“A superstição psicanalítica”, por José Guilherme Merquior [Parte 2]

“A superstição psicanalítica”, por José Guilherme Merquior [Parte 2]

Texto de introdução (Hélio Sena), 
Continuação do ensaio de mesmo título, Merquior expande sua oposição à psicanálise investigando as vertentes neofreudianas que ampliaram os estudos de concepções-chave dessa abordagem psicoterapêutica. Certas vertentes que utilizam do estruturalismo da linguagem, como as de Lacan e seus aprendizes para explicar o inconsciente, por exemplo. Ao decorrer de sua argumentação, ele promove que os psicanalistas cumpram seu dever de defender suas teorias no campo intelectual, atacando as contestações a elas e não quem particularmente contesta, caso queiram manter a dignidade de suas posições no mérito científico e terapêutico, das quais o autor fundamenta que a psicanálise está ausente em ambas as partes. Esta conduta de exigir que os seus oponentes sejam precisos com os seus argumentos pode vir da experiência que Merquior teve debatendo publicamente com o psicanalista Eduardo Mascarenhas, que, por falta de caridade, foi injusto ao levar com pouca seriedade as teses do seu adversário e o acusou de “terrorismo bibliográfico”, alguém que possuía uma rica quantidade bibliográfica para desenvolver o seu estudo crítico para contrariar a acusação. Na verdade, Merquior chega a admitir que a psicanálise, embora na sua demonstração clássica tivesse atestado inúmeros erros, ainda era uma posição significativa nos desígnios intelectuais de sua devida época. Algo que não pode ser dito das diversas correntes que surgiram ao longo do século, que fuçaram novos horizontes teóricos para sustentarem o seu campo de estudo que, segundo Merquior, acabou tornando-se cada vez mais inculto e incrédulo conforme os tempos passavam. Embora o texto tenha sido escrito na década de 80, a validade da crítica de Merquior atualmente pode ser testada, baseado no ensurdecedor silêncio que a comunidade psicanalítica brasileira fez aos textos de um dos maiores nomes que o Brasil teve intelectualmente.

A superstição psicanalítica

Possivelmente as falhas lógico empíricas da psicanálise estão ligadas ao caráter expressivamente antropomórfico da teoria do inconsciente. Freud encarava sua teorização como mais uma etapa na série de revoluções copernicanas que, como a do próprio Copérnico e a de Darwin, destronaram a presunção humanística de um privilégio ontológico do homem, estabelecendo em vez dele maior continuidade entre o Anthropos e a natureza. Nessa linha de ideias, e por fidelidade a sua formação médica, Freud concebia a doutrina do inconsciente como uma mera tática explanatória, a estratégia permanecia uma explicação de tipo neurofisiológico, naquele tempo ainda pendente de futuros avanços da pesquisa biológica. Mas o certo é que o inconsciente tal como ele o descreve ainda é algo decididamente humano demasiado humano. 

Trata-se de um sujeito meio violento e agressivo, mas no fundo extremamente parecido conosco. Que diferencia em relação aos frios mecanismos inconscientes explorados em outras disciplinas, como a gramática profunda na linguística de Chomsky. Se a ciência efetivamente procede como quer Piaget, por sucessivas descentragens desantropomorfizantes, a psicanálise mal se dá para a partida. 

Entretanto, muitos defensores atuais da psicanálise não se incomodam com esse tipo de objeção. Se a maioria dos psiquiatras acha que as doenças mentais resultam da interação de fatores constitucionais, físicos e emocionais, e encontram justificativas para a barreira estabelecida pela psicanálise entre as desordens psicogênicas e o mundo do orgânico, outros teóricos sustentam que a psicanálise “não é uma ciência de observação e sim de interpretação” (Paul Ricoeur). Desse ângulo o freudismo constituiria uma das humanidades, mais próximo da filosofia humanística e até da literatura do que do naturalismo inerente à ciência. 

Nesse habitat humanístico é que prospera, como é fácil deduzir de sua localização universitária, o chamado “retorno a Freud” comandado por Jacques Lacan. O axioma fundamental do lacanismo é bem conhecido: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Não obstante, essa portentosa “descoberta” se reduz uma vez examinada, a uma afirmação ou trivial ou falsa. Se com isso os lacanianos querem apenas dizer que as manifestações do inconsciente passam todas pela linguagem — essa premissa  altissonante tem foros de verdade. Não se vê, porém, a que leve ela , nesse plano de mera generalidade de bom senso. A afirmação é correta, porém trivial. 

Se, no entanto, a tese de que o “inconsciente é estruturado como uma linguagem” aspira, como é natural, a dizer algo mais do que isso, então deparamos imediatamente com mais diferenças do que semelhanças entre inconsciente e linguagem. Um dos maiores linguistas do século, Émile Benveniste, formulou esse ponto de maneira modelar. Observou-se que o simbolismo linguístico se diferencia radicalmente da simbolização do inconsciente em pelo menos três aspectos. Primeiro, a linguagem é algo que se aprende. Segundo, articula-se em signos de extrema diversidade, combinados em tantos sistemas formais quanto as várias línguas naturais existentes. Terceiro, seus signos são, conforme notou Saussure, arbitrários, cada língua podendo empregar um significante diverso do da outra para o mesmo significado.

Face tudo isso, o simbolismo do inconsciente não é objeto de aprendizagem e universal—os sonhos e neuroses que o traduzem constituem um “vocabulário” comum a todos os povos e indivíduos, e seus significantes são ligados ao significado de maneira acentuadamente motivada e não arbitrária. Em síntese, o inconsciente pode ser tudo, menos precisamente, “estruturado como uma linguagem”, e o lacanismo, com todo o seu ar de saber esotericamente rigoroso, não passa de uma pedante mistificação. 

Com a fragilidade do “fundamentalismo lacaniano”, esgota-se o valor de conhecimento da teoria do inconsciente. Pois o lacanismo, indiferente ao reino das emoções esvazia a psicanálise até mesmo daquela dimensão de descoberta que ela possuía (embora e logo a comprometesse ao nível explicativo). De nada adiantaria a um lacaniano retorquir, como no tempo em que Sartre denunciava o conceito de inconsciente como uma forma de má fé, que “o inconsciente não se refuta” , Sartre descartava o inconsciente a priori, em nome dos dogmas da filosofia da transparência do cogito. Já a nossa crítica, sem recusar de modo algum a existência de um psiquismo infraconsciente, exige apenas que seus teóricos, ao identificá-lo com pulsões sexuais ou com mecanismo linguísticos, sejam capazes de defender suas hipóteses em termos de boa lógica e suficiente documentação empírica. O ônus da prova—nesta como em qualquer teoria—não incumbe aos críticos e sim aos teóricos freudianos ou neofreudianos. 

E que não nos venham com aquela piada de mau gosto que consiste em tentar a desqualificação da crítica insinuando que ela é um produto da “resistência” dos críticos. Nada disso! Que haja ou não resistência é totalmente irrelevante no que concerne ao mérito científico dos argumentos apresentados. Os psicanalistas têm que enfrentá-los, e, se puderem, refutá-los—mas atacar os críticos em vez das críticas é foul. Aliás, pelo mesmo motivo, não recorro a sedutora tese de Carl Schorske (em Fin-de-Siècle Vienna, 1979) , segundo a qual Freud se voltou para a psicologia da profundidade como uma compensação para seus ressentimentos e frustrações de judeu liberal na Aústria finissecular, a psicanálise seria um meio de reduzir os conflitos políticos a epifenômenos da psique, Schorske pode estar certo ou errado—mas em qualquer dos casos, sua interpretação em nada afeta o valor cognitivo da psicanalise. A qualidade de uma teoria não depende do caráter da motivação que levou o teórico a propô-la.

Restaria saber se a psicanálise, apesar de tão precária como ciência, possui valor terapêutico. O próprio Freud autorizou por vezes essa disjuntiva. Ao relatar a história do pequeno Hans, reconheceu que a psicanálise não é uma investigação científica imparcial, mas uma medida terapêutica. Sua essência não é provar coisa alguma, mas simplesmente mudar algo, infelizmente o recorde psicanalítico nesse campo é tão desanimador quanto o outro. A própria meia-dúzia de casos clínicos discutidos a fundo por Freud, só contém uma instância de êxito terapêutico indiscutível. Dora recebeu um tratamento demasiado breve, sem efeito positivo observável, a análise do pequeno Hans foi conduzida heterodoxamente por seu pai, um fanático freudiano, o “homem dos lobos” foi analisado por longos anos e por diferentes analistas, mas o processo não impediu o colapso paranoide do paciente…

Mas isso é apenas indicativo. Se passarmos ao que interessa, isto é, a comparação sistemática da terapia analítica com outros métodos psicoterapêuticos ou, o que ainda é mais instrutivo, com a ausência pura e simples de tratamento psiquiátrico, constataremos que existe uma correlação inversa entre as taxas de recuperação e as de tratamento psicoterápico, com a psicanálise exibindo a pior taxa de recuperação de todos os métodos. Até mesmo os simpáticos e generosos Fischer e Greenberg se sentem obrigados a concluir que “a psicanálise não se mostrou significativamente mais eficaz que outras formas de psicoterapia, com nenhum tipo de paciente”.

Críticas mais recentes salientam a incidência, na psicanálise, do efeito iatrogênico do mal causado pelo próprio tratamento clínico. No caso do freudismo, isso parece estar bastante ligado a frequência com que os pacientes partem para a análise já familiarizados com a doutrina ou passam a estudá-la no curso do tratamento. Comumente, o analisado ou ex-analisado vira um analista amador, maniacamente propenso a interpretar o seu comportamento e o alheio com as categorias de Freud, para não falarmos na chatice com que insiste no proselitismo. Certamente, o poder de sugestão da psicanálise é enorme—e no mínimo, bem maior do que a sua capacidade de cura. 

O próprio número—escasso—de “curas” psicanalíticas não deixa de recair sob fortes suspeitas. A mais simples delas é a de que, com a longa duração que caracteriza o tratamento analítico, o paciente melhora porque melhoraria de qualquer maneira, devido a simples passagem do tempo. Essa hipótese é reforçada pelo fato de que, nos nossos dias, o analisado médio é muito menos aflito e agitado do que as histéricas consulentes de Freud, entre outras razões porque a evolução dos costumes se deu—em boa parte graças à influência das ideias psicanalíticas—em sentido notoriamente liberalizante e permissivo, muito mais benigna do que os distúrbios mentais não psicóticos vitorianos, a neurose moderna possibilita graus bem mais amplos e flexíveis de convivência do paciente com seus problemas. 

Bem sei que muitos fanáticos reagiriam com o maior desprezo a estas nossas preocupações com eficácia terapêutica. Para a maioria dos analisados “esclarecidos” de hoje, a questão da cura já era. “O importante é a gente conhecer a si mesmo” , inclusive porque, como sabemos, neurose por neurose, “todo mundo é neurótico”. Lamentavelmente, no entanto, essa alegação oniabrangente só é iluminadora se  referida ao nível global da espécie humana . Animal prematuro, presa de uma emotividade desconhecida em outras espécies, o homem pode ser de fato considerado um mamífero altamente “neurótico”. Assim, que transporta ao plano das pessoas, individualmente consideradas, a tese da universalidade da neurose se mostra clamorosamente deformante—e jamais seria, aliás, aceita por Freud, que afinal de contas era médico o suficiente para não confundir todos os seres humanos numa mesma categoria. Sob a aparência de uma reprise da sabedoria clássica e de seu nobre mandamento, “nosce te ipsum” [conhece a ti mesmo], o enunciado dogmático da neurose geral talvez obedeça a uma motivação infinitamente menos elevada—algo na linha do que Nietzsche diagnosticou como o ressentimento do homem moderno. “Todo mundo é neurótico”—porque, no fundo, o que eu secretamente não posso suportar é a ideia de que você seja bem mais equilibrado, maduro ou, simplesmente, feliz do que eu…

Vastamente furada como explicação da vida psíquica, pasmosamente ineficaz como terapia, a psicanálise se assemelha àquela faca de Lichtenberg, uma faquinha sem cabo, a qual por outro lado, só faltava a lâmina. Uma miragem de nossa cultura — é uma prática social de funções muito diversas do que as declaradas. Que funções? Freud fazia praça do impacto escandalizante que tinha e teria a psicanálise, como violação dos tabus sexuais vitorianos. Mas seu conterrâneo Wittgenstein via as coisas de modo diferente. Em sua opinião, em vez de chocar a teoria freudiana da sexualidade como raiz do comportamento que possuía muito charme, como o próprio Freud chegou a admitir no mundo atribulado e hostil do século XX, pensava Wittgenstein, o mito de um inconsciente cálido e ubíquo funcionava como uma espécie de anjo da guarda de cada um “protegendo-o” da excessiva impessoalidade do ambiente material e social. 

Leslie Farber, o mais “marginal” entre os psicanalistas americanos, escreveu recentemente que, na busca do significado de nossa vida, surge inevitavelmente a tentação de estetizar tanto as nossas próprias experiências quanto as nossas conclusões. A análise é de fato um convite permanente a se dar aos acontecimentos e relações pessoais uma forma mais deliberada e dramática do que eles efetivamente tinham ou mereciam. Creio que Farber acertou em cheio. O êxito social da psicanálise parece vinculado à demanda do narcisismo barato de certa cultura burguesa , em sua presente fase permissiva. As observações de um Robert Castel sobre o contexto social da epidemia psicoterapêutica na França de hoje corroboram essa impressão. O narcisismo é com efeito o ideal do ego contemporâneo, embora não exatamente no sentido que acaba de lhe dar Christopher Lasch em The Culture of Narcissism. O analisado “progressista”, típico dos nossos dias é invariavelmente um contemplador do próprio umbigo—mas com uma pequena diferença, é um egocêntrico tremendamente inseguro, e, nessa medida muito mais um candidato a narciso do que um autêntico a narcisista. 

Naturalmente, esse egocentrismo alienado não encontra corretivo na maioria do atual “clero” psicanalítico, no geral composto de analistas incomparavelmente menos cultos e responsáveis do que os pioneiros do movimento. Em 1920 ou 30, enquanto errônea como pretensa teoria psicogênica, a psicanálise ainda era uma heurística séria e uma corrente libertária. Em 1980, torna-se cada vez mais difícil evitar a conclusão de que , em seu conjunto, ela constitui apenas uma oca e lucrativa superstição. Para o prêmio nobel Peter Medawar, o “dinossauro” representado pelo freudismo é o mais estupendo embuste intelectual do século XX.

No fundo, para ter um mínimo de funcionalidade social, a psicanálise era um pouco como a política econômica keynesiana, ela pressupunha um contexto de moderação. Assim como as gestões keynesianas da economia só funcionavam quando as exigências feitas pelos diversos grupos sociais aos estados democráticos ainda eram razoáveis e modestas, e não alimentavam  a espiral inflacionária e sua conhecida nemesis a “stagflation”, o efeito positivo da psicanálise provavelmente dependia da existência de um número restrito de neuroses genuínas, cercadas pela massa do autocontrole geral. Do mesmo modo que o equilíbrio dinâmico do keynesianismo repousava na moderação da moral econômica, o libertarismo da psicanálise dependia da moderação da cultura moral. Tudo isso, ou quase tudo ruiu quando as ideias de Freud viraram a “gíria do nosso tempo”, Lionel Trilling, e a era do “homo psychologicus”, passou a confundir a libertação psíquica do indivíduo com uma patética propensão a “consumir” egos postiços.

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