Texto introdutório, Vitor G. Calado:
Este texto, retirado originalmente do blog do padre e teólogo dominicano Giovanni Cavalcoli, comenta nesta primeira parte sobre alguns pressupostos metafísicos e teológicos da doutrina de Aleksandr Dugin: seu pano de fundo cristão ortodoxo que acompanha também toda uma tradição de superstições da Rússia, bem como fontes de demais religiões orientais, o que tem como implicação última aquilo que, em português, chamaríamos de "samba do crioulo doido"--faltou ao autor do texto original a língua portuguesa com toque brasileiro e abundou respeito, um respeito e tratamento típico da ética dominicana (nada disso é uma qualidade essencialmente negativa) para usar esse tipo de expressão. De resto, por ser um texto que não foi retirado de fontes acadêmicas, este artigo traduzido está mais sujeito a imprecisões teóricas do que os demais textos postados neste website. Mesmo assim, ainda é um artigo de grande valia, sobretudo para os cristãos--especialmente católicos--sobre os perigos deste pensamento pernicioso que já põe suas garras em intelectos brasileiros.
A Terceira Roma de Aleksandr Dugin (primeira parte)
“A Rússia não é europeia, é uma civilização com aspectos asiáticos e europeus, nós somos a terceira Roma, também continuadores de Gengis Khan, do império mongol”.
— Alexander Dugin
1. Uma visão cristã gnóstica para dominar o mundo
As guerras são ações coercitivas coletivas voluntárias, ardentes de paixão frequentemente desenfreada, movidas por certas intenções concebidas por um pensamento muitas vezes entusiasmado e excitado por perspectivas heroicas, atraentes, envolventes e fascinantes, tanto que levam povos e nações até mesmo a matar e arriscar a vida na esperança de conquistar ou realizar aquelas metas ou aqueles objetivos ou aqueles bens que são feitos brilhar ou prometidos por aqueles que os persuadiram a se lançar em conflitos sangrentos, longos e terríveis.
O que é que leva os homens armados a essas empreitadas dramáticas, que exigem decisão, clareza de intenções, convicção, disciplina, esforço, resistência, sacrifício, coragem, treinamento, tenacidade, ousadia, enormes fadigas e desconfortos? São ideias. São intenções concebidas pela mente. É a convicção arraigada de que é justo, é necessário agir assim.
Quais são as ideias que estão por trás da invasão da Ucrânia pelos russos? Alguns dizem: não são ideias, são puros interesses materiais de dominação, são paixões desenfreadas, são instintos de vingança, impulsos diabólicos. Sim, há isso, mas não só isso. Os soldados russos não são um tsunami, não são um exército de gafanhotos, não são o coronavírus. Não são nem mesmo as hordas dos bárbaros do século V ou dos tártaros do século XIII. São membros de um dos Estados e exércitos mais modernos, poderosos e bem organizados do mundo. São pessoas humanas, são em sua maioria cristãos ortodoxos, são nossos irmãos, diria o Papa Francisco.
Mas como isso é possível? E, no entanto, é possível. É um fato. E a história sempre o demonstra. Contra factum non valet argumentum. Até os cristãos podem se tornar crueis e matar outros cristãos. Até os cristãos podem ser instigados pelo demônio. Até os cristãos podem ser iludidos por utopias, cegados pela soberba, movidos pela cobiça das riquezas, invejosos da primazia dos outros, vencidos pelas paixões, podem enlouquecer. Até os cristãos podem se enganar ao julgar se vale a pena morrer e matar. Ortodoxos podem matar católicos e católicos podem matar ortodoxos. É o que está acontecendo na Ucrânia, e não é a primeira vez.
Os povos são arrastados para as guerras ou por paixões nacionalistas ou por sedutores habilidosos, que sabem adular, fascinar, subornar e hipnotizar as massas, falsos profetas com palavras mágicas, aduladores do povo ao fingir servi-lo, enquanto na realidade visam a própria afirmação e a dominar as consciências, talvez eles mesmos iludidos antes de serem os ilusores, enganados antes de serem enganadores.
Um deles é o erudito e fecundo filósofo-teólogo Alexander Dugin, cujas ideias ecoam e são encontradas nos discursos de Putin e do Patriarca Cirilo. Mas são em sua maioria ideias da fé cismática ortodoxa russa, porque, no conjunto de seu pensamento, Dugin não é um cristão, mas um gnóstico esoterista fortemente sincretista devido aos seus vastíssimos e variadíssimos conhecimentos históricos e teóricos no campo filosófico e teológico oriental e ocidental.
Tentaremos ver quais ideias de Dugin podem ter influência sobre os cristãos Kyrill e Putin, e quais provavelmente lhes são estranhas pela evidente incompatibilidade não apenas com o cristianismo, mas com uma concepção correta de Deus, do homem e do mundo, sem, no entanto, excluir que eles possam estar sendo enganados por alguns erros.
2. O Deus uno emanador do homem e do mundo
A visão teológico-metafísica de Dugin é intermediária entre o teísmo e o panteísmo, e, mais precisamente, é o teísmo plotiniano[1] do Uno-Tudo, não criador, mas emanador e difusor da multiplicidade dos entes, considerada como totalidade e comunidade dos diversos, que, na sociedade humana, traduz-se na sinodalidade (sobornost) pluralista e diversificada dos povos, das nações, dos territórios, das pátrias, das religiões, dos costumes e das culturas.
Na raiz de Plotino, como sabemos, está Platão. Todo o cristianismo oriental grego, como sabemos, esteve sempre sob a órbita de Platão. Os Padres gregos são platônicos[2]. Ora, para Platão, Deus é o Bem acima do ser. O princípio supremo da unidade, ligado ao amor, ao eros, e, portanto, ao belo. Não exclui a verdade, mas a transcende, assim como o bem e o belo são a plenitude e a perfeição do ente. A contemplação afetiva é mais importante do que a especulação intelectual. A experiência mística, apofática, é mais importante do que o conhecimento conceitual expresso na palavra. A teologia negativa prevalece sobre a teologia positiva.
Além disso, Deus não é o criador, mas o emanador do mundo. O ser flui de Deus; não é criado do nada. Deus certamente é superior ao mundo, como o céu é superior à terra, como o todo, olos, é superior à parte, meros, como a essência, ousìa, é superior ao fenômeno, fainomenon, como a ideia, eidos, é superior à imagem, eikòn, como o modelo, paràdeigma, é superior à imitação, mimesis, como a nòesis, o nous, a intelecção, é superior à sensação, aisthesis, como o inteligível, noetòn, é superior ao sensível, aisthetòn, como o conhecimento, gnosis, é superior à opinião, doxa, como a vontade, bulè, é superior à paixão, pathos, como o amor, eros, é superior à concupiscência, epithymìa, como o espírito, nous, é superior ao corpo, soma, como o eterno, aiòn, é superior ao tempo, chronos.
Indubitavelmente, uma teologia como a de Dugin, ortodoxa, baseada apenas na noção platônica da participação, sem a modificação dada pela analogia aristotélica, não está totalmente a salvo do panteísmo, porque a participação não expressa claramente a distinção ontológica entre o participado e o participante, podendo este ser parte da essência daquele. Em contrapartida, o princípio da analogia, situando-se decisivamente no plano do ente, do ser e da existência, e não apenas da essência, distingue mais claramente a existência do mundo da existência de Deus. E, de fato, a Bíblia, para demonstrar a existência de Deus, recorre à analogia (Sab 13,5)[3].
Deus é o Uno-Tudo, tema este fundamental na teologia de Soloviev, que o assumiu de Schelling, tema certamente de origem plotiniana. O Pai, o Inteiro originário, que se determina e se distingue—eis a Trindade—, participa-se nos espíritos finitos, homem e anjos, finitiza-se, divide-se, multiplica-se, materializa-se, temporaliza-se, expande-se e desce na multiplicidade—eis os entes finitos—, até à oposição, no agir do homem e dos anjos, do bem com o mal, da justiça com o pecado[4].
Mas, quando os entes chegam ao máximo extremo da distância, da conflituosidade, da divisão, da multiplicidade e da oposição a Deus, o Pai ordena em Cristo, e pela obra de Cristo, Verbo feito carne, o retorno e a recomposição de tudo na unidade primordial e originária. Tudo se reconcilia com tudo e retorna ao Uno, ou seja, na unidade comunitária e pacífica do Espírito. Esta é, claramente, uma visão na qual, como em Orígenes,[5] o inferno não existe.
Apesar da sua vontade de se colocar na tradição filosófico-teológica russa, contrapondo-a à ocidental, Dugin não parece escapar totalmente ao fascínio da filosofia idealista romântica alemã,[6] tangenciando o panteísmo, que é endêmico à filosofia indiana, que ele desejaria incorporar numa síntese teológica euroasiática, que é o programa e a proposta de sua teologia, ou melhor, sua gnose[7] ou teosofia. Da referida filosofia alemã, aliás, foram influenciados, no século XIX, os filósofos russos, como, por exemplo, Soloviev e os eslavófilos.
A concepção da Santíssima Trindade do ortodoxo Dugin exclui a processão do Filho pelo Pai, com prejuízo para a dignidade do Filho, privado de sua potência pneumática, com a consequência de ignorar a espiritualidade e a infalibilidade do carisma petrino, vigário de Cristo, e de privar a Igreja de seu fio-condutor humano.
Disso, pela falta de um princípio de comunhão e de unidade, nasce o particularismo nacionalista e autocéfalo das Igrejas ortodoxas, em constantes contrastes doutrinais e pastorais entre si, e sempre com o risco de subordinação ao poder político, como vemos hoje na atitude do Patriarca Kyrill em relação a Putin.
É verdade que a Igreja Ortodoxa percebe fortemente o princípio de unidade que vem do Espírito Santo, animador da sinodalidade, sobornost, e isso permitiu, sem dúvida, que a Ortodoxia conservasse o Símbolo da fé, os sacramentos e a disciplina eclesial, bem como a estima e a prática da santidade, de modo que o protestantismo abriu as portas a processos degenerativos que, nos séculos seguintes a Lutero, com a contribuição de Descartes, chegaram ao panteísmo, ao ateísmo e ao niilismo.
Nada disso ocorre na Ortodoxia, que manteve o respeito pelos primeiros sete Concílios ecumênicos anteriores ao cisma, pela Patrística, pela sacralidade da liturgia e pela santidade da Igreja, produzindo uma riquíssima história de espiritualidade, que encontra um eco insistente nos apelos de Dugin à importância da Tradição e dos valores morais perenes e absolutos, ao culto de Deus, à virtude e à santidade, contra o protestantismo, o secularismo, o liberalismo, o individualismo, a hybris, o relativismo, o demagogismo, o materialismo, o ateísmo, o modernismo e a corrupção moral do Ocidente.
Dugin, apoiando-se no misticismo tradicional russo,[8] sustenta que a Rússia cristã ortodoxa tem a missão de acolher, sublimar, sujeitar, purificar, coordenar e unificar as grandes visões metafísico-religiosas tradicionais populares da Ásia, todas as quais, segundo ele, possuem essa teologia tradicional, sapiencial, espiritual, popular, monista, emanacionista, cíclica, litúrgica, iniciática e apofática. E as visões seriam o bramanismo indiano, o budismo japonês, o parsismo persa, o islamismo do sul da Ásia e o taoísmo chinês. Dugin extrai essa visão sincretista das religiões asiáticas das obras de Julius Evola.[9] Essa tendência sincretista também empurra Dugin para a teosofia.[10]
Dugin polemiza contra o globalismo maçônico e liberal difundido pelos Estados Unidos, contra a modernidade, efeito do abandono dos valores morais tradicionais, perenes e universais, contra a irreligiosidade e a perda do senso do sagrado e do mistério, contra o ateísmo blasfemo e prometeico, que, segundo ele, é o efeito da terra que assalta o céu, é o fruto do racionalismo arrogante, positivista, hedonista, empirista e materialista pagão, presente no cristianismo ocidental católico, influenciado pelo legalismo do direito romano e pelo naturalismo evolucionista aristotélico, presente na teologia escolástica e nos dogmas católicos proclamados após 1054, e influenciado também pelo cristianismo protestante, culminando na hybris do antropocentrismo marxista primeiro e do idealismo panteísta alemão depois.
Para Dugin, o Ocidente tem um modo falsa e hipócrita de se aproximar de Deus, um modo desprovido de senso do sagrado e da percepção da incompreensibilidade e da inefabilidade divinas,[11] com a pretensão blasfema de ver a essência divina, quando em verdade só se pode ver as energias. A abordagem ocidental, por outra parte, seria, segundo Dugin, uma abordagem banalizada, racionalista, superficial e puramente exotérica, desprovida da dimensão iniciática, hesicasta[12] e esotérica do verdadeiro cristianismo, conservado pela tradição ortodoxa grega primeiro—Segunda Roma—, e depois pela russa—Terceira Roma.
3. O homem é espírito vivificante, emanação divina.
Na linha platônico-plotiniana, sublimada pela visão cristã ortodoxa, o homem em Dugin é espírito no corpo e no mundo, filho de Deus não adicionalmente pela redenção de Cristo, mas originalmente, nas origens do mundo.[13] A perspectiva de salvação do homem, portanto, não é tanto a aquisição de uma novidade superior agora desconhecida, mas o retorno à felicidade original, superior à condição de miséria em que nos encontramos. Não se trata de progredir ou avançar em direção ao novo, mas de rememorar o que perdemos e reconquistá-lo, o que Heidegger chama de andenken, o pensamento rememorante.
É o elemento profundamente tradicionalista da espiritualidade oriental e da Ortodoxia, em contraposição à abordagem ocidental orientada ao novo, à exploração, ao progresso e à modernização. Por isso Dugin acusa o Ocidente de modernismo e de subversão dos valores perenes em favor da tradição e de sua conservação.
O Oriente está sob o signo de Parmênides, do uno, do ser, do eterno, do imutável. O Ocidente está sob o signo de Heráclito, do devir, do múltiplo, da mudança, do progresso, da renovação. Para o Ocidente, trata-se de reformar. Para o Oriente, trata-se de restaurar. Para o Oriente, trata-se de reencontrar o que perdemos; para o Ocidente, trata-se de ir onde nunca estivemos.
O cristianismo católico, por si só, é universal, de modo que não está vinculado nem ao Oriente, nem ao Ocidente. Ele pressupõe, claro, a filosofia, mas é independente das filosofias. Ele é a favor do saber e da verdade, além das opiniões. Por isso, nascido sob o signo do platonismo com Santo Agostinho e os Santos Padres, tendo no séc. XIII descoberto Aristóteles e preferido-o a Platão sob a orientação de São Tomás de Aquino, associou Parmênides com Heráclito, o ser com o devir, o tempo com o eterno, a tradição com o progresso, em uma síntese feliz elaborada por S. Tomás, que se tornou o Doutor comum da Igreja. Em contrapartida, a Igreja Ortodoxa, separada de Roma em 1054, preservou um cristianismo platônico.
Emanuele Severino interpreta bem o valor do Oriente, ao destacar que ele está sob o signo do uno e do eterno, portanto de Parmênides, enquanto acusa o Ocidente, marcado por Heráclito, de ter absolutizado o devir, a ponto de cair no niilismo.[14] No entanto, Severino é injusto ao acusar o próprio cristianismo de niilismo por admitir o devir e a criação a partir do nada, o que para ele seria contraditório. Ele não levou em conta a explicação aristotélica do devir, adotada pelo cristianismo.[15] Por outro lado, Severino cai no extremo oposto: eternizar o ente; caindo, portanto, panteísmo.
O homem, para Dugin, é certamente pessoa à imagem de Deus, mas é sobretudo socialidade, comunhão, comunidade, sobornost, povo e nação, com um acento vagamente comunístico e claramente nacionalista. No entanto, o oriental tem um apreço marcante pelo valor da autoconsciência[16], da introspecção e da vida interior, e, portanto, da solidão e da capacidade de viver de maneira autossuficiente em união com Deus: é o monaquismo, forma de vida especificamente oriental—pensemos no hinduísmo[17] e no budismo.[18]
Dugin adota a visão ortodoxa do cristão, ou seja, o homem em graça, como homem divinizado. De fato, a tradição ortodoxa dos Padres gregos chama de “divinização”, theosis, o estado de graça, e esta não é concebida como um dom criado, mas como o próprio Deus. Claro, isso pode dar a aparência de panteísmo, mas os Padres se explicam citando a doutrina de São Pedro, segundo a qual a vida de graça é uma simples participação (koinonìa) na natureza divina.
Dugin sabe bem que o monasticismo foi um fenômeno de importação para o Ocidente, ignorado até os primeiros séculos da era cristã, quando começou o fenômeno dos Padres do deserto, como consequência da comunidade de Qumran,[19] no Mar Morto. O monaquismo, de fato, é ignorado pelo homem da Bíblia e pelos antigos romanos. Ele encontrou uma justificativa na concepção platônica do homem, com seu forte espiritualismo, desprezo pelo mundo material, desejo pela visão das ideias divinas.
Dugin, portanto, é um apologeta do monasticismo. No entanto, em sua versão platônica e, sobretudo, hinduísta e budista, não está isento de excessos, como o de tipo rigorista, ou de tipo laxista, dependendo, pode tender a um dualismo espírito-carne ou à confusão entre carne e espírito. Esse fenômeno aparece evidente na espiritualidade dos cátaros,[20] provenientes precisamente ou da Panônia ou do Irã maniqueista.
Esse duplo risco é evitado na antropologia aristotélica, mais conforme à antropologia bíblica, pelo fato de que, enquanto em Platão a alma aparece como um sujeito oposto ao corpo, como outro sujeito contrário à alma, e a salvação parece poder ser alcançada com a libertação do corpo, em Aristóteles alma e corpo se combinam entre si como forma e matéria para formar a única substância humana.
Mas no platonismo ocorre também o fenômeno oposto, dado pelo fato de que não se consegue conciliar a carne com o espírito pela falta de uma combinação. Daqui surge o risco de confundir o sensível com o sensual, a vontade com a concupiscência e o prazer com a libido. Ora, esse risco existe justamente pela falta da combinação, que no aristotelismo e na visão autenticamente cristã é dada pelo fato de que matéria e forma não são dois sujeitos, mas os dois componentes essenciais do mesmo sujeito. Portanto, se existe, e como existe, um contraste entre espírito e carne, isso não é uma lei da natureza, mas um defeito a ser removido com uma ascese apropriada, que recompõe a harmonia rompida pelo pecado original.
Na espiritualidade ortodoxa russa, existe a possibilidade desses dois excessos opostos, falsamente motivados por exigências espirituais. Basta lembrar os dois extremos opostos:”o rigorismo do Monte Athos de um lado e, do outro, o famoso caso de Rasputin[21] nos tempos do czar Nicolau II.
Na antropologia mística russa, às vezes a mística supõe a irracionalidade, como por exemplo na figura do jurodivjie, o “louco por Cristo”, que se finge de louco por uma mal interpretada vontade de ser desprezado com Cristo. Até mesmo a mística erótica de Rasputin é certamente um desvio sensualista da mística para a irracionalidade.
Um risco desse tipo, no entanto, também existe na doutrina luterana da “sola fides”. A diferença está no modelo cristológico diferente entre cristãos ocidentais e orientais, pois enquanto a cristologia dos primeiros é estaurocentrica, onde o caso extremo é o da theologia crucis luterana, na Rússia o modelo é o pascal, da ressurreição e da transfiguração.[22] Parece haver a influência do islamismo xiita persa do homem espiritual.[23]
É interessante, no entanto, que no Ocidente também existe um modelo cristológico naturalizado ou secularizado. É aquele que nasce do racionalismo cartesiano e do cristianismo brando e naturalístico anglicano, difundido depois nos Estados Unidos, infectado pelo clima maçônico,[24] de inclinação pelagiana. Aqui Cristo salva não mediante o sacrifício expiatório da cruz, mas simplesmente como profeta mártir e modelo de virtude.[25]
Agora, Dugin não deixa de ter boas razões para atacar a corrupção dos costumes no Ocidente.[26] No entanto, permanece que o modelo ético correto e equilibrado não é aquele resultante do dualismo-monismo ortodoxo, mas é o oferecido pela moral católica.
Sua polêmica contra o cristianismo ocidental atinge claramente muito mais os luteranos do que os católicos e, entre estes, principalmente os modernistas. Por outro lado, muito mais tênue é a polêmica contra os lefebvristas, que por seu tradicionalismo e forte senso litúrgico se assemelham aos ortodoxos, com a diferença de que, enquanto estes estão parados em 1054, os lefebvristas estão parados em 1962.
Assim, no que diz respeito à questão eclesiológica, enquanto Lutero rejeitava o próprio nome “Igreja”, substituindo-o por “Comunidade” (Gemeinschaft), substitui “sacerdote” por “pastor” e “Missa” por “Ceia”, católicos e ortodoxos mantêm as mesmas denominações, porque têm em comum a patrística, a doutrina dos primeiros sete Concílios, os sacramentos e a hierarquia eclesiástica, exceto o ápice, que é o Papa. Com os protestantes, no entanto, há a separação no terreno sacramental, enquanto a questão do Papa continua sendo o principal obstáculo no diálogo entre católicos e ortodoxos.
Com os protestantes, no entanto, restam em comum apenas o batismo, as Escrituras, a pregação do Evangelho, a lei mosaica, as virtudes teologais e a graça.
Em particular, nos protestantes, pela ausência do sacerdócio e da eucaristia, falta um culto verdadeiramente divino e uma verdadeira piedade religiosa, valores que nós católicos temos em comum com os ortodoxos, além da vida religiosa, que é excluída pelos protestantes.
De qualquer forma, todos os cristãos—católicos, protestantes e ortodoxos—compartilham os mesmos valores fundamentais do cristianismo: Deus, a Santíssima Trindade, a Redenção, a filiação divina, o batismo, o Símbolo da fé, o Pai Nosso, as Escrituras, a pregação do Evangelho, os dez mandamentos, as virtudes teologais, a mariologia e a escatologia.
Agora, é triste notar que Dugin, que ainda exalta os valores cristãos e morais absolutos, universais e perenes, não leva em conta esses valores comuns, tão preciosos neste trágico momento de guerra, para acalmar os ânimos e impulsioná-los a pensamentos de paz, como se nós ocidentais fôssemos uma massa de corruptos e todos os bons estivessem no Oriente.
Fim da primeira parte.
Pe. Giovanni Cavalcoli
Fontanelatto, 26 de Abril de 2022
Notas
[1] Cf. Plotino e i Neoplatonismo in Oriente e in Occidente, Atti del convegno internazionale del 5-9 ottobre 1970, a cura dell’Accademia dei Lincei, Roma 1974; Werner Beierwaltes, Platonismo e idealismo, Il Mulino, Bologna, 1987; Pensare l’Uno. Studi sulla filosofia neoplatonica e sulla storia dei suoi influssi, Vita e Pensiero, Milano 1991; Proclo. I fondamenti della sua metafisica, Vita e Pensiero, Milano 1990.
[2] Cf. Endre von Ivanka, Platonismo cristiano, Vita e pensiero, Milano 1992; Lanfranco Rossi, I filosofi greci padri dell’esicasmo. La sintesi di Nicodemo l’Aghiorita, Il leone verde, Torino 2000.
[3] Cf. Tomas Tyn, Metafisica della sostanza. Partecipazione e analoga entis, Edizioni Fede&Cultura, Verona 2009.
[4] Trata-se do processo procliano da permanência, stasis, da saída, exodos e do retorno, epistrofè. Cf. Werner Beierwaltes, Proclo. I fondamenti della sua metafisica, Vita e Pensiero, Milano 1990.
[5] Cf. Henri Crouzel, Origene, Borla, Roma 1986.
[6] Cf. Ernst Benz, Le fonti mistiche della filosofia romantica tedesca, Edizioni Spano, Milano, trad. da edição parisiense de 1964.
[7] Cf. Giovanni Filoramo, Il risveglio della gnosi ovvero diventare dio, Editori Laterza, Bari 1990; La gnose, une question philosophique, a cura di N.Depraz e J.-F.Marquet, Les Editions du Cerf, Paris 2000.
[8] Cf. Vladimir Lossky, La teologia mistica della Chiesa d’Oriente, EDB, Bologna 2013. O misticismo cristão russo se consolida através da mística de São Gregório Palamas do século XIV, à espiritualidade do Monte Athos do século XI, até Dionísio, o Areopagita, e ao mosteiro egípcio de Santa Catarina do Sinai, no século V, aos Padres Gregos e, por fim, nos Padres do Deserto do século II. Veja, por exemplo: Dionigi, Mistica teologia e epistole I-V, Edizioni ESC-ESD, Bologna 2011; Giuseppe Ferro Garel, Gregorio di Nissa. L’esperienza mistica, il simbolismo, il progresso spirituale, Il leone verde, Torino 2004; Antoine Guillaumont, Un philosophe au désert. Evagre le Pontique, Vrin, Paris 2004. Ver a famosa coleção dos ensinamentos dos Padres do Deserto, chamada Filocalia. Característica da oração russa é a “oração de Jesus”, retirada do anônimo Relato de um peregrino russo, e inspirada pelo paolino “orai sempre”. Estupendo, por fim, o hino mariano Akàthistos (de pé), joia da devoção mariana russa. A veneração do ícone na Ortodoxia é sacramental. O altar da Missa é ocultado pela iconóstase.
[9] Cf. di Evola, Saggi sull’idealismo magico, Edizioni Mediterranee, Roma 2006.
[10] Elena Blavatsky, Introduzione alla teosofia, Fratelli Bocca Editori, Milano-Roma 1911.
[11] Cf. Jean Chrysostome, De l’incomprehensibilité divine, Les Editions du Cerf, Paris 1970; C.Journet, Conoscenza e in conoscenza di Dio, Editrice Massimo, Milano 1981; J.-H. Nicolas, Dieu connu comme inconnu, Desclée de Brouwer, Paris 1966.
[12] Cf. Flavio Poli, Yoga ed esicasmo, Editrice Missionaria Italiana, Bologna 1981.
[13] Essa ideia já está presente em São Basílio.
[14] É verdade que no século XIX também existiu um niilismo russo, mas enquanto este é de caráter místico, como o «Nada» de Eckhart ou o «vazio» (sunyata) dos budistas e talvez também o Nada (Nicht) de Heidegger, o ocidental é dissolutor e desintegrador, porque está ligado à negação do ser (Hegel). Cf. di Severino, L’essenza del nichilismo, Adelphi Edizioni, Milano 1995.
[15] Cf. Cornelio Fabro, L’alienazione dell’Occidente (confutazione del panteismo eternalista severiniano), Edizioni Quadrivium, Genova 1981.
[16] L.Gardet-O.Lacombe, L’esperienza del sé. Studio di mistica comparata, Editrice Massimo, Milano 1988.
[17] Sobre a mística indiana: Mahendranath Sircar, Hindu mysticism according to the Upanishads, Kegan Paul. Trench&Co., London 1974; Yoghi Ramacharaka, La suprema sapienza – Sgnana (jnana) yoga, Fratelli Bocca Editori, Milano 1950; Anthony Elenjitittam, Meditazione per la realizzazione del Sé (di sé), Mursia, Milano 1995; Swami Vivekananda, Sgnana (Jnana)-Yoga. Lo yoga della conoscenza, Ubaldini Editore, Roma 1963; Raphael, Tat tvam asi (Tu sei Quello, cioè Dio), Edizioni Ashram Vidya, Roma 2001. Para uma comparação entre mística indiana e mística ocidental: Svami Siddeshvarananda, Pensiero indiano e mistica carmelitana, Ashram Vidya, Roma 1977.
[18] Sobre a comparação entre cristianismo e budismo, cf. Raimundo Panikkar, Il silenzio di Dio. La risposta del Buddha, Borla, Roma 1992; Angelo Rodante, Sunyata buddhista e kenosi cristologica in Maso Abe, Città Nuova Editrice, Roma 1995.
[19] Cf. Os Manuscritos de Qumram na edição de Luigi Moraldi, TEA, Milano 1994.
[20] Anne Brenon, I catari. Storia e destino dei veri credenti, Edizioni Convivio/Nardini, Firenze 1990.
[21] Edvard Radzinskij, Rasputin. La vera storia del contadino che segnò la fine di un impero, Mondadori, Milano 2000.
[22] De fato, a Ortodoxia nas imagens pouco apresenta Jesus na cruz, como sempre fazemos nós católicos, mas apenas a pura cruz, enquanto abundam as imagens de Cristo Imperador, Pantokrator. Não que o russo não saiba participar dos sofrimentos de Cristo, mas, talvez por uma espécie de pudor monofisita ou docetista, prefere não representar um Deus sofredor, ao contrário dos protestantes hegelianos, que se deleitam morbidamente com o Deus que sofre.
[23] Cf. Henry Corbin, Corpo spirituale e Terra celeste. Dall’Iran mazdeo all’Iran sciita, Edizioni Adelphi, Milano 1986.
[24] A maçonaria nasceu em Londres em 1717.
[25] É também o Cristo de Kant, o “Mestre do Evangelho”. Veja La religione entro i limiti della sola ragione, Editori Laterza, Bari 1985. Não é por acaso que Kant é o filósofo da maçonaria, que dá origem ao iluminismo: veja Giuliano Di Bernardo, Filosofia della massoneria, Marsilio, Venezia 1992. É só no início do século XIX que a maçonaria se enriquece, sobretudo na Alemanha, de elementos esotéricos, mágicos, teosóficos e gnósticos: veja Giuseppe Giarrizzo, Massoneria e illuminismo nell'Europa del Settecento, Venezia, Marsilio, 1994; Vicomte Léon de Poncins, Free masonry and the Vatican, Britons Publishing Company, London 1968. Guénon sustenta que a maçonaria é uma das expressões da Tradição iniciática primordial.
[26] Sobre os fundadores do Ocidente: J. Maritain, Tre riformatori. Lutero, Cartesio, Rousseau, Morcelliana, Bescia 1964.