Nota introdutória, Vitor Gomes Calado
Neste texto, Yves Congar O. P. esclarece noções fundamentais que parecem faltar em grande parte nos "esclarecimentos" dos católicos tradicionalistas -- com ênfase em especial, como diz o título, ao seu ícone -- ao menos aqui no Brasil -- Marcel Lefebvre. Este escrito resolve a necessidade de se esclarecer as noções de tradição, a interpretação de documentos pontifícios, entre outros pontos. Descobrimos, todavia, que este texto já contava com tradução -- direto do original em francês --, providenciada pela Studia Congariana, que a iniciativa encontre nesta tradução, então, uma forma de divulgar as ideias do teólogo dominicano. Optei, nesta tradução, por me manter fiel ao inglês, que não acredito, todavia, que tenha mudado significativamente o sentido fundamental do texto.
Arcebispo Lefebvre, Defensor da ‘Tradição’? Alguns Esclarecimentos Necessários
[Retirado de: Discernment of the spirit and of spirits, Part IV, Archbishop Lefebvre, "Champion of 'Tradition'? Some Necessary Clarifications"]
O Arcebispo Lefebvre tornou amplamente conhecidas suas perspectivas.[1] Deve-se admitir que ele não variou o que tem a dizer, e que seu pensamento é simples. Escutemos, primeiro, a ele.
“Aderimos, de todo coração e de toda alma à Roma Católica, guardiã da fé católica e das tradições necessárias para a manutenção de tal fé, a Roma, a Eterna, Senhora da sabedoria e da verdade. Por outro lado, recusamos seguir aquela Roma das tendências neo-modernistas e neo-protestantes, o que foi claramente manifestado durante o Concílio Vaticano segundo e, depois do concílio, em todas as reformas que floresceram dele. [...] Nenhuma autoridade, até mesma a mais elevada na hierarquia, pode-nos compelir a abandonar ou atenuar nossa fé Católica como foi bem expressa e professada pelo Magistério da Igreja por dezenove séculos.” (Declaração de 21 de novembro de 1974: E270).
“Sustentarei” (N 16), “Lutarei em prol de sustentar a tradição” (E289)
“Precisamos nos agarrar às posições pré-conciliares, e não ter medo de parecer estar agindo com desobediência à Igreja quando estamos carregando uma tradição de dois mil anos de idade. Qual deveria ser o critério do magistério ordinário para saber se ele é ou não infalível? A resposta é fidelidade à tradição em sua totalidade”. (E170).
“Se Sua Santidade nos obrigar a fazer a escolha crucial entre si mesmo e seus predecessores, há de nos obrigar por optar por seus predecessores, nos quais se encontra a Igreja que viveu pelas eras do magistério e da tradição apostólica, para as quais não desejamos nos tornar hereges nem cismáticos, mas tão somente permanecer membros fiéis da antiga Igreja Católica Romana” (Audiência de 11 de novembro de 1976) – sobre a “antiga Igreja” e o “antigo magistério” veja também E271, A9, C12, CP245. “A Missa de Pio V é a Missa de vinte séculos. É a Missa tradicional” (CP245).
“A Tradição, para mim, é o magistério da Igreja, infalível por vinte séculos” (CP245). “A Tradição sendo, de acordo com o ensinamento da Igreja, a Doutrina Cristã definida para todos os tempos pelo magistério solene da Igreja, é caracterizada por uma imutabilidade que compele o assentimento da fé, não somente da presente geração, mas também das futuras gerações [...] Agora, como se reconcilia as afirmações feitas na declaração sobre liberdade religiosa com os ensinamentos da tradição? Como se reconcilia as reformas litúrgicas com o ensinamento do Concílio de Trento e com a Tradição? Como se reconcilia o movimento ecumênico com o ensinamento da Igreja e o direito canônico no que diz respeito a relação da Igreja com hereges, cismáticos, ateus, descrentes e pecadores públicos?”[2]
Uma conclusão prática deve ser derivada destas convicções: “Esta casa (Écône) decidiu com determinação optar por aderir à Antiga Igreja e se recusa a pertencer à Igreja reformada e liberal” (E314, N232). Desobediência ao falso visando permanecer fiel ao verdadeiro. Deste momento em diante “seremos nós que continuaremos a Igreja” (C16); “permanecemos na verdade, porque não se pode permanecer fora da verdade quando se dá continuidade àquilo que tem sido feito por dois mil anos” (C17). “Não estamos em cisma, somos continuadores da Igreja Católica; são aqueles que introduzem inovações que entraram em cisma; estamos perpetuando a tradição” (CP223, 247; cf N215). “Estamos prontos para seguir as instruções do papa. Mas, quando ele não segue dos 262 papas que vieram antes dele, não podemos segui-las”.[3]
ASPECTOS POSITIVOS DESSA ATITUDE
Reconheceremos, antes de tudo, não somente a seriedade dessas observações, mas também o elemento de verdade contido dentro delas. Aquilo que é verdade é de fato definitivamente verdade – e isso se aplica aos dogmas trinitários, cristológicos, eucarísticos e eclesiásticos. Isso não implica nem que os dogmas definidos no percurso da história expressam toda a verdade na medida em que seu objeto é considerado ou que eles apresentam a melhor formulação dela, mas sim implica em uma necessidade de respeitá-los.
Ainda diremos que muitos textos das autoridades mais confiáveis proclamam que se um bispo, ou até mesmo um papa, dissessem algo contrário a alguma verdade de fé, não se deve ouvi-lo, pelo contrário, deve-se repreendê-lo.[4] É óbvio que uma acusação de uma natureza dessa é tão grave que ela precisa ser o mais rigorosamente precisa. E assim, pergunto eu: que dogma o Vaticano II, Paulo VI e as instruções entregues por eles negou ou pôs em questão? Nenhum! Em verdade, quando teólogos ou padres questionaram pontos de doutrina, o Santo Padre, os bispos, e eu mesmo no evento denunciamos e disputamos com eles. Assim, por que não perpetuar essa luta pela fé juntos?
Devemos notar ainda outro elemento positivo. O Arcebispo Lefebvre retorna incansavelmente à questão da missa e do “sacerdócio”. É um ponto no qual ele encontra a concordância de um grande número de católicos. Muitos, de fato, que não o seguiriam rumo ao cisma, todavia diriam: ele está correto. Eu pessoalmente lamento que não foi dada permissão para a assim chamada missa de S. Pio V ser celebrada ao lado daquela, a assim chamada missa de Paulo VI. Por um lado, isso teria demonstrado que a fé eucarística de nenhum modo mudou (mas o cânone romano permanece como oração eucarística número um, e quando eu então assim a celebro, por ocasião, em latim, o que distingue a minha celebração daquela do Arcebispo Lefebvre?). Por outro lado, as profundas sensibilidades de bons católicos, que encontram na celebração do sacrifício eucarístico o sinal de sua identidade católica, teria sido bem mais respeitada. Esse ponto é muito é muito importante, muito válido para consideração. Muitas pessoas sentiram-se perdidas porque sua expressão da identidade católica lhes foi tomada.
Infelizmente, os apoiadores do Arcebispo Lefebvre têm acusado o novo rito eucarístico de induzir a uma traição da fé da Igreja; eles tornaram a celebração da Missa de acordo com o Missal de S. Pio V – que de todo modo passou por um certo número de mudanças desde 1576 – em um instrumento de combate ardoroso contra a reforma de Paulo VI: e isso torna uma solução pacífica praticamente impossível. Não preciso demonstrar aqui a falsidade das acusações feitas – isso já foi feito mais de uma vez em mais de uma ocasião. O arcebispo Lefebvre, ademais, admitiu a validade do novo rito caso celebrado com a fé e a intenção da doutrina eucarística do Concílio de Trento. Mas ele enrijece a doutrina, indo tão longe até ao ponto de empregar termos muito questionáveis, desconhecidos para Trento, tais como “renovar o sacrifício da Cruz” (E279 e em outros lugares).
MÁ-INTERPRETAÇÕES E NEGAÇÕES INACEITÁVEIS
Para começar a fazer as distinções necessárias, deve-se pôr no papel uma avaliação crítica das posições adotadas pelo Arcebispo Lefebvre. Farei tal avaliação em três parágrafos.
- O Arcebispo Lefebvre nunca menciona os consideráveis movimentos que foram característicos da vida da Igreja durante as décadas que precediam o concílio: movimentos sem os quais o concílio não teria sido o que foi, pois, na medida em que o que eles representavam era válido, eles receberam o selo de aprovação da mais alta autoridade. O movimento litúrgico tinha um século de idade, e sua expansão pastoral estava em andamento por cerca de sessenta anos. Ele era baseado em trabalho de indisputável valor. Tornou possível nova vida na consciência católica para aquelas ideias daqueles que estão mais firmemente enraizados na tradição. O movimento bíblico conseguiu dar seus passos, igualmente sustentado por uma atividade séria e encorajado pelo Papa Pio XII. O movimento patrístico, do qual a excelente obra Catholicism, do Padre Henri de Lubac era, por assim dizer, um precursor em 1938, já estava dando frutos que foram multiplicados no período pós-conciliar. Se o Vaticano II marcou o fim da Contra-Reforma, ele também reestabeleceu ligações com muitos dos valores da Igreja dos Pais, do oriente e do ocidente. Sua autoridade no campo do ecumenismo deriva amplamente desse fato. Um movimento ecumênico sério também existia, e havia uma crescente tomada de responsabilidade por parte do laicato, junto aos bispos e padres, para atividades apostólicas e eclesiásticas... Tudo isso era, em certa medido, novo, mas de nenhum modo representava isso uma súbita ruptura. Isso se desenvolveu no percurso da vida histórica da Igreja, continuou a se desenvolver desde o concílio, e continuará a se desenvolver no futuro. Isso tudo é parte desta vida histórica da Igreja.
- Agora, eu diagnostico no Arcebispo Lefebvre uma certa rejeição das novas aquisições dessa vida histórica, uma rejeição do “mundo moderno”, e até mesmo uma negação de que há novos problemas que clamam por novas respostas. “Todas as questões essenciais no que diz respeito à humanidade sempre acharam sua solução, desde o início do mundo e acima de tudo, em nosso Senhor Jesus Cristo” (A83). “Todos aqueles que demandam da Igreja respostas a essas questões estão, temo eu, procurando em verdade por respostas já dadas pela Igreja, mas que eles recusam aceitar... Essas excelentes pessoas são “o mundo moderno”! Eles encontram e inventam uma hoste de “questões” com um propósito somente: que a Igreja deve hoje contradizer seu ensinamento tradicional” (A84). As últimas duas citações vêm de uma crítica, feita em 1964, do schema da Igreja no mundo moderno. Vale a pena notar que foram aquele texto e o texto Nostra aetate, sobre as religiões não-cristãs, que o Arcebispo Lefebvre se recusou a assinar. Ambos relacionados ao presente momento, envolvendo um elemento de aceitação de novas situações de fatos. Pode-se fazer uma observação semelhante sobre o assunto de pesquisa no campo da catequese (um termo que o Arcebispo Lefebvre rejeita!) e do Sínodo Romano de 1977. Para o Arcebispo Lefebvre o “moderno” deve ser rejeitado enquanto tal; ele escorrega frequentemente do “moderno” ao “modernista” (cf. E79, C5).
Isso porque aquilo que é “moderno” está infestado com “liberalismo” – ainda voltarei ao conteúdo desse termo. Assim, no que ele descreve como a antiga tradição, o antigo Magistério, o Arcebispo Lefebvre se refere ao seguinte como tendo completado a “doutrina de Trento”: a bula Auctorem fidei de Pio VI contra Pistoia, a Mirari vos, de Gregório XVI contra Lamennais, Quanta cura e o Syllabus de Pio IX, a Immortale Dei de Leão XIII “condenando a nova lei”, os Atos de S. Pio X contra Le Sillon e o Modernismo, Divini Redemptoris de Pio XI contra o Comunismo e, finalmente, a Humani Generis de Pio XII (E317-318). Todos esses são documentos contra: contra erros, contra tendências, contra “liberalismo”.
Não se pode falhar em notar uma corrente política subjacente nessas posições bem claramente definidas. O Arcebispo Lefebvre rejeita a acusação de que fora um seguidor de Maurras ou da Action Française. Mas (1) O Arcebispo Lefebvre tem uma noção paternalística da autoridade, “a causa formal da sociedade” (E84) – Eu falo isso sem negar que ele afirma com razão, que não há fraternidade sem paternidade; (2) ele tem apresentado como modelos de catolicismo a Espanha de Franco ou o Portugal de Salazar (E101), a Argentina (CP217) e o Chile de Pinochet (CP246); (3) finalmente, todo o mal vêm, na sua visão, da Revolução Francesa, com seu lema de “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” -- “Satã inventou essas palavras chaves, que tem permitido esgueirar concílio adentro todo tipo de palavra moderna e modernista: a liberdade adentrou através da liberdade religiosa ou a liberdade das religiões; a igualdade através da colegialidade, que tem introduzido os princípios de igualitarismo democrático para dentro da Igreja; e finalmente fraternidade, através do ecumenismo que incorpora todas as heresias e erros e dá sua mão a todos os inimigos da Igreja” (C5, cf E196, 259, 288, Carta a Paulo VI de 17 de julho de 1976).
- O Arcebispo Lefebvre trata todas as “condenações” contidas nos documentos aos quais ele refere como sendo absolutas, como por assim dizer uma questão de juízos dogmáticos reprovando heresias. Ele não distingue, como faria qualquer historiador, entre uma rejeição de erros teológicos e o elemento de contingência histórica apreciado pela autoridade pastoral, e eventualmente até mesmo reconhecido na política dos membros da Igreja. Ele agrupa na mesma condenação tudo o que lhe desagrada nos movimentos modernos, ecumenismo (E111) e a assim chamada Renovação Carismática (E264, 297; N146). A quintessência da heresia, na medida em que ele se preocupa, é o liberalismo – isto é, a chegada a um entendimento com a Reforma, com a Revolução (E100, 288), a liberdade total, legando tudo à consciência (E259) “liberando o homem de toda restrição que ele mesmo não aceite ou não deseje” (E315). A declaração conciliar sobre a liberdade religiosa é assemelhada, apesar do que ela expressamente diz, ao “indiferentismo religioso condenado pela doutrina e autoridade da Igreja” (C27).
Se o aspecto histórico do magistério pastoral e se as distinções que precisam ser feitas onde dizem respeito aos movimentos modernos fogem ao Arcebispo Lefebvre, é porque sua mente está absorvida em formulações eternistas.[5] “A verdade tem um caráter eterno” (C31, 34), pois Deus é imutável (ibid.), e Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre (C12, 31). Os fatos mencionados são incontestáveis em si mesmos, mas eles não excluem a historicidade de nossa percepção e de nossa expressão da verdade, acima de tudo em matérias que tocam em realidades sociais, movimentos de ideias, ou as atividades de estados, como é amplamente o caso para o Syllabus de Pio IX. Isso me dá uma oportunidade de dizer como eu abordo esse importante documento que foi anexado à encíclica Quanta Cura (8 de dezembro de 1864).
O SYLLABUS
- Esses são documentos importantes: Pio IX e Leão XIII o declararam como tais. Eles contêm pronunciamentos doutrinais que terão de ser respeitados, mesmo se em um contexto social, cultural e histórico diferente.
- Apesar de Vacant, cuja interpretação maximizadora do magistério ordinário do papa ninguém apoia,[6] não se pode caracterizar a Quanta cura ou o Syllabus como ensinamento infalível. Isso é provado (a) pelo fato de que tal infalibilidade é negada por Mhr Fesset, que foi secretário para o Concílio Vaticano primeiro e cujo livro recebeu a aprovação de Pio IX;[7] e (b) pelo fato de que o documento foi tão definitivamente não considerado como ensinamento infalível que os mais fervorosos apoiadores do magistério papal queriam que seu ensinamento fosse proclamado pelo concílio.[8] Outros temiam que isso fosse feito.
- A Quanta cura não pode ser entendida com razão exceto dentro de um contexto filosófico-político e social da época. Isso é ainda mais verdade para o Syllabus, que refere a várias intervenções pontifícias, alocuções consistórias em muitos casos, preocupadas com a situação político-religiosa em vários países (México; Europa, acima de tudo e decisivamente a Itália.)[9] Em muitas regiões um tipo horizontalizante de governo estava correndo desgovernado, tirando sua inspiração dos juristas ou dos filósofos do século dezoito e danosa à libertas Ecclesiae [Liberdade da Igreja] e a autoridade da sé de Roma. A questão do poder temporal da Santa Sé foi também decisiva. Tomar os pronunciamentos, as palavras elas mesmas, fora de seu contexto histórico é abrir-se ao risco de dar a eles um sentido e significância absolutos que estão além de, e, com isso, traem, sua verdade. Isso é particularmente verdade sobre a palavra “liberalismo”. Na realidade, ela mascarava um racionalismo aplicado pelos poderes no Estado em uma política antirreligiosa.[10] Ela tem sido, desse modo, questionada, tanto por Pio IX ou Leão XIII, por um certo Newman (que pronunciou o brinde à consciência!) e pelos católicos sociais estudados por E. Poulat.[11]
- Pio IX e Leão XIII ainda falaram por dentro da perspectiva do “Cristianismo”, isto é, de uma situação na qual os poderes temporais foram tomados como assunto às normas promulgadas pela Igreja, as quais eles tomaram como as bases das leis de seu próprio governo. Agora, em tal situação, princípios permanentes estimados a partir da missão divina da Igreja são misturados com as condições históricas emergindo da lei (mais ou menos) pública admitida, precisamente, nas eras da “Cristandade”. Os papas eles mesmos reconheceram isso, e não somente Paulo VI, mas Pio XII e, em parte ao menos, Pio XI.[12] Do mesmo modo, os papas, desde Leão XIII à Pio XI, Pio XII e acima de todos o João XXIII da Pacem in terris, sempre e a cada vez de forma mais clara defenderam, contra regimes ou práticas restritivas, a dignidade da pessoa humana, de tal modo que o documento conciliar Dignitatis humanae personae forma parte de uma ruptura contínua.[13] Os papas antes do Vaticano II seguiram o desenvolvimento da sociedade moderna, o que é algo que o Arcebispo Lefebvre infelizmente se recusa a fazer.
- Isso não significa que a Igreja adota os princípios do liberalismo racionalista ou o secularismo que ela condenou e que o Vaticano II igualmente criticou.[14] O que significa é que nos ensinamentos anteriores do magistério há um substrato básico, um corpus essencial de princípios que devemos sempre respeitar, mas que foram expressos no passado dentro de um contexto histórico que não é mais o nosso e que hoje devemos respeitar de outro modo. Não tenho espaço aqui para desenvolver esse ponto, mas eu gostaria de ilustrar isso com esses três exemplos: (a) os documentos de Pio IX e de Leão XIII contra o liberalismo racionalista. (b) O princípio enganosamente óbvio “fora da Igreja não há salvação” e os documentos contemporâneos, seja do Dicastério para a Doutrina da Fé sobre o caso Feeney ou do Vaticano II.[15] (c) A transição de vinte ou trinta anos da Mortalium Animos (6 de janeiro de 1920) para a instrução Ecclesia Catholica de dezembro de 1949 e o decreto conciliar sobre o ecumenismo.[16] Há, de fato, uma continuidade de princípios essenciais, um desenvolvimento, uma nova e diferente expressão de princípios e sua visão em um contexto histórico novo e diferente.
Essas considerações não constituem um tangenciamento. Elas nos levam ao núcleo daquelas distinções que se relacionam à noção de tradição.
A VERDADEIRA NOÇÃO DE TRADIÇÃO. DISTINÇÕES
Tradição é uma vasta realidade. Eu dediquei um número de estudos a isso.[17] Significa, para a Igreja, confrontar seu presente e seu futuro à luz de suas raízes passadas. Nesse sentido, eu poderia tomar a fórmula do próprio Arcebispo Lefebvre: “É porque nossa fé é a fé do passado que ela é também a fé do futuro” (C17, 34). Tradição é, em verdade, a presença de um princípio por toda sua história. Mas, mais precisamente, há em um e ao mesmo tempo a identidade do princípio e da realidade histórica de situações, formas e expressões. É assim pelas seguintes razões: (1) Tradição não é somente transmissão, mas também recepção. Nada seria efetivamente transmitido se não fosse também recebido. Daí a necessidade de traduzir e adaptar. Isso é o que tem sido feito em particular onde é matéria de instituição – liturgia, ministérios, papado. Essas coisas têm uma história! (2) Tradição é um grande rio que, desde sua nascente na Revelação e no Evangelho, tem fluído por muitas terras e por vários séculos. O rio, desse modo, recebeu de vários afluentes que misturaram suas contribuições com a da nascente. Houve questões colocadas ao longo do tempo e em diferentes climas pelos diferentes movimentos do mundo ou por heresias. Houve também as contribuições de culturas, gênios e santos, de toda a vida do Povo de Deus. A Tradição, tal como ela foi recebida por nós, é feita de tudo isso, de modo que é possível distinguir dentro dela a qualidade absoluta do princípio, gradualmente desenvolvido ou esclarecido, e as formas históricas associadas com diferentes eras, os contextos mais ou menos mutáveis. Vejamos, nesse ponto, a três dos mais recentes Romanos Pontífices:
“Tradição é algo muito diferente de mero apego a um passado que desapareceu: é em verdade o oposto de uma reação que desconfia todo progresso saudável. ... A palavra “progresso” indica simplesmente o fato de marcha adiante. “Tradição” ainda significa uma marcha adiante, mas uma marcha contínua, que desvela ao mesmo tempo com força e tranquilidade, de acordo com as leis da vida”.[18]
“É acima de tudo necessário que a Igreja não perca contato com a sagrada herança de verdade recebida dos Pais, mas ao mesmo tempo ela deve também prestar atenção no presente, nas novas condições e formas e vida introduzidas no mundo moderno, que abriram novas avenidas para o apostolado católico ... A substância da antiga doutrina contida no depósito da fé é uma coisa, o modo pelo qual ela é formulada é outro ...”[19]
“Tradição não é uma entidade fossilizada ou morta, uma realidade de algum modo estática, que em um dado momento na história bloqueia a vida daquele organismo ativo que é a Igreja, isto é, o Corpo Místico de Cristo. Recai sobre o Papa e aos concílios ecumênicos realizar um juízo, para discernir o que nas tradições da Igreja não é possível renunciar sem ser infiel ao Senhor e ao Espírito Santo – o depósito da fé – e o que em contrário pode e deve ser atualizado, para facilitar oração e na missão da Igreja ao longo da variedade de tempos e locais, para traduzir a mensagem divina mais eficientemente na linguagem de hoje e para comunicá-la melhor, sem compromisso indevido. Basicamente, você [referindo-se a Lefebvre] ouve a si mesmo e àqueles que o seguem. Você para em um momento particular na vida da Igreja, e ao fazer isso você recusa aderir à Igreja viva, que é a antiga Igreja ...”[20]
Aqui então estão os princípios para esclarecimentos que foram requisitados. Esses esclarecimentos se relacionam à distinção entre aquele um princípio e suas formas históricas. Falha-se com eles quando, por carência de informação e senso histórico, adota-se uma posição fixista e eternista; quando, tendo-se escolhido os polos de referência dentre aqueles opostos às corruptas novidades do mundo moderno, faz-se um absoluto do caminho no qual eles foram expressos, confundindo o relativo da história com o absoluto da fé. Pode-se chamar isso de “dogmatismo” ou “ideologia”, ou, de outro modo, em termos médicos, paranoia. É triste que uma fidelidade que é manifestamente tão sincera e em si mesma digna de louvor possa estar tão errada na forma como é aplicada! A Igreja necessita dela, contanto que seja exercida em comunhão com sua vida presente.
Notas
[1] Abreviações usadas
E Archbishop Marcel Lefebvre, Un évêque parle, Ecrits et allocutions 1963-1975 (Dominique Martin-Morin, 1976).
A Archbishop Lefebvre, J’uccuse le Cocile! (Editions Saint-Gabriel, CH 1920 Marligny, October 1976).
C Archbishop Lefebvre, Le coup de maítre de Satan. Ecône face à la persecution (Saint-Gabriel, 1977).
P Minutes of the interview with Cardinals Garrone, Tabera and Wright, 3 March 1975. Em R. Gaucher, Mgr Lefehve combat pour I'Englise (Paris, 1976, pp. 216-61)
CP Press conference held by Archbishop Lefebvre on 15 September 1976. Em J. A. Chalet, Monseigneur Lefebvre (Paris, 1976, pp. 233-48—veja em pp. 205-26 o texto de seu discurso em Lille em 23 de agosto de 1976)
N Non, interviews of Jose Hanu with Archbishop Lefebvre (Paris, 1977).
[2] Carta do Arcebispo Lefebvre para Papa Paulo VI, 3 de dezembro de 1976. Em Documentation Catholique, no. 1715, 6 de março de 1977, p. 229.
[3] Discurso em Nova York, 6 de novembro de 1977 em Le Monde, 9 de novembro de 1977, p. 19.
[4] Citei esses textos, em particular aqueles de Santo Anselmo, Graciano e Santo Tomás de Aquino em Apostolicité de ministère et apostolicité de doctrine, Festgabe J. Höfer (Freiburg im Breisgau, 1967), pp. 84–111; Ministères et Communion Ecclésiale (Paris, 1971, pp. 51–94).
[5] Ver «La Rome Eternelle» e, em um tom simpático às posições de Lefebvre, Marquis de la Franquerie, «Charles Maurras, défenseur de l'Église et des principes éternels»; M. Mad. Martin, Le Latin immortel.
[6] J-M. A. Vacant, «Le magistère ordinaire de l'Église et ses organes», Paris-Lyons, 1887, pp. 102ff. Ver também J. Bellamy, «Le Théologie catholique au XIX siècle», Paris, 1904, pp. 239ff.
[7] Mgr Fessler, «La Vraie et la fausse infaillabilité», Paris, 1873, pp 8ff, 132ff.
[8] Daí os famigerados artigos na Civiltà Cattolica (6 de fevereiro de 1869). Era um dos desejos de um certo Rodrigo Guste dentro da comissão preparatória. Perceba-se, igualmente, aquilo que Mgr Preppel escreveu a Mgr Maret em 20 de fevereiro do mesmo ano. Durante o Concílio o assunto foi retomado, mas mesmo Pio IX o considerou inoportuno. Veja, entre outros, R. Aubert, Vatican I, coll. Les Conciles Oecumeniques, Paris, 1964, pp. 71, 75.
[9] Sobre esse assunto, veja E. Ollivier, L'Église et l'Etat au concile du Vatican, vol I., pp. 342–55; R. Aubert, Le Pontificat de Pie IX, Paris, 1951; L'enseignements du Magistere ecclesiastique aux XIXe siècle sur le liberalisme, em Toleránce et Communauté humaine, Bruxelas, 1952, pp. 75–103.
[10] "Na França, assim como na Bélgica, o rótulo 'liberal' continuou a ser usado durante o século XIX para taxar e causar o pior fanatismo mais anticlerical e mesmo antirreligioso". J. Lecler, «Les Controverses Sur l'Église et l'Etat au temps de la Restauration (1815–1830)» em L' Ecclésiologie au XIXe siècle, Paris, 1960, p. 305, n. 23; ibid., «La papauté moderne et la liberté de conscience», em Études, 249 (1946), pp. 298.
[11] E. Poulat, Église contre Bourgeoisie; Introduction au devenir du Catholicisme actuel, (Bruxelas, 1977).
[12] Reférences dans notre Église catholique et France moderne, (Paris, 1978), p. 265, n.7.
[13] Ver por exemplo os artigos de R. Aubert, E. Borne e M.-D. Chenu em «Essais sur la liberté religieuse», Reserches et Débats no. 50, Março de 1965; J. C. Murray, «Vers une intelligence du développement de la doctrine de l'Eglise sur la liberté religieuse» em «Vatican II et la Liberté Religieuse», Unam Sanctam 60, (Paris, 1967), pp. 111–47.
[14] O decreto Apostolicam actuositatem, no. 7.
[15] Explicações e referências em um artigo meu de 1956 publicado em Catholicisme, vol. V, pp. 948–56, publicado novamente em “Sainte Église”, (Paris, 1963), pp. 417–32; ver também Lumen Gentium, 16, e Ad Gentes, 7.
[16] Ver a conferência escrevi para o quinquagésimo aniversário de Lausanne, “Cinquante années de recherche de l'unité”, (Lausanne, 1977), pp. 20–34; e em Istina 23 (1978).
[17] La Tradition et les traditions, vol. I., Essai historique, vol. II, Essai théologique, (Paris, 1960-1963); La Tradition et la vie de l'Église, (Paris, 1963); Tradition in Theology, A Symposium on Tradition, (The Great Ideais Today, 1974: Encyclopaedia Britannica), cols. 4–20.
[18] Pio XII, discurso para a nobreza romana, 19 de janeiro de 1944.
[19] João XXIII, discurso inaugural do Concílio, 11 de outubro de 1962.
[20] Paulo VI, carta ao Arcebispo Lefebvre, 11 de outubro de 1976, publicada em francês no Osservatore Romano, 10 de dezembro de 1976.