Texto introdutório (Alta Linguagem),
Neste texto ineditíssimo, encontramos uma análise sobretudo econômica e parcialmente jurídica do direito de propriedade segundo a mente do brilhante jesuíta Luís de Molina. Suas conclusões sobre o livre arbítrio--sobre as quais há de se falar ainda em textos posteriores--são sobretudo, conclusões da existência de um livre arbítrio libertário no ser humano, de tal modo que a ênfase na responsabilidade individual, na liberdade do homem que é dada por Deus--este Deus que ainda assim elege, é Providente, governador de tudo quanto existe e ainda assim conserva a liberdade da criatura que é feita à imagem e semelhança Dele--como Causa Primeira (sensus compositus) de tudo, é algo flagrante na teologia do jesuíta. Dessa mesma forma, o "libertarianismo metafísico" de Molina nos conduz também a conclusões politicamente libertárias, algumas das quais podem ser vistas nesta tradução, boa leitura.
A Propriedade Privada segundo Luís de Molina
[Traduzido do espanhol como En torno a unos textos de Luis de Molina sobre la propiedad privada, Revista española de teologia, 1977, 163-66].
Introdução
Entre os temas estudados pela escolástica do século XVI, um dos que despertou maior interesse entre teólogos, juristas, políticos e economistas foi, sem dúvida, o da propriedade privada como alternativa à propriedade comum dos bens, na organização social da convivência.[1] Nos dias de hoje, e embora com nuances diferentes das do século XVI, a organização da propriedade continua sendo um desses problemas que a sociedade levanta periodicamente e que não pode faltar em nenhum programa de reforma social que pretenda ser minimamente sério. Quero, nesta breve nota, comentar alguns textos de Luis de Molina nos quais a instituição social da propriedade é estudada desde uma perspectiva e com um sentido pragmático que não costuma ser frequente nos estudos tradicionais que abordam a doutrina escolástica.
Até agora, e pelo que conheço, aqueles que se interessaram pelo pensamento escolástico em relação à propriedade privada o fizeram a partir de uma ótica que, necessariamente, implicava certa unidimensionalidade. Estava-se interessado em saber se, para os doutores escolásticos, a propriedade privada era um direito natural ou, pelo contrário, pertencia apenas ao direito das gentes.[2] Essa forma de abordar o problema obrigava, por exigências óbvias da metodologia empregada, a prescindir de aspectos do problema que, completando os anteriores, e para mentalidades menos habituadas ao raciocínio jusnaturalista, poderiam ser de grande interesse. Ao mudar o enfoque tradicional dentre essa classe de comentários, pretendo sublinhar esses outros aspectos que geralmente costumam ficar em segundo plano.
Problema Econômico frente ao problema jurídico
No texto que se segue, não me ocuparei, ao menos diretamente, do problema jurídico da propriedade, mas sim do problema econômico. Isso significa que, deixando de lado a instituição jurídica da propriedade, centrarei minha atenção no fato econômico da divisão dos bens. Para que exista o “teu” e o “meu” é necessário que os bens sejam divididos, e é precisamente essa divisão dos bens que o direito de propriedade pretende tutelar. A divisão dos bens é o fato material sobre o qual se projeta, tomando corpo nele, a instituição jurídica do direito de propriedade. Distinguindo esse direito do fato material que ampara, será este último que ocupará nossa atenção.
Naturalmente, trata-se de uma escolha cuja justificativa se explica por motivos puramente expositivos e de divisão do trabalho, não por razões objetivas que pudessem supor menor apreço pela dimensão jurídica do problema.
Os “modelos” como instrumento expositivo
Exposta já a perspectiva a partir da qual me acercarei sobre o problema da propriedade, cabe-nos agora escolher os instrumentos analíticos que melhor respondam às necessidades que se derivam dessa perspectiva. Também aqui me apartarei do que tem sido a tradição e me servirei dos “modelos”. Se o que nos interessa sublinhar são os aspectos sócio-econômicos do problema, a utilização dos modelos nos facilitará nesse trabalho. Porém, ademais, e como podemos comprovar, as palavras de Luís de Molina são, por si mesmas, o melhor argumento a favor deste recurso expositivo.
2. Apresentação dos modelos molinistas
Um modelo nada mais é do que uma representação simplificada da realidade. Sua validade será tanto maior quanto melhor ele captar, dentro de sua simplicidade, os elementos essenciais dessa realidade. Dos infinitos aspectos que a visão[3] pré-analítica da realidade nos oferece, abstraímos aqueles que consideramos decisivos para o fim que pretendemos e, com eles, tecemos a estrutura do modelo representativo da realidade que analisamos. É claro que as dificuldades na construção de modelos devem ser reconhecidas por todo aquele que pretenda utilizá-los na exposição de seu pensamento e, da mesma forma, devem ser reconhecidas as limitações de qualquer modelo. Mas, como não existem provas a priori da qualidade de um determinado modelo (com exceção do aspecto concreto de sua consistência lógica), o melhor será remeter o julgamento sobre a utilidade dos modelos que utilizarei nestas páginas para o final da exposição. Esse será o momento de julgar se nossos modelos cumpriram ou não sua missão, que, como é óbvio pelo que já dissemos, não é outra senão nos ajudar a expor o pensamento de Molina em um tema tão vital para a Sociedade como é o tema da divisão dos bens que o direito de propriedade pretende amparar. E, com isso, passo a apresentar tais modelos.
Modelo A: o “estado de inocência”
“Pois que, nesse estado, a terra fornece aos homens o necessário em abundância, sem nenhum trabalho, e neles não haveria paixão desordenada pelas coisas temporais, pela qual alguém desejasse usurpar algo para si em detrimento e injustiça contra os outros. Se algum cultivo fosse necessário, este era exiguo e sem trabalho, quase como uma diversão para a alma, e ninguém teria resistência ou aversão a isso. Portanto, era apropriado e conveniente que houvesse posse comum das coisas, tal como foi conferida aos homens por Deus na própria criação das coisas.”[4]
Modelo B: situação depois da queda
“Pois que, por um lado, a terra, após o pecado, para fornecer aos homens o que é necessário, necessita de excessivo trabalho e suor, como demonstra a experiência, até mesmo quando cultivada, germina espinhos e abrolhos, como é dito em Gênesis 3; por outro lado, os homens após o pecado se tornaram débeis e lentos para o trabalho, e são abundantes em cobiça e paixões perversas. Se todas as coisas fossem comuns a toda comunidade, ninguém cuidaria do cultivo e administração das coisas temporais por conta do trabalho e moléstia que isto traz consigo: ao ponto que cada um desejaria possuir o melhor das coisas. Daí, seguir-se-ia necessariamente a penúria e a falta de coisas, surgiriam rixas e sedições entre os homens pelo uso e consumo das coisas temporais, os fortes oprimiriam os mais fracos. Nenhuma ordem pública seria preservada, enquanto todos se julgassem iguais aos outros, e cada um quisesse para si o ofício que tivesse mais vantagens e honrarias, com menos moléstia e dificuldade, e ninguém quisesse assumir o aquilo que é trabalhoso, humilde e desprezado, mas necessário para a coisa pública. Para que, portanto, todos esses absurdos fossem tolhidos, foi dada a cada um o cuidado e administração de seus próprios bens; e assim foi conveniente e totalmente necessário dividir o domínio das coisas, conforme se vê que estão divididas”.[5]
3. Pressupostos que os especificam
No modelo A, a posse em comum dos bens é a conclusão a que se chega a partir de determinados pressupostos que definem as características do “estado de inocência”. A seguir, veremos quais são esses pressupostos e, não menos importante, a força que Molina atribui à conclusão que deles deduz. Os pressupostos que definem o modelo de Sociedade próprio do “estado de inocência” são os seguintes:
a) A terra fornece aos homens o necessário sem necessidade de trabalho e, se algum trabalho é necessário, este será mínimo e será uma espécie de diversão para o espírito.
b) Ademais, o homem não tem nenhuma paixão desordenada pelas coisas temporais e, por isso, não deseja usurpar os bens dos outros com prejuízo para eles.
Uma vez que esses pressupostos ou postulados são admitidos, a conclusão flui espontaneamente: nesse estado de coisas, nesse modelo de Sociedade, “era apropriado e conveniente que houvesse a posse em comum das coisas”. De fato, se a terra fornecia o necessário sem que os homens precisassem trabalhar ou com um trabalho que, na verdade, era uma diversão, por que reter como próprios os bens dos quais se dispunha a qualquer momento em que fossem necessários? A única razão para explicar tal conduta seria, talvez, o temor de que outras pessoas desejassem também para si esses mesmos bens, mas nunca o medo do trabalho necessário para obtê-los da terra. Agora, não seria esse medo dos outros eliminado com a introdução do segundo postulado no modelo? Se se supõe que os homens não sentem paixão desordenada pelas coisas temporais, nem têm impulsos de apropriar-se das coisas de que os outros precisam, por que temeriam os homens a usurpação por outros daquelas coisas que, em determinado momento, pudessem precisar? Assim, pois, no estado de inocência descrito por Molina, nem a natureza (terra) nem os homens ofereciam qualquer motivo que justificasse racionalmente a divisão dos bens. Compreende-se assim a conclusão de Molina: nesse modelo de Sociedade “era apropriado e conveniente que houvesse posse comum das coisas”.
Naturalmente, essa não é uma conclusão à qual se chega por meio de uma cadeia de raciocínios lógico-formais, como se estivéssemos diante da conclusão de um silogismo. Trata-se, antes, de uma conclusão de tipo existencial, coerente com os pressupostos existenciais que especificam o modelo. A própria expressão que Molina utiliza para estabelecer o nexo entre os pressupostos e a conclusão deixa claro que não estamos diante de um raciocínio formal, mas de um raciocínio existencial: “era apropriado e conveniente” essa posse em comum, o que não significa que fosse lógica e estritamente necessária.
Se essa é a conclusão a que Molina chega em seu estudo do primeiro modelo, qual é a conclusão a que ele chega no segundo modelo? Começarei, como no caso anterior, analisando os pressupostos que definem esse segundo modelo.
O modelo B contempla um espaço social diferente do contemplado no modelo A. A fronteira que divide e separa esses dois espaços sociais é o pecado original, em qualquer das múltiplas interpretações que se possa dar a ele.[6] Tanto se pensarmos o pecado original interpretado segundo os critérios mais clássicos da exegese bíblica quanto se, em nossa interpretação, seguirmos os avanços mais recentes dessa mesma exegese, a distinção de dois espaços sociais nos quais o homem se desenvolve de forma diferente permanecerá de pé. Isso é suficiente para o nosso propósito. Vejamos, portanto, quais são os pressupostos que, segundo Molina, especificam o novo espaço social. No modelo B, os pressupostos são os seguintes:
a) A terra, para fornecer aos homens o necessário para a vida, exige grande trabalho e suor, como atesta a experiência.
b) Além disso, os homens se tornaram débeis e lentos para o trabalho, sendo abundantes em cobiça e paixões perversas.
Em consequência, haverá rixas e sedições entre esses homens quanto ao uso das coisas temporais e seu consumo; seguirão grande penúria e escassez e, caso se queira evitar esses males, será conveniente e necessário dividir os bens para que cada um se ocupe de sua parte.
Como se vê, o panorama que Molina contempla agora é muito diferente do que descrevia no modelo A. A terra deixou de dar seus frutos generosamente e sem trabalho; o homem, se quiser sobreviver, deve arrancar esses frutos com o suor do seu rosto, e o trabalho já não é praticado “como forma de diversão”. Na origem dessa transformação está a queda original, que encheu o homem “de cobiça e paixões perversas”, tornando-o um débil e lento. Para refletir essa situação, era lógico que Molina muda os pressupostos do modelo anterior.
A conclusão também será diferente. No novo estado social, caso se queira evitar os males descritos, é “conveniente e totalmente necessário dividir o domínio das coisas”. Tampouco agora estamos diante da conclusão de um raciocínio expresso formalmente; como no caso do modelo A, Molina raciocina em termos existenciais. Todos os homens, sendo racionais e desejando viver, vão querer evitar os absurdos que se seguiriam da luta de uns contra os outros e, para isso, como solução prática, optarão pela divisão dos bens.
A importância desse nexo entre os pressupostos e a conclusão é fundamental para compreender o pensamento de Molina e justifica que dediquemos alguma atenção a ele. Ao desenvolvê-lo mais detalhadamente, compreenderemos o realismo com que Molina enfrentava o problema da divisão dos bens e quão distante estava de sustentar opiniões doutrinárias dogmáticas nesse ponto.
O nexo que une a conclusão com os pressupostos
Já sabemos que, nem no modelo A, interpretativo do estado de inocência, nem no modelo B, que se refere ao estado posterior à queda, a conclusão a favor ou contra a divisão dos bens é fruto de uma dedução lógico-formal. Apresentarei agora outro texto de Molina em que as ideias defendidas podem nos ajudar a interpretar melhor o tipo de nexo que Molina considera. O texto ao qual me refiro diz assim:
“Portanto, não foi (a divisão atual das coisas) de direito natural, mas de direito humano: a obrigação, no entanto, de que ela fosse realizada, pôde existir de direito natural, não sempre, mas quando, por não se realizar, grandes males fossem iminentes. Nem entre todos, mas apenas entre aqueles para os quais esses males eram iminentes”.[7]
Neste texto, Molina se refere à opinião de Juan de Medina, para quem a divisão dos bens, valorizada mais do que Molina considerava necessário, parecia ser uma obrigação de Direito natural e não meramente humano. Desejando salvar a proposição do próximo, Molina comenta a opinião de Medina, estabelecendo uma série de distinções que, com toda a precisão, permitem conhecer o pensamento de Molina.
A análise do comentário que Molina faz à opinião de Medina nos permite afirmar o seguinte:
a) O espaço social que Molina considera é o que corresponde ao modelo B, isto é, quando a terra se torna mesquinha e os homens cheios de paixões que os impulsionam a criar rixas. Consciente desta situação, Molina raciocina assim:
b) Começa distinguindo claramente a obrigação genérica de dividir os bens do que pode ser uma divisão específica em um momento e lugar determinados.
c) A última é descartada, pois não parece haver dúvida alguma sobre sua origem estritamente humana, e passa a tratar expressamente da primeira, isto é, da obrigação genérica de dividir os bens. Sobre ela, afirma duas coisas:
c’) ainda que, em determinados momentos, possa ser uma obrigação de Direito natural, nem sempre o será. Mas, mesmo nos casos em que se revele necessária;
c’’) ainda que possa ser uma obrigação de Direito natural para determinados homens, tampouco será para todos em geral.
Isto é, se alguma conclusão pode ser extraída do comentário de Molina, essa conclusão é que a divisão dos bens deve ser aplicada de forma mais restrita; apenas quando for conveniente e entre aqueles para os quais for conveniente. Ora, é possível duvidar que, após a queda, essa conveniência seja de caráter geral? É possível que exista alguma comunidade humana que, após a queda, considere mais conveniente a posse comum dos bens do que a divisão e apropriação privada? Molina não tem a menor dúvida de que isso é possível:
“para alguma congregação humana, mesmo após a queda da natureza, é mais apropriada a posse comum das coisas do que sua divisão e atribuição individual. Esta conclusão se aplica principalmente às congregações de religiosos, que, para buscar a perfeição, renunciam ao mundo em pobreza [...] Em seguida, a conclusão proposta também se aplica quando alguma comunidade, até mesmo a dos cônjuges, fosse notável em santidade, como eram os fiéis de Jerusalém no início da Igreja nascente [...]”.[8]
Mas também não faltaram a Molina exemplos mais próximos de seu tempo; as notícias que chegavam do Novo Mundo falavam de um povo, o indígena, que vivia de acordo com os ideais de propriedade comum. O coletivismo dos incas foi interpretado no século XVI como uma sobrevivência do comunismo primitivo, como uma relíquia daqueles tempos em que não havia leis nem reis, nem teu nem meu.[9] Se era verdade que uma sociedade assim existia, e conhecendo o gênero de vida das congregações religiosas e da primitiva comunidade cristã, Molina não podia chegar a uma conclusão diferente: a divisão dos bens, a propriedade privada, não é, mesmo após o pecado original, um direito natural que obrigue sempre e a todos os homens. Existiam exemplos do contrário e, em bom raciocínio escolástico, “contra facta non valent argumenta”.
4. A escolha de um dos modelos
Uma vez conhecidos os traços que especificam cada um dos modelos e, além disso, sabendo que é possível implantar qualquer um deles, mesmo após o pecado original, a pergunta que devemos nos fazer é: De quem depende a escolha entre um ou outro dos modelos? Se a obrigação de dividir os bens não afeta todos os homens e em todos os momentos após a queda, quem decidirá em cada momento se a divisão é ou não conveniente e a quais homens deve se aplicar? Existe algum critério objetivo que permita saber se os males que ameaçam, caso os bens não sejam divididos, são ou não graves?
Também neste ponto, a resposta de Molina é clara e não deixa dúvidas. Após reconhecer que, em certas circunstâncias, “quanto à divisão das coisas, se fosse completamente abolida, surgiriam tão grandes males que, sem dúvida, seria pecado mortal abolí-la completamente”, ele acrescenta: “Se ainda fosse abolida, não tenho dúvida da validade do ato, a razão sendo que, por conta da vontade humana ter sido causa suficiente para estabelecer a divisão das coisas, parece também suficiente para abolí-la”.[10]
Assim, é o homem (“a vontade humana”) quem se coloca como o juiz último que legitima um determinado regime de propriedade. Ele é quem há de decidir se, em um dado lugar e momento, é “mais conveniente” o regime de propriedade privada ou o de propriedade comum. Os danos que podem resultar de um erro podem ser graves, podendo mesmo significar “pecado mortal”, mas essa gravidade não diminui em nada a responsabilidade humana pela decisão. É o homem quem decide; então, dizendo de forma clara e concisa: o homem não existe para a divisão dos bens, senão que a divisão dos bens existe para o serviço do homem.
Molina responde desta forma à pergunta sobre o nexo que une os pressupostos dos modelos de sociedade A e B com a conclusão desses mesmos modelos. Não há outro nexo além do critério do homem guiado pela razão. Não é um nexo lógico-formal; é um nexo existencial, no qual o homem coloca em jogo a sobrevivência pacífica ou conflituosa da própria sociedade. Quando, em outro lugar, Molina se pergunta sobre a forma concreta pela qual o homem introduziu a divisão dos bens, ele indica três vias que poderiam ter sido seguidas:
A divisão das coisas pôde ser legitimamente instituída ou introduzida de três modos. Primeiro, pela potestade paterna, por meio do primeiro pai antes do dilúvio, e por Noé após o dilúvio; e considero que tenha sido introduzida dessa maneira [...] Segundo, a divisão das coisas poderia ocorrer com a multiplicação dos homens e a escolha, por eles, de um príncipe comum, pela autoridade do qual os bens até então comuns seriam divididos. Terceiro, poderia ocorrer por consentimento comum dos homens, mediante pacto [...] [11]
Não importa qual dos três procedimentos foi seguido; isso não é o problema que nos interessa diretamente; o que é sim importante e aparece nos três procedimentos é que, de uma forma ou de outra, por um ou outro meio, é o homem quem, ajudando-se com seu entendimento, deve construir o modelo de sociedade que lhe ofereça a maior garantia de servir à obrigação que todos os homens têm de viver solidariamente e em paz em determinadas circunstâncias. Aqui nos encontramos diante de um dos traços mais marcantes do pensamento molinista: a responsabilidade da pessoa humana na construção da sociedade. Daí que em sua visão dos problemas sociais se destaque mais a dimensão humana, personalista e livremente responsável, do que o determinismo mais ou menos estrito que pode resultar de uma visão naturalista.
5. Conclusão
No início, eu dizia que ao comentar esses textos de Molina, não pretendia outra coisa senão trazer a público alguns aspectos do pensamento escolástico do século XVI que, nos estudos tradicionais sobre o tema da propriedade, costumam permanecer na penumbra. Não se tratava de tirar conclusões revolucionárias, nem de buscar o que “não existe”. Mais modestamente, eu tentava apenas me aproximar de um problema de vital importância para o homem e a sociedade, que é o problema da divisão dos bens, a partir de uma perspectiva e com uma ótica que possam facilitar o acesso aos doutores escolásticos—e, especificamente, a Luis de Molina—para aquelas pessoas pouco familiarizadas com a metodologia jusnaturalista e mais inclinadas a enfoques positivos. Espero que estas páginas, com o recurso simples aos “modelos” como instrumento expositivo do pensamento de Molina, cumpram o objetivo que me propus.
Francisco Gómez Camacho
Instituto “Francisco Suárez” do C.S.I.C., Madrid.
Notas
[1] Carmelo Viñas y Mey, Doctrinas de los tratadistas españoles de los siglos XVI-XVII sobre el comunismo, Madrid, 1945, Biblioteca de Clásicos Sociales Españoles. O autor seleciona uma série de textos de autores espanhóis desses séculos, que classifica em quatro grupos: 1) Políticos e economistas; 2) Moralistas; 3) Teólogos, juristas e tratadistas de Justitia et Iure; 4) Tratadistas das Índias.
[2] Veja-se, por exemplo, Johannes Messner, Etica social, política y económica, a la luz del derecho natural, Madrid, 1967, ed. Rialp. También, J. M. Díez Alegría, El desarrollo de la doctrina de la ley natural en Luis de Molina y en los maestros de la Universidad de Evora de 1565 a 1591, Estudio histórico y textos inéditos, 1951.
[3] Utilizo-me do termo “visão”no sentido exposto por J. A. Schumpeter em seu History of Economic Analysis, Oxford University Press, 1954, p. 41.
[4] “Quoniam in eo statu absque ullo labore terra affatim suppeditaret hominibus necessaria neque ulla in eis esset inordinata affectio ad temporalia, qua unus in aliorum iniurian ac detrimentum aliquid sibi vellet usurpare. Si qua etiam cultura esset opus, illa exigua esset, et absque labore quasi animi gratia, nullusque ad earn renitentiam aut aversionem ullam haberet: quo fit, ut decens ac expediens tunc fuerit communis rerum possesio, qualis a Deo, ipsa rerum institutione, fuerat hominibus collate”. Luís de Molina, De Iustitia et Iure, vol. I, tract. 2., Disp. 20, col. 149.
[5] “Quoniam cum ex una parte post peccatum terra, ut hominibus necessaria suppeditet, nimio eorum labore et sudore indigeat, ut experientia testatur, spinasque et tribuios, atiam culta, germinet, ut Genes. 3 habetur : ex alia vero parte homines post peccatum segnes ac debiliores ad laborandum effecti sint, abundentque pravis affectibus et cupiditatibus ; sane si toti hominum communitati essent omnia communia, nullus culturam et administrationem temporalium rerum propter laborem et molestiam, quam adiunctam habet, curaret; cum tarnen singuli optimis quibusque rebus potiri vellent. Unde necessario sequeretur penuria et rerum egestas, orirentur rixae et seditiones inter homines circa rerum temporalium usum ac consumptionem, robustiores opprimèrent debiliores, nullus in rebus publicis servaretur ordo, dum singuli se caeteris pares arbitraretur, singulique proinde id muneris sibi vellent quod plus commodi et honoris, minusque molestiae et defficultatls haberet, nullusque id subiré vellet, quod laboriosum, sordidum et abiectum esset, reipublicae necessarium: ut ergo haec omnia absurda tollerentur, unicuique demandata est cura et administratío propriarum rerum: atque ita expedians ac necessariumomnino fuit dividi rerum dominia, ut re ipsa divisa intuemur”. Luis de Molina, De Iustitia et Iure, Vol. I., tract. 2, Disp. 20, col. 149.
[6] O pensamento de Molina, no ponto que nos interessa, não depende de forma alguma da interpretação que se faça do pecado original. Basta-nos admitir que existem duas possíveis formas de convivência humana: uma em harmonia, sem paixões humanas desordenadas e sem fadiga no trabalho; a outra, conflituosa, na qual o trabalho é fatigante e a ordem anterior desapareceu. Na verdade, e como veremos mais adiante, Molina nem sequer associa de maneira exclusiva a propriedade comum ao estado de inocência; a propriedade comum pode existir após a queda. É, portanto, marginal o papel que ocupa, em seu pensamento sobre a propriedade, a dimensão histórica do “estado de inocência” e o pecado original, tema no qual não precisamos entrar.
[7] “Quare non fuit (ipsa actualis rerum divisio) de iure naturali, sed humano : obligatio tarnen ut fleret, esse potuit de iure naturali, non semper, sed quando ex eo quod non fieret, imminerent gravia mala. neque inter omnes, sed inter eos tantum, inter quos ea mala imminerent. Atque hoc tantum est quod loannes Medina voluit”. Luis de Molina, De lustitia et lure, vol. I, tract. 2, Disp. 20, col. 153.
[8] “Alicui hominum congregationi, etiam post naturam lapsam, expedientior est possesio rerum in communi quam earum divisio et appropiatio singulis. Haec conclusio in primis locum habet in congregationibus religiosorum, qui ad sectandam perfectionem renuntiatio seculo in paupertas [...] Deinde, conclusio proposita locum habet etiam, quando communitas aliqua, etiam coiugalium, valde esset insignis in sanctitate, ut erant fideles Hierosolymitani in principio nascentis Ecclesiae [...]” Luís de Molina, De Iustitia et Iure, Vol. I, tract. 2, Disp. 20, col. 153.
[9] Carmelo Viñas, na obra citada, escreve: “A descoberta da América exerceu influência decisiva no desenvolvimento das doutrinas sociais e reformulou com características novas o problema doutrinário do comunismo. Os mitos da idade de ouro, estado de natureza, retorno ao princípio, que vinham gravitacionalmente sobre o espírito daquela sociedade, recebem novo impulso, e se concretizam e qualificam na corrente das utopias ao encontrar na América uma presunta realidade. Lá havia, de fato, uma sociedade em estado de natureza, e a visão idealizada dela, em contraste com a europeia, fez acreditar existir na América o primitivo modelo feliz de vida na aurora do homem e da História [...]”
[10] “Atque quod ad rerum divisionem attinet, si prorsus tolleretur, tot inde orirentur mala ut proculdubio culpa esset lethalis eam omnino tollere. Si autem tolleretur, non dubito quin factum teneret. Ratio est, quoniam quemadmodum humana voluntas sufficiens causa fuit ad rerum divisionem inducendam, sic quoque sufficiens videtur ad illam tollendam”. (Luis de Molina, De Iustitia et Iure, vol. I, tract. 1, Disp. 5, col. 21)
[11] “Tribus modis potuisse legitime institui ao introduci rerum divisionem. Primo, potestate paterna, per primum parentem ante diluvium, et per Noe post diluvium; eoque modo arbitrer fuisse introductam [...] Secundo, fieri potuit rerum divisio multiplicatis iam hominibus, electoque per eos aliquo in principem communem, auctoritate cuius bona ad illud usque tempus communia dividerentur. Tertio potuit fieri communi hominum consensu, ao pacto [...]” (Luis de Molina, De lustitia et lure, vol. I, tract. 2, Disp. 20, col. 154.)