Texto introdutório (Hélio Sena):
Neste ensaio de José Guilherme Merquior, quando escrevia para o Jornal do Brasil (RJ), o texto faz parte de uma das várias séries de bombardeios que o intelectual brasileiro estabeleceu contra a psicanálise como método terapêutico e científico por volta da década de 80. A recepção negativa da comunidade psicanalítica em relação aos seus escritos, não foi o suficiente para impedir o liberal de desafiar os conceitos centrais da teoria do austríaco Sigmund Freud, o médico neurologista responsável pela fundação e desenvolvimento desse campo clínico de investigação. Ao longo do texto, Merquior demonstra ser um conhecedor da bibliografia literária sobre a psicanálise, fornecendo diversos estudos, sejam eles críticos ou apologéticos, para que não haja sequer suspeitas de que suas objeções foram formuladas por um mero leigo no assunto, mas sim que ela foi concebida por um dos mais irreverentes sábios que o Brasil teve no século XX.
A superstição psicanalítica (I)
—Não existe nenhuma instância superior ao tribunal da razão.
(Freud. O futuro de uma ilusão)
Quatro decênios após a morte de seu fundador, a psicanálise goza de inegável prestígio no mundo ocidental. Mas esse prestígio possui duas dimensões. Por um lado, é uma posição intelectual; por outro, um status social. Ambos variam bastante conforme as diversas culturas nacionais. Nos Estados Unidos, por exemplo, a psicanálise ainda usufrui considerável apreço social, mas seu desprestígio intelectual, ao contrário do que ocorria há 30 anos, é cada vez mais ostensivo. Na França, longamente refratária ao freudismo como teoria e como instituição, a psicanálise conquistou, dos anos 60 para cá, uma notável influência intelectual e uma grande penetração social.
Já na Inglaterra a chamada revolução freudiana obteve maior prestígio, quer teórico, quer prático. Lá morreu, exilado, o anglófilo Sigmund Freud; e lá se administra até hoje a sua herança direta. Porém o movimento psicanalítico jamais se impôs a produção intelectual e a prática psiquiátrica britânicas.
Para situar o Brasil nesse conjunto. Não é preciso dar tratos à bola; estamos seguindo, festivamente, o caminho da França. O Freudismo virou uma verdadeira cachaça intelectual em Pindorama—e os preços mirabolantes das consultas de analistas atestam que a implantação da terapia do divã é um sucesso de estrondo. Daí a conveniência de aquilatar o valor da psicanálise. No momento em que esta última invade o ensino de humanidades e investe como investe o nosso corpo social ao nível, bem entendido, da burguesia pagante e esbanjante, cabe, no mínimo, indagar sobre a natureza das ideias freudianas e seu teor de ciência.
Em seu conjunto, a psicanálise (Há diferenças de dissidências confessadamente irracionalistas, como a Escola de Jung) nunca abdicou de suas pretensões científicas—e é de supor que a maioria de seus clientes a tornem como um saber racional, e não como um simples curandeirismo sofisticado. Quando o saudara, no seu septuagésimo aniversário, como o “descobridor do inconsciente”, Freud teve a vaidosa modéstia de replicar que na verdade essa descoberta tinha sido feita, bem antes da psicanálise, por vários poetas e filósofos; o que ele, Freud, havia descoberto era tão só o “método científico” para estudar o inconsciente. Pois se é assim, tomemos Freud ao pé da letra e vejamos qual o valor científico, racionalmente testado, de suas teorias.
Testar a força explicativa das teorias de Freud significa medir seu coeficiente empírico. Neste ponto, uma primeira dificuldade se refere ao próprio conceito básico, o de inconsciente. Sendo, como é, por definição, estritamente privado e inacessível ao exame direto, o inconsciente freudiano não é, em si, empiricamente investigável. No entanto, o obstáculo é menos terrível do que parece. Também na física muitas entidades submicroscópicas tem sua existência postulada, sem que possam ser diretamente observadas. A validez empírica da teoria cinética dos gases, por exemplo, repousa na construção teórica que engloba essas quantidades não observáveis. O importante é que, da teoria, podem ser derivadas hipóteses testáveis. O mesmo se passa com a teoria da estrutura atômica de Bohr. Numa palavra: tudo depende da capacidade que a teoria revele de prover “bridge statements” entre os pressupostos conceituais e o plano do fenômeno, do observável. Ora, essa capacidade na teoria freudiana do inconsciente é praticamente nula.
No mais amplo cotejo sistemático das teorias de Freud com os resultados da pesquisa psicológica empírica até hoje empreendido, The Scientific Credibility of Freud's Theories and Therapy (1976), Fischer e Greenberg consideram várias hipóteses freudianas, como o fator edipiano no desenvolvimento da personalidade masculina, os caracteres oral e anal na explicação do comportamento e a função expressiva do sonho, perfeitamente seminais para a investigação empírica.
No entanto, a avaliação concreta de cada uma dessas teorias tem mostrado sempre que, quando elas são de fato sugestivas, é muito mais como poetas da descoberta do que como elementos da explicação, tomemos o célebre complexo de Édipo. Freud supôs que o complexo resulta de uma fixação na sexualidade infantil, e mais precisamente no ciúme da criança em relação ao desempenho sexual dos pais, com a repressão do complexo dando origem a seus determinados padrões específicos na personalidade adulta. Mas tudo o que se conseguiu provar empiricamente foi que a taxa de temas de conflito entre pais e filhos do mesmo sexo é, de fato, significativamente mais alta que entre pais e filhos de sexos diferentes.
Além desse ponto, as tentativas de salvar o édipo sempre fracassaram. Assim, quando Malinowski argumentou que os nativos das ilhas Trobriand não conheciam pulsões edipianas, porque o triângulo sentimentalmente decisivo, no seu caso, envolve filho, a mãe, e o tio materno (em vez do pai), o ortodoxo biógrafo de Freud, Ernest Jones, alegou que a hostilidade do filho pelo irmão da mãe assinalava um deslocamento da rivalidade com o pai, nas sociedades patriarcais. Mas o problema é que o tio materno no arquipélago de Trobriand nem sequer coabita com sua irmã. Portanto, a “cena familiar” , cerne da explicação freudiana, desaparece, antes mesmo de poder deslocar-se.
Muitos “freudianos” modernos protestariam contra nossa insistência no fator sexual. A seu ver, o biologismo de Freud é algo datado, e de qualquer modo, irrelevante em relação ao núcleo da concepção psicanalítica do homem. Mas o preço desse liberalismo anti determinista é a liquidação das aspirações da teoria à dignidade de explicação causal. Dá-se o mesmo que no Marxismo, sempre que se abandona (ou se qualifica demais) o princípio clássico da causalidade econômica; prescindindo da determinação em termos de infraestrutura material, o marxismo fica sem dúvida menos grosseiro—mas também fica ainda menos capaz de explicar a mudança histórica.
Idêntico “emagrecimento” empírico sucede com a caracterologia de Freud. Todos os estudos demonstram que algo no gênero de um “caráter sado-anal” realmente existe. Quando um indivíduo revela tendência a ser ou frugal ou obstinado ou ordeiro, é alta a probabilidade de que venha a exibir também os outros dois traços. De novo, Freud descobriu um fenômeno significativo. Contudo, se tentarmos passar desse plano meramente heurístico, isto é, de descoberta, ao nível de explicação, verificaremos que a hipótese aventada por Freud—a determinação desse tipo de personalidade por experiência localizadas na sexualidade infantil—não possui nenhum fundamento comprovável. O mesmo se pode dizer, mutatis mutandis, do terreno em que o pioneirismo heurístico de Freud foi mais longe: o da interpretação do sonho. A última grande contestação da teoria freudiana do onirismo, desenvolvida por Charles Rycroft em The Innocence of Dreams, reafirma a perspectiva biológica—mas abandona a causalidade sexual. Segundo Rycroft, os sonhos não são realizações alucinatórias de desejos, e sim reavaliações pessoais do nosso destino biológico comum.
Freud tornou as coisas singularmente mais difíceis quando, ainda no início de sua obra, substitui a hipótese de ocorrências sexuais reais pelo simples postulado de fantasias sexuais da criança como causa de neurose, infantil e adulta. Com essa substituição, ele penetrou ainda mais no reino do empiricamente inapreensível. A partir daí, Freud vacilou significativamente entre a aceitação e a recusa da testabilidade de suas teses. Mais de uma vez, escreveu que suas observações clínicas poderiam ser checadas pela investigação sistemática do comportamento infantil. Mas noutras ocasiões, e especialmente quando confrontado com falsificações empíricas de suas teorias, preferia insistir na inacessibilidade da interpretação psicanalítica aos não iniciados (Cf. o prefácio à quarta edição de seus três ensaios sobre sexualidade).
O exame pormenorizado das afirmações de Freud acerca da recordação de traumas sexuais infantis, ou de fantasias correspondentes, produz um estranho resultado. Conforme nota Frank Cioffi, numa devastadora crítica em Explanation in the behavioural Sciences, Cambridge, 1970), o próprio Freud admite que, ao lados dos pacientes que não recordam seus impulsos sexuais infantis e conservam seus sintomas neuróticos, e dos pacientes que os recordam e se livram dos sintomas—nos dois casos, confirmando a sua teoria da repressão—existem muitos pacientes que, como os primeiros, não recordam seus impulsos sexuais da infância, porém se livrará dos sintomas; e, finalmente, pacientes que também recordam seus impulsos sexuais infantis, e contudo conservam os sintomas neuróticos daí derivados… Em suma: um cardápio de todas as possibilidades—mas, por isso mesmo, inviável como instrumento de apoio a autenticidade explicativa das reconstruções biográficas de modelo freudiano.
Mas a verdade é que Freud não se embaraçava muito com esse tipo de problema. Ao contrário: seus escritos hospedam uma quantidade impressionante de interpretações equívocas. Dir-se-ia que o inconsciente, que desconhece a lógica e é íntimo da ambivalência, mobiliza perversamente esses mesmos atributos ao tentar desempenhar o papel de conceito-chave da teoria da neurose… O Resultado é um deplorável laxismo intelectual. Um entre múltiplos exemplos; a bem conhecida história do pequeno Hans.
A educação sexual do pequeno Hans fora um modelo de tabus obscurantistas, e Freud a considera, em parte, a causa das fobias animais experimentadas pelo menino, pouco antes do seu quinto ano de idade—uma fase, para ele, crucial no desenvolvimento do Édipo de cada um. Acontece que, anteriormente aos acessos fóbicos de Hans, Freud já escrevera sobre o menino, desta vez sob o nome de Herbert—e então sublinhará que a educação sexual do garoto havia sido um paradigma de atitude esclarecida (O esclarecimento Sexual das Crianças, 1907)! Que fez Freud? Optou por uma escapatória formidável; declarou que a própria educação liberada de Herbert-Hans deve ter contribuído bastante para a sua neurótica fobia, porque, em outras crianças, a repressão, o medo de castigos, no caso de sua curiosidade sexual ultrapassar certos limites, acabavam minorando a ansiedade, ao passo que crianças liberalmente educadas não podiam contar com esse freio…
Outro exemplo: Freud Atribui a homossexualidade (aliás, para a pesquisa especializada, mais conjetural que comprovada) de Leonardo da Vinci à circunstância do menino ter passado seus primeiros anos na companhia exclusiva da mãe. Entretanto, até a segunda edição dos seus Três Ensaios sobre sexualidade, publicada no mesmo ano que Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci (1910), ele sustentava que a frequência da inversão entre os aristocratas daquele tempo era um efeito do costume das mães nobres não cuidarem pessoalmente de seus filhos… Somente na edição seguinte (1915) essa imputação seria contrabalançada por um aceno à rivalidade com a figura paterna como fator de afastamento da evolução em sentido homossexual. Dessa forma, o germe da teoria do pai ausente (mais tarde desenvolvida pelo inglês Winnicott) vinha salvar, in extremis, um ponto central da interpretação do Leonardo. Mas, como em tantos outros passos, o leitor fica com a sensação de que os explanantes são convocados Ad Hoc para sustentar um dogma (O pandeterminismo da sexualidade infantil) , em vez dos explananda serem reinvestigados com isenção científica.
Que devemos concluir dessa lógica bifronte? Que as explicações de Freud são do tipo preso por terção, preso por não ter. Os psicanalistas costumam apontar, com orgulho, para o fato de Freud ter mostrado que “tudo tem significação” em nossa vida. Mas justamente, trata-se de não prejulgar o significado das nossas experiências. Por isso é que a moderna filosofia da ciência estipula que, quanto mais uma teoria exclui, mais falsificável ela se torna, e, por conseguinte, mais sujeita ao teste empírico.
O mal da psicanálise é que ela padece de um tremendo apetite de inclusão; forceja por adaptar tudo, mesmo o contraditório, às suas pseudo-explicações. Quando se vai ver, caímos no vício que Chesterton ridicularizava em certos biógrafos, a mania de achar tudo tão “significativo” que, “se o biografado deixava cair seu cachimbo, isso é sinal de sua característica negligência; mas se ele o apanha, isso é típico dos seus hábitos cuidadosos...”