depois de um período de quase nenhuma crítica significativa--a não ser esporádica ou de um ou outro escritor quase quixotesco--atravessamos agora uma fase de nossa vida literária que não nos permite lamúrias inconsoláveis em torno da falta de críticos militantes e de crítica regular e constante. O próprio sr. Prudente de Moraes Neto (Pedro Dantas), há tanto tempo encolhido e silencioso, mantém hoje uma seção de crítica de ideias em cultura política.

Apenas este grito de Jeremias se impõe a todos que se ocupem do assunto: lamentar o recente afastamento o sr. Sergio Buarque de Holanda do posto de crítico efetivo do “Diario de Notícias”. Posto que exerceu por algum tempo com tanto talento, tanta erudição e tão meticuloso zelo, habituando-nos a uma maturidade intelectual rara em nosso jornalismo literário. Rara nas letras brasileiras. Em compensação, aí está o sr. Olivio Montenegro, outro a quem a última acusação que se pode fazer é a de superficial ou leviano.

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