"A Terceira Roma de Aleksandr Dugin"—Segunda Parte (2/2), por Giovanni Cavalcoli

"A Terceira Roma de Aleksandr Dugin"—Segunda Parte (2/2), por Giovanni Cavalcoli

Texto introdutório:
Nesta segunda última parte, o velho teólogo dominicano trata de discutir alguns outros temas perniciosos da doutrina de Dugin: seu guenonismo, sua visão pejorativa generalizante do Ocidente e as tendências religiosas de Dugin, e de muitos ortodoxos, de fazerem sua fé recair numa confusão entre os poderes temporal e espiritual.

 A Terceira Roma de Aleksandr Dugin—Segunda Parte (2/2)

A direção da história

Dugin se esforça para associar o eterno ao temporal, a fim de fornecer interpretações da história da humanidade e da Igreja à luz das Escrituras e do plano cristão de salvação, a partir de seu ponto de vista ortodoxo. Ele olha para a tradição, mas não está claro de qual tradição ele fala, se da Tradição dos Padres ou daquela tradição esotérica e iniciática, da qual fala René Guénon[1], que é um de seus autores preferidos.

Ele parece preferir a visão deste último, o qual, embora pareça apreciar a tradição cristã, na verdade concebe a tradição como a transmissão de um “influxo espiritual” por parte de uma casta de vates e profetas em contato com Deus desde uma antiguidade remota, muito antes do nascimento do cristianismo, que não seria mais que uma expressão degradada, verbalizada, “exotérica” dessa mencionada tradição “esotérica” e iniciática, que também se expressaria através de outras formas, como o hinduísmo, o islamismo e a maçonaria.

Mas o problema é que o próprio conceito de Tradição da Ortodoxia russa diverge daquele verdadeiramente cristão. De fato, os russos interrompem em 1054 a explicitação pontifícia do conteúdo da Sagrada Tradição, tendo-se recusado a aceitar as explicitações dogmáticas feitas posteriormente pelos Papas e Concílios até o Vaticano II e o Papa Francisco.

Assim, ocorreu que, com a ausência da garantia infalível da interpretação e da verdadeira conservação do dado tradicional, bem como da contribuição pontifícia para uma compreensão cada vez melhor da Tradição, esta foi deixada à interpretação falível dos Patriarcas e teólogos russos individuais, que inevitavelmente foram desviados por falsas interpretações da tradição, como aconteceu precisamente com Dugin, enganado pelas ideias de Guénon.

Assim como esses nossos irmãos separados estão expostos ao erro ao avaliar o patrimônio tradicional deixado pelos Padres, também estão expostos ao erro ao determinar o valor da modernidade. Dugin não erra ao atacar o modernismo presente hoje na Igreja Católica. Mas, devido à insuficiência do critério com o qual julga o problema, critério que não se refere ao Magistério pontifício e conciliar, como o do Vaticano II, encontra modernismo onde não há.

Dugin presta muita atenção à presença do modernismo na Igreja. Certamente, ele é responsável pelo ódio contra o tradicionalismo russo, assim como na casa católica o modernismo é responsável pelo desprezo e arrogância com os quais trata os tradicionalistas e os lefebvrianos.

Dugin carece completamente de espírito ecumênico com os católicos. Ignora o fato de que entre nós católicos não há apenas modernistas, embora eles pareçam estar em destaque, enquanto os verdadeiros católicos são uma minoria. Além disso, tenho a impressão de que Dugin, como fazem os tradicionalistas de nossa casa, confunde “modernistas” com progressistas, como, por exemplo, os tomistas e os maritainianos, corretos intérpretes dos ensinamentos ecumênicos do Concílio, aptos mais que nunca a criar pontes e motivos de concórdia e reconciliação entre nós e os ortodoxos, oferecendo, portanto, valiosas indicações e sugestões para extinguir ódios, vinganças, represálias, destruições, bombardeios, massacres e pôr um fim à guerra.

Mesmo em relação ao futuro, a leitura que ele faz da missão do povo russo e do significado desta guerra está completamente errada, pois ele vê na guerra da Rússia contra a Ucrânia e, indiretamente, contra a OTAN e os Estados Unidos que a apoiam, a guerra escatológica mencionada no Apocalipse nos capítulos 19 e 20, como se os russos constituíssem o “acampamento dos santos e a cidade amada” (20,9), guiada por Cristo, enquanto as forças opostas, ou seja, o Ocidente, fossem as inimigas de Cristo.

Por isso, a condenação global de Dugin ao Ocidente está equivocada, se não pelo menos porque foi de Roma que se espalhou a fé cristã que, no século IX,[2] alcançou Kiev, com o batismo do Príncipe São Vladimir, aquela Kiev de onde a fé se difundiu pelo território da atual Rússia, fundando a Igreja de Moscou. Dugin, que está em busca das origens, aqui corta as raízes das quais nasceu e foi vitalizado.

Ora, é verdade que a história presente é uma guerra que Cristo e seus seguidores travam contra os seguidores de Satanás, decididos a destruir o cristianismo. Mas essa é a guerra da Igreja Católica guiada pelo Papa, Vigário de Cristo; não é a guerra conduzida pelos ortodoxos russos, que pertencem a uma Igreja que se separou de Roma em 1054 e acentuou sua oposição em 1589 com a ascensão de Moscou. Esta guerra é um confronto entre a Rússia e os Estados Unidos pelo domínio da Europa. Ela tem os caracteres de um confronto entre cristãos modernistas e cristãos tradicionalistas. É uma guerra fratricida, verdadeiramente escandalosa aos olhos do mundo não cristão.

É o fruto de uma humanidade que parece querer se suicidar, diabolicamente encantada e arrastada para o abismo; parece não ter força para resistir e parece quase ceder às tentações do demônio. Parece não querer ouvir aqueles que lhe indicam os caminhos da paz. Bastaria seguir os ensinamentos e os exemplos de Cristo e dos Santos. Podemos realmente nos perguntar onde foi parar o ecumenismo desses últimos 60 anos.

Não a Europa, mas a Eurásia

Dugin não aceita a proposta insistente de São João Paulo II de reunir os dois pulmões da Europa:[3] a parte latino-germânica com a parte eslava, em nome de uma fé cristã comum redescoberta. Mas surgem dois problemas. Primeiro: quem guia o processo de reunificação? Roma ou Moscou? E segundo: a Rússia inclui também a Sibéria, enquanto o Papa havia falado apenas da Europa, que, como é sabido, faz fronteira com os Urais. O Papa não responde a essas perguntas. Somos nós que devemos tentar responder.

Não há dúvida de que para Dugin, se é para falar de reunificação da Europa, cabe a Moscou, a Terceira Roma, a Roma de Santo André, o Protóclito,[4] unir-se à Roma de Pedro ou submetê-la a si. Além disso, é claro que Dugin dá mais importância à Rússia euroasiática do que à Rússia europeia. Ele defende que Moscou está destinada também a subjugar, em nome de Cristo e da expansão da Igreja Ortodoxa, como Terceira Roma, as outras grandes formações religiosas presentes no continente asiático, como o hinduísmo, o islamismo, o budismo e o confucionismo chinês.

Nesse ponto, surgem algumas questões: o que significa Europa? O que significa Ásia? Faz sentido que a Rússia esteja em parte na Europa e em parte ainda maior na Ásia? Faz sentido a Europa excluir a Rússia asiática? Faz sentido falar, como faz Dugin, de uma Eurásia? A esta última pergunta, respondo dizendo que creio que sim, porque a Rússia europeia e a Rússia asiática são um único povo.

A Europa, como entidade geográfica confinada entre Portugal e os Urais, certamente tem uma identidade, substancialmente originada em suas raízes cristãs, nas quais confluiram a filosofia grega[5] e o direito romano. Nesse sentido, ela foi espiritualmente inspirada e formada por gigantescas personalidades, como aqueles que hoje a Igreja venera como Padroeiros da Europa, São Bento de Núrsia para o lado ocidental e os Santos Cirilo e Metódio para os eslavos.[6]

Eu acredito que devemos persuadir os russos a se unirem à União Europeia para recuperar as raízes cristãs da Europa em um sábio trabalho ecumênico. Ao mesmo tempo, a Rússia tem todo o direito de exercer uma benéfica influência cristã sobre as outras grandes realidades humanas da Ásia. Sob esse ponto de vista, pode-se aprovar o projeto de Dugin.

Nós, católicos, não podemos deixar de ser favoráveis à difusão do cristianismo pela Rússia, mesmo que seja feita pelos irmãos separados. O que não se pode aprovar em Dugin é o fato de ele acreditar que a Rússia é o povo santo de Deus, o povo eleito, o povo messiânico, que, com Cristo, combate a guerra decisiva contra o Ocidente, incluindo a Igreja Católica.

Nenhum povo, no entanto, tem o direito de substituir o verdadeiro povo eleito de Deus, que é Israel. Por isso, a cidade celestial escatológica não é Roma, não é Moscou, não é Washington, mas é Jerusalém. Cada povo tem algo de universal a oferecer à humanidade, seja bom ou mau. A Grécia nos deu o Logos, princípio da igualdade humana; Roma nos deu o direito e o império.[7]

Os alemães nos deram primeiro Eckhart[8] e depois Lutero, pais do idealismo e do subjetivismo moderno. Os ingleses nos deram Guilherme de Ockham,[9] pai do empirismo e do liberalismo modernos. Os franceses nos deram Descartes, pai do racionalismo moderno. A Espanha nos deu o misticismo católico, isto é, Santa Teresa e São João da Cruz.

Nós, italianos, demos São Tomás de Aquino, Doctor communis Ecclesiae. Israel nos deu Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei dos reis e Senhor dos senhores, Salvador do mundo. E o que os russos nos dão? A síntese das místicas, segundo a indicação de Dugin, o ecumenismo das místicas.[10]

A identidade espiritual do povo russo, embora separado de Roma, é ainda, como povo cristão, parte essencial da identidade espiritual europeia. Sem dúvida, também se dá o fato de que a Igreja Ortodoxa Russa, nos séculos posteriores à separação de Constantinopla, expandiu-se pela Sibéria juntamente com o Estado Russo, de modo que é lógico que também aquela seja Rússia, mas nada impede que o povo e a Igreja russos distingam, sem separar, uma Rússia europeia de uma Rússia asiática, evitando a confusão feita por Dugin, que impede a Rússia de se integrar à Europa e levanta pretensões de domínio sobre a Ásia.

Evangelização não é proselitismo

A Igreja do Oriente, desde os primórdios do Império Romano do Oriente, especialmente com Justiniano, manteve uma concepção de colaboração entre o sacerdócio e o império, que favorece o proselitismo, o qual está relacionado com o imperialismo, ainda que não impedisse a evangelização.

É verdade que Cristo enviou os apóstolos para evangelizar o mundo inteiro e, portanto, para conquistar o mundo para Ele e submetê-lo ao Seu reino, iluminando o mundo com a Palavra de Deus, expulsando as trevas do erro e vencendo o poder de Satanás, príncipe deste mundo. É verdade que Cristo reconheceu a seus apóstolos a necessidade de uma base econômica suficiente e de assistência humana para que pudessem cumprir adequadamente sua missão.

No entanto, ao mesmo tempo, Cristo recomendou que não contassem com grandes meios ou apoios humanos e, sobretudo, que evitassem a imposição e a violência na disseminação do Evangelho, que deve ser difundido com doçura e delicadeza, através do testemunho, do exemplo de vida, da persuasão e de sinais convincentes de credibilidade.

Certamente é necessário acompanhar o anúncio evangélico ou precedê-lo com a prática da solidariedade e com ações concretas de socorro material às pessoas necessitadas. Isso terá o efeito de dispor bem as pessoas para ouvirem a Palavra e confiarem na autoridade da pregação do missionário. Contudo, é totalmente inoportuno e até contraproducente associar a pregação à imposição de um poder político do Estado de origem do missionário sobre as pessoas a quem o Evangelho está sendo anunciado.

Esse método impositivo não gera uma fé autêntica, livre e convicta, mas uma atitude passiva, servil e oportunista, e uma adesão falsa e puramente exterior, para evitar contrariar o estrangeiro que ocupa o território de sua pátria e que talvez, sob o pretexto de anunciar uma mensagem de salvação, queira dominar e impor seu poder. Esse é o método que o Papa Francisco chama de “proselitismo”.

É certamente justo e conveniente que os grandes centros diretivos e missionários da Igreja estejam situados em grandes centros de poder político. Mas os Papas nunca calcularam o grau de sua autoridade em relação ao poder político do centro onde residiam. Certamente Pedro considerou conveniente estabelecer sua sede na capital do Império Romano, e foi uma excelente ideia, pois três séculos depois, os próprios imperadores, convertidos, começaram a se orgulhar de apoiar a difusão do cristianismo, como aconteceu no século IX com a constituição do Sacro Império Romano por Carlos Magno, embora este não residisse em Roma.

No entanto, os Papas sempre tiveram a consciência de que seu prestígio espiritual na Europa e no mundo não estava ligado à grandeza temporal de Roma, mas simplesmente ao mandato que receberam como sucessores de Pedro. Já os Patriarcas de Constantinopla fizeram cálculos diferentes: quando Roma caiu sob os golpes dos bárbaros, enquanto Constantinopla podia se vangloriar de ser a herdeira do Império Romano, começaram a conceber o ambicioso projeto de se tornarem os líderes da cristandade.

E, de forma semelhante, quando o Patriarca de Moscou, quase dois séculos depois, viu que Constantinopla havia caído nas mãos dos muçulmanos, acreditou que lhe cabia, como residente na capital do grande principado de Moscou, ser o sucessor da segunda Roma, Constantinopla, assumindo a liderança da Igreja, mesmo que o papado continuasse a funcionar na antiga Roma.

Assim, pode-se dizer que o proselitismo foi uma tendência da Igreja de Constantinopla desde seu surgimento, no século IV. Os imperadores estavam interessados na difusão do cristianismo mais porque o consideravam um fator de coesão política do império do que por sincera e plena adesão à doutrina da fé ensinada pelos Papas. Eles refletiam a concepção pagã oriental do soberano absoluto, uma emanação divina que domina o povo não para servi-lo, mas para satisfazer sua vontade de poder, segundo a expressão de Nietzsche.

Até mesmo os imperadores romanos, após o período da República, influenciados por ideias orientais, se consideravam divinos e, por isso, não toleravam o culto cristão. Admitiam, sim, os deuses e a casta sacerdotal, mas os deuses eram vistos apenas como protetores do império, e os sacerdotes tinham apenas a função de interpretar a vontade dos deuses, que, por meio deles, revelavam ao imperador o que deveria ser feito, embora o imperador, sendo também divino, fosse livre para decidir de maneira diferente.

Assim, em Constantinopla, tanto os patriarcas quanto os imperadores nunca assimilaram plenamente o conceito evangélico da autoridade como serviço ao bem comum, sustentando-se mutuamente ao se considerarem representantes de Cristo para a Igreja e para o Estado ("cesaropapismo"), em antagonismo com a Sé Romana, cujo primado foi aceito enquanto durou o Império do Ocidente. Porém, após as invasões bárbaras, os orientais começaram a olhar com desdém para os latinos, que se haviam misturado com os rudes germânicos.

Essa tendência oriental a uma autoestima excessiva, orgulhosa da refinada cultura grega e da sublime arte e liturgia bizantinas, começou a se manifestar muito cedo, como já vemos no cânone 28 espúrio do Concílio de Niceia de 325, que não reconhece claramente o primado de Roma. Por isso, o cisma de 1054 de Miguel Cerulário foi apenas o desfecho final de um processo secular de antagonismo com a Igreja Romana.

O esquema pastor-rebanho, que o Evangelho aplica à autoridade do Papa sobre os fiéis, na antiguidade oriental também vale para o regime político, de forma que, aqui, para nos expressarmos com as palavras de Cristo, “os chefes das nações as dominam” (Mt 20,25). Não é o rebanho que escolhe o pastor, mas o pastor que escolhe o rebanho.

Cristo certamente esclarece aos apóstolos que não foram eles que O escolheram, mas foi Ele que os escolheu. No entanto, também se entende muito bem como Ele concebe o seu papel de pastor: é um pastor paradoxal, que, em vez de se alimentar do rebanho, dá a vida pela salvação de seu rebanho; portanto, a autoridade não como dominação, mas como serviço.

Além disso, indubitavelmente, a autoridade do Papa, sendo sobrenatural, só pode representar Deus, ao contrário da autoridade civil, que, embora certamente derive de Deus, o faz pela mediação do povo, que elege o líder. Por isso, como diz São Tomás, o príncipe é “vicem gerens multitudinis” [aquele que exerce o papel da multidão, representante da multidão]. Aqui está o regime democrático, já teorizado por Aristóteles.

Já o Oriente, sob a influência de Platão, e sobretudo do monismo emanacionista plotiniano, vê o monarca como expressão divina da unidade da sociedade civil, entendida como comunhão espiritual ou sobornost. Não há dúvida de que o regime político que descende do sistema platônico é uma forma de comunismo monárquico. Aqui encontramos o risco do totalitarismo, o que explica o sucesso que o comunismo teve na Rússia. Esse espírito de solidariedade e sinodalidade, ao qual Dugin parece aludir, interpreta bem o espírito russo. Contudo, isso não impede que a Igreja Ortodoxa, na medida em que adere ao Evangelho, aceite o regime democrático da sociedade civil.

Por outro lado, Pio XII afirmou que, se a Igreja é uma monarquia, ela promove a democracia no campo civil. Por essa razão, o Ocidente, influenciado mais pelo catolicismo do que o Oriente, pôde promover a democracia melhor ali do que aqui, enquanto a Igreja Ortodoxa permaneceu ligada à mentalidade do Império Bizantino. De qualquer forma, a Rússia, com a queda do comunismo e o retorno do cristianismo, pôde instaurar um regime democrático, embora não completamente livre do tradicional despotismo oriental.

Em contrapartida, a Igreja Romana, guiada pelos Papas, sempre respeitou o poder civil, mas conservou sua independência, testemunhada desde os primeiros mártires, que se recusavam a considerar o imperador como um deus, sem, no entanto, renegar seus deveres de cidadãos do Império.

Já os orientais nunca conseguiram se libertar totalmente de uma visão sagrada do império, ao contrário dos soberanos que reinaram na Itália, que, embora muitas vezes desejassem submeter a Igreja,[11] sempre foram contidos pela determinação com que os Papas, ao longo dos séculos, souberam enfrentar a defesa dos direitos da Igreja, sem que os soberanos temporais avançassem a pretensão de se substituir ao Papa na liderança da Igreja.[12]

Por outro lado, em Constantinopla, os Patriarcas frequentemente mostraram uma conduta excessivamente subserviente em relação aos imperadores, que aproveitavam para interferir nos assuntos da Igreja, até mesmo em questões doutrinárias, como demonstrado pelas crises ariana do século IV e monofisita e monotelita dos séculos VI e VII.

Infelizmente, Dugin manteve essa visão imperialista e facciosa, que lança uma má luz sobre uma Igreja como a ortodoxa russa, a qual, apesar de rica em 800 anos de história, de cultura e de santidade, hoje parece mais do que nunca perturbada, dividida e manchada pelo estigma sinistro do cisma, por uma ferida não cicatrizada que já dura 1000 anos. Em sua homilia de Páscoa, o Patriarca Kyrill lamentou a atual e dramática divisão entre ortodoxos na Ucrânia. Infelizmente, os contrastes religiosos chegam a se expressar em conflitos armados entre os próprios ucranianos, pois, segundo o costume ortodoxo, os interesses religiosos carecem de serenidade e pureza devido ao vínculo com os interesses políticos e nacionais. Os uniatas são vistos como não amando a pátria por causa de sua união com Roma. Os ortodoxos modernistas simpatizam com o liberalismo americano; os tradicionalistas, ligados ao Patriarcado de Moscou, são influenciados por Dugin e aprovam a invasão punitiva dos russos. Putin está muito assustado com a perspectiva de a Ucrânia entrar na OTAN e reage de maneira cruel e desproporcional.

Onde está a antiga fraternidade ortodoxa entre Kiev e Moscou? Onde estão as raízes cristãs que surgiram com o batismo de São Vladimir em 988, quando Kiev ainda estava unida a Roma? O que aconteceu com a santa Rússia? Onde está o ecumenismo católico-ortodoxo? Não é possível, então, um diálogo entre Ocidente e Oriente? Não é possível unir progresso e tradição? Não é possível reunir os dois pulmões da Europa? A Eurásia não pode se conciliar com a Europa? Não chegou talvez o momento de todos nos colocarmos na escola do Evangelho e dos santos?

Dugin é o Rahner do Oriente: a mesma prosopopeia, a mesma arrogância, a mesma presunção, o mesmo imperialismo, a mesma duplicidade, a mesma hipocrisia, a mesma astúcia, a mesma parcialidade, o mesmo orgulho.

Basta. Acabemos com isso. Todos temos o mesmo Deus. Todos temos o mesmo Credo, os mesmos sacramentos. Todos devemos prestar contas a Ele. Todos temos nossas culpas. Todos temos um dom a oferecer ao irmão. Completamo-nos mutuamente. Corrigimo-nos mutuamente. Ouçamos o Papa Francisco quando nos chama a sermos todos irmãos, criados e santificados à imagem de Cristo, movidos pelo Espírito, Filhos do Pai.

Que a Bem-Aventurada Virgem Maria, à qual o Santo Padre recentemente consagrou a Rússia e a Ucrânia, olhe com olhar compassivo para o sofrimento das vítimas desta guerra atroz, onde é evidente o desencadeamento do ódio satânico. Ela, que esmagou a cabeça da serpente, chame para si seus filhos russos e ucranianos. Ela, que é invocada por ambos, inspire arrependimento e conversão em ambos, impulsionando-os ao perdão mútuo, à reconciliação e à paz.

 

Giovanni Cavalcoli

Fontanellato, 26 de abril de 2022

Notas

[1] Cf René Guénon: La metafisica orientale, Luni Editrice, Milano 1998; L’uomo e il suo divenire secondo il Vedanta, Adelphi Edizioni, Milano 1990; Introduzione generale allo studio delle dottrine indù, Adelphi Edizioni, Milano 1989. Sobre Guénon: Pietro Nutrizio e outros, René Guénon e l’Occidente, Luni Editrice, Milano-Torino 1999.

[2] Conferir a rememoração histórica na Lettera apostolica Euntes in mundum por ocasião da celebração de um milênio do batismo da Rus’ di Kiev, do dia 25 de janeiro de 1988.

[3] Cf. João Paulo II, Memoria e identità. Conversazioni a cavallo dei millenni, Rizzoli, Milano 2005.

[4] Santo André, irmão de São Pedro, é o primeiro apóstolo chamado pelo Senhor (protòclito). Depois disso, ele vai até Pedro e lhe diz que encontrou o Messias (Jo 1, 40-42).

[5] Jean Daniélou, Messaggio evangelico e cultura ellenistica, Società Editrice Il Mulino, Bologna 1975.

[6] João Paulo II, Epistola enciclica Slavorum Apostoli, em memória da obra evangelizadora dos Santos Cirilo e Metódio, do dia 2 de junho de 1985.

[7]  Recordemos a profecia de Virgílio: Tu regere imperio populos, Romane, memento. Hae tibi erunt artes pacisque imponere morem: parcere subiectis et debellare superbos [Tu, ó romano, lembra-te de governar os povos com poder. Essas serão as tuas artes: impor as leis da paz, poupar os subjugados e derrotar os orgulhosos].

[8] Cf. Giuseppe Faggin, Meister Eckhart e la mistica tedesca preprotestante, Fratelli Bocca Editori, Milano 1946; Kurt Ruh, Meister Eckhart. Teologo-Predicatore-Mistico, Morcelliana, Brescia 1989.

[9] Cf. Alessandro Ghisalberti, Introduzione a Ockham, Editori Laterza, Bari, 1976; Guglielmo di Ockham, Scritti filosofici, a cura di Alessandro Ghisalberti, Nardini Editore, Firenze 1991.

[10] Cf. o meu livro Il silenzio della parola. Le mistiche a confronto, Edizioni ESD, Bologna 2002; Louis Gardet, Esperienze mistiche in paesi non cristiani, Edizioni Paoline, Alba 1960; Orlando Todisco, G. Duns Scoto e Guglielmo d’Occam. Dall’ontologia alla filosofia del linguaggio, Libreria Universitaria, Cassino 1989.

[11] Basta pensar na luta pelas investiduras na Idade Média, no abuso dos governos liberal-maçônicos do século XIX e na experiência do regime fascista no século passado.

[12] Uma exceção é dada pelos países protestantes, como por exemplo a Inglaterra.

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