[Nota Introdutória por Gabriel Marculino]
David Gordon expõe, dentre várias, as contribuições epistemológicas de Ludwig von Mises no que diz respeito principalmente à ciência econômica -- concepções como as de causalidade, sua posição acerca das definições de juízos analítico e sintético, sua defesa do laissez-faire como contribuição a filosofia política, da relação entre ciência econômica e a ética, sua concepção de ciência contra o positivismo de sua época, seu background filosófico e sua relação com autores como Kant, Bergson, Edmund Husserl e demais autores.
As Contribuições Filosóficas de Ludwig von Mises
David Gordon[1]
Um tema central une as frequentes aventuras de Ludwig von Mises na filosofia, Mises acreditava que a economia, como ele a praticava, dava acesso a "uma terceira classe de leis da natureza".[2] O método da economia diferia fundamentalmente daquele da física e da biologia, as fontes das outras classes da lei natural. Uma teoria sólida do conhecimento, portanto, deve enfatizar adequadamente a investigação dedutiva da ação humana, o método da economia. O lugar da economia na teoria ética é menos direto; mas também aqui os resultados da análise econômica circunscrevem de perto as opções disponíveis na teoria do valor.
Em suma, Mises escreveu filosofia como um economista. Ao contrário de seu grande rival John Maynard Keynes, que tinha opiniões filosóficas que moldaram suas visões econômicas, para Mises a direção da causação foi oposta: a economia determinava a filosofia.[3] Tentarei ilustrar a perspectiva distinta de Mises sobre questões filosóficas, concentrando-me principalmente na teoria do conhecimento e da ética.
O fio condutor da teoria do conhecimento de Mises era a defesa da economia. Sua disciplina precisava ser protegida contra ataques metafísicos e tentativas científicas de eliminar a categoria da ação humana. Na opinião de Mises, os argumentos metafísicos não podem ser usados para desafiar a economia, uma vez que os seres humanos não podem alcançar a verdade última que os metafísicos buscam. "Está além dos limites de uma investigação racional entrar em uma análise de qualquer variedade de metafísica, avaliar seu valor ou sua sustentabilidade e afirmá-la ou rejeitá-la."[4] Assim, esquemas abrangentes, e.g., a representação de Hegel do crescimento da Ideia Absoluta até a plena autoconsciência, não podem ser usados corretamente para desafiar a economia. Afirmar, com Werner Sombart, que a economia se baseia em um "método de isolamento" que a filosofia correta expôs como falacioso é ilegítimo.[5] A economia, não a metafísica, que está no banco do motorista.
Mas por quê? Como Mises sabe que a investigação metafísica é estéril? Seu argumento é o seguinte: Para sobreviver, os seres humanos identificam regularidades no mundo. A menos que se possa prever que os objetos se comportarão de maneira fixa, a ação é impossível. Não se pode fazer nada se o mundo for, na frase de William James, "uma confusão estrondosa e barulhenta". A suposição de que os objetos operam em uma ordem regular, no entanto, não pode ser provada. "Não há demonstração dedutiva possível do princípio da causalidade e das inferências ampliativas da indução perfeita; há apenas o recurso à afirmação não menos indemonstrável de que há uma regularidade estrita na conjunção de todos os fenômenos naturais."[6]
A suposição de regularidade não é o único princípio que os seres humanos usam para categorizar o mundo, mas todos os outros princípios dependem dele. Assim, se não puder ser provado que o mundo é realmente regular, nenhuma das outras categorias pode ser derivada dedutivamente. Do fato de que os seres humanos precisam pensar sobre o mundo de uma certa maneira, não se segue que o mundo realmente tenha os atributos que atribuímos a ele. "Em epistemologia [...] não estamos lidando nem com a eternidade nem com condições em partes do universo das quais nenhum sinal chega à nossa órbita, nem com o que pode possivelmente acontecer em eras futuras."[7] É essa limitação de nosso pensamento que fecha nosso acesso à verdade sobre a metafísica.
Assim como Immanuel Kant, então, Mises pensava que a mente humana apreende o mundo apenas por meio de suas próprias categorias. Mas essa semelhança dificilmente basta para fazer de Mises um kantiano estrito. Ao contrário de seu grande predecessor, Mises não afirmou que um determinado conjunto de categorias é um pressuposto necessário da experiência. Para Mises, as categorias são aquelas que os seres humanos de fato usam agora. Ele não tenta nenhum argumento transcendental no estilo da Crítica da Razão Pura para derivá-los.[8] De fato, como vimos, ele especificamente nega que o princípio causal possa ser demonstrado.
Em vez de uma derivação lógica das categorias, Mises oferece uma história evolucionária "just so". Seres humanos que não usassem a suposição de regularidade seriam incapazes de sobreviver. Seus parentes mais afortunados que de fato usaram essa categoria, em comparação, floresceriam. Por meio de um processo análogo à seleção biológica, um conjunto de categorias comuns gradualmente se enraizou na mente humana.[9]
À primeira vista, pode-se estar inclinado a objetar o argumento evolucionário de Mises desta forma: se as pessoas que usam o princípio da regularidade sobrevivem, enquanto aquelas que não o fazem perecem, qual é a explicação desse fato? Não mostra que o princípio da regularidade é verdadeiro? Se sim, como Mises pode afirmar que o princípio não pode ser provado?
Mas esta objeção falha: Mises está inteiramente certo. Do fato de que usar um princípio ajuda a sobrevivência, não se segue que o princípio caracteriza com precisão a realidade. No entanto, sabemos que o mundo tem essa propriedade: aqueles nele que usam o princípio têm uma vantagem sobre os não usuários. Talvez a melhor explicação para o sucesso de nossas categorias seja que elas descrevem o mundo com precisão, mas isso está muito longe de ser uma prova de que o fazem.[10] Além disso, como Mises bem sabia, todo o esquema evolutivo é especulativo.[11]
Apesar da afirmação de Mises de que o princípio da regularidade não pode ser provado, ele dá grande ênfase a ele. A "regularidade estrita" que ele encontra em todos os fenômenos naturais o leva a rejeitar o indeterminismo na mecânica quântica. O princípio da incerteza de Heisenberg limita nosso conhecimento: não mostra que a lei da causalidade seja falsa para partículas subatômicas.[12]
A posição de Mises parece vulnerável. Ele pensa que o princípio da regularidade é uma categoria essencial da mente humana; precisamos pensar de acordo com ele. Mas se isso estiver certo, não deveríamos considerar a indeterminação na natureza impensável? Mesmo que Mises esteja certo em rejeitar a incerteza real na natureza, como ele explica o fato de que a opinião a que ele se opõe pode ser genuinamente considerada? Na sua opinião, é um absurdo à primeira vista. Ele pode responder que, afinal, a mecânica quântica é muito contra-intuitiva. Os paradoxos que encontramos nesse campo ilustram a afirmação de Mises de que nossas categorias de pensamento se aplicam apenas ao mundo que conhecemos.
Mas o que tudo isso tem a ver com economia? A explicação de Mises da regularidade na natureza prepara o cenário para um contraste. O estudo da ação humana não procede por generalização indutiva de regularidades percebidas. Em vez disso, seu método é dedutivo e seu ponto de partida é o conceito de ação. Através de uma análise desse conceito, os princípios da economia podem ser deduzidos. "Ação e razão são congêneres e homogêneas; podem até ser chamadas de dois aspectos diferentes da mesma coisa."[13]
Mises pode manter consistentemente seu contraste entre o estudo da ação humana e as ciências dos fenômenos naturais? Os seres humanos fazem parte do mundo natural: por que, então, estão imunes ao princípio de regularidade? Mises acredita que "o determinismo é a base epistemológica da busca humana pelo conhecimento".[14] Se ele estiver certo, ele não minou seu objetivo filosófico fundamental — a defesa da economia austríaca?
A resposta de Mises fornece uma chave para entender seu pensamento. O determinismo de fato se aplica aos seres humanos: "O que um homem faz em qualquer instante de sua vida depende inteiramente de seu passado, isto é, de sua herança fisiológica, bem como de tudo o que ele passou em seus dias anteriores".[15] Mas não sabemos como o pensamento e a ação humana são determinados por esses fatores. O determinismo é, portanto, inútil no estudo da ação humana. Em vez disso, precisamos supor que a mente opera de forma autônoma. Afirmar isso não é afirmar que a mente realmente é independente do mundo físico: isso contradiz o que Mises considera ser uma suposição básica da ciência.
Em vez disso, "[o] dualismo metodológico se abstém de qualquer proposição sobre essências e construções metafísicas. Ele apenas leva em conta o fato de que não sabemos como os eventos externos [...] afetam os pensamentos, ideias e juízos de valor humanos".[16] A justificativa de Mises da praxiologia, então, é esta: apesar do princípio de regularidade, não sabemos como o pensamento humano é determinado. As teorias que atribuem causas particulares ao pensamento são, portanto, metafísicas, não científicas, e devem ser rejeitadas. Duas características desse argumento exigem ênfase. Primeiro, de acordo com seu desejo de defender a economia em vez de sustentar uma filosofia própria, Mises assume o mínimo possível. Ele não afirma que os seres humanos são metafisicamente livres: ele se contenta com a afirmação de que em economia eles precisam ser tratados como agentes racionais. Mais questionável, ele manifesta uma forte hostilidade à metafísica.
A visão de Mises sobre a ação humana fornece evidências adicionais de que ele não é um kantiano estrito. Como acabamos de ver, a posição de Mises é que os seres humanos devem ser tratados como agentes racionais, pois não sabemos como a ação é determinada. A de Kant foi em parte o inverso. Ele pensava que o self real ou numênico não é determinado. Não é que não tenhamos acesso às leis que determinam a ação humana, como Mises acredita: realmente somos livres.[17] No mundo como o conhecemos, i.e., o mundo fenomênico, a situação é outra. A ação humana é determinada pelo desejo de felicidade.[18]
Nesta última visão, Kant e Mises estão bastante próximos. Mises também assume que "[f]elicidade [...] é o único fim último".[19] Sempre buscamos alcançar a classificação mais alta de nossas preferências que achamos alcançável. Mises não assume que podemos escolher livremente nossas preferências: a liberdade, como ele a concebe, é o uso da razão para atingir nossos objetivos. Mas essa semelhança, na minha opinião, não é suficiente para colocar Mises no campo kantiano.[20]
Na teoria do conhecimento, então, Mises está satisfeito com uma conclusão muito modesta: nem a ciência física nem a metafísica representam um desafio para a economia. A natureza limitada da alegação de Mises, no entanto, não garantiu a ele imunidade aos ataques. Os positivistas lógicos (o "Círculo de Viena") apresentaram posições que, se aceitas, colocavam a praxiologia em perigo. Mises considerou uma tarefa vital responder ao positivismo, e acho que seus esforços nessa área constituem sua contribuição mais valiosa para a teoria do conhecimento.
O choque dos positivistas com a praxiologia resultou de sua teoria do significado.[21] Resumidamente, eles sustentavam que a dedução não pode nos dar nenhum conhecimento sobre o mundo empírico. Todas as verdades necessárias são analíticas; são tautologias empiricamente sem significado. Como a praxiologia procede por dedução de um axioma necessariamente verdadeiro, a ameaça representada pelo positivismo é aparente. A economia deve se aplicar ao mundo: não é "uma dança fantasmagórica sobrenatural de categorias frias". Se o método que ele usa falhar em seu propósito, a economia misesiana está arruinada.
O argumento mais importante de Mises contra os positivistas era simples. Eles pretendem banir a metafísica e seguir a ciência, mas sua própria posição é metafísica. "[A] epistemologia do positivismo é ela mesma baseada em um tipo definido de metafísica."[22] Se os positivistas observassem com precisão a praxiologia, seriam forçados a abandonar suas posições. A praxiologia é uma disciplina dedutiva que, ao contrário do dogma positivista, nos dá conhecimento do mundo real. Declarar ilegítima uma ciência existente porque viola uma doutrina filosófica é em si ilegítimo: a metafísica não pode derrubar a ciência.
A força do ponto de Mises é dupla. Primeiro, ele mesmo concorda com os positivistas que a filosofia é subordinada à ciência. Quando ele afirma que uma doutrina filosófica não pode derrubar uma conclusão da ciência, ele fala em seu próprio nome. Mas, mais fundamentalmente, seu argumento funciona contra os positivistas mesmo se alguém discordar da posição de Mises sobre a relação da ciência com a filosofia. Os positivistas concordam mesmo com ele aqui: seu argumento é, portanto, uma réplica ad hominem eficaz contra eles. Eles, os oponentes da metafísica, estão eles mesmos engajados na metafísica se rejeitam a praxiologia.[23]
Mises usa a mesma resposta para o critério de falseabilidade de Karl Popper. Popper, ao contrário dos positivistas, não considerou todas as declarações metafísicas como sendo sem significado. Em vez disso, ele adotou a posição mais limitada de que todas as declarações científicas devem poder ser provadas como falsas. Os teoremas da praxiologia, na medida em que são derivados dedutivamente de um axioma autoevidente, falham neste teste: nada pode falsificá-los.
A resposta de Mises é caracteristicamente direta. Se Popper deseja classificar a praxiologia como não científica, isso é problema dele. Os testes apropriados da praxiologia são a verdade de seus axiomas e a validade de seus argumentos. Por que deveria importar se a praxiologia atende ao critério de ciência proposto por um autor em particular? Por que conta contra uma afirmação de que é metafísico no sentido de Popper?
Aqui, mais uma vez, Mises usa um argumento ad hominem. Como os positivistas, Popper sustentou que as definições não descrevem essências reais: são propostas arbitrárias para o uso de um termo.[24] Mises habilmente usa essa visão contra Popper para mostrar que sua própria caracterização de declarações científicas é uma proposta arbitrária.
Mises tem outro argumento que usa a doutrina positivista contra ela mesma. "[A] proposição de que não há proposições sintéticas a priori é ela mesma uma [...] proposição sintética a priori, pois manifestamente não pode ser estabelecida pela experiência."[25] Um positivista poderia negar isso e afirmar que a afirmação era uma generalização indutiva. Mas então o que o justifica em rejeitar exemplos padrão de proposições a priori, e.g., "tudo o que é colorido é estendido", para não mencionar os teoremas da praxiologia? Alternativamente, um positivista pode alegar que a afirmação contestada é analítica, mas não está claro o que fundamentaria essa afirmação.
Mises não limita sua crítica a refutações do tipo que acabamos de descrever. Ele examina diretamente as principais alegações dos positivistas lógicos e as considera deficientes. Os positivistas afirmam que as proposições da matemática e da lógica são tautologias. Mas mesmo que isso seja verdade, podemos aprender algo novo com a investigação matemática ou lógica.[26] Mesmo que todos os teoremas da geometria sejam reafirmações dos axiomas usados em suas demonstrações, não se segue que possamos compreender os teoremas de uma vez quando aprendemos os axiomas. A distinção que Mises faz aqui se assemelha à separação feita por Tomás de Aquino de proposições "autoevidentes em si mesmas" daquelas "autoevidentes para nós".[27]
A crítica de Mises aos positivistas parece eminentemente bem aceita; mas mesmo se alguém aderir a essa filosofia, Mises tem os recursos para proteger a praxiologia. Ele chama as proposições da economia de verdades sintéticas a priori, mas não está nada claro se ele tem em mente o que os positivistas desejam excluir. O que Mises quer dizer com uma proposição "sintética"? Como discutido acima, ele responde à afirmação de que as proposições matemáticas são tautologias com o ponto de que podemos aprender algo novo de algumas tautologias. Ele quer dizer com uma proposição sintética, então, uma que nos dá novos conhecimentos? Se o fizer, sua posição é perfeitamente consistente com a de seus inimigos positivistas. Eles estão preocupados em excluir proposições que, em seu sentido dos termos, são ao mesmo tempo necessárias e não analíticas. Até onde posso determinar, Mises não tomou uma posição sobre esta questão; ele não afirma nem nega, e.g., que o predicado do axioma da ação está "contido no sujeito. Ele não oferece nenhuma explicação formal de proposições sintéticas, no entanto, então a sugestão de que a praxiologia é imune ao ataque positivista dessa maneira é conjectural.
Mesmo que essa sugestão seja rejeitada, grande parte da praxiologia ainda não está sob ameaça dos positivistas. Embora "[t]odos os conceitos e teoremas da praxiologia estejam implicados no conceito de ação humana", suas investigações se restringem "ao estudo do agir sob aquelas condições e pressupostos que são dados na realidade".[28] Para conseguir isso, postulados subsidiários precisam ser adicionados ao axioma da ação, e.g., a suposição de que o trabalho tem utilidade negativa. Mas "[a] desutilidade do trabalho não é de caráter categórico e apriorístico. Podemos, sem contradição, pensar em um mundo em que o trabalho não cause desconforto, e podemos retratar o estado de coisas que prevalece em tal mundo".[29]
Se a praxiologia inclui proposições empíricas, por que os positivistas se oporiam a ela? Eles não rejeitam o uso da lógica na ciência: em vez disso, pensam que a lógica por si só não nos fornecerá o conhecimento do mundo empírico. Mas "[e]conomia não segue o procedimento da lógica e da matemática. Não apresenta um sistema integrado de puro raciocínio apriorístico separado de qualquer referência à realidade".[30] Os únicos teoremas da praxiologia, então, que entram em conflito com o positivismo são aqueles que não incluem nenhuma proposição empírica em sua derivação. Mises argumentou vigorosamente que o positivismo lógico não deveria ser aceito; e, estendendo os pontos que Mises faz, podemos mostrar que a praxiologia corre pouco perigo com isso.
É claro que economistas influenciados pelo positivismo seguiram métodos de investigação radicalmente divergentes dos preceitos de Mises. Muitos deles confiam muito em testes empíricos, enquanto Mises acha isso desnecessário e, em muitos casos, impossível. Milton Friedman chega a dizer que os pressupostos de uma teoria econômica podem ser falsos, desde que a teoria gere previsões corretas. Uma divergência maior de Mises seria difícil de imaginar. Mas nenhuma dessas posições decorre do critério de verificabilidade do significado. Um positivista simpatizante da praxiologia pode tomar o axioma da ação como uma proposição empírica de senso comum, conhecida pela introspecção como sendo verdadeira.[31]
Um outro ponto requer menção: se a praxiologia é consistente com o positivismo, isso invalida um dos principais argumentos de Mises contra os positivistas? A própria existência da praxiologia, afirma ele, refuta a visão deles da ciência. Mas se a praxiologia é consistente com o positivismo, esse argumento não precisa ser retirado? Como sempre, Mises está em bases seguras: tudo o que é necessário é uma modificação dele. Mises pode apresentar esse dilema aos detratores positivistas: se a praxilogia contradiz suas posições, sua existência como ciência os refuta; se não, eles não podem se opor a isso. E de qualquer forma, Mises ainda mantém intactos todos os seus outros argumentos contra os positivistas.
O principal objetivo de Mises na epistemologia, esforcei-me para mostrar, era defender a economia. "No que diz respeito à praxiologia, os erros dos filósofos são devidos à sua completa ignorância de economia e muitas vezes ao seu conhecimento escandalosamente insuficiente de história."[32] Na ética, seu objetivo principal era semelhante, mas não idêntico. Na sua opinião, a economia por si só não sustenta quaisquer conclusões éticas. Mas se alguém reconhece um juízo de valor que considera quase universalmente aceitável, o estabelecimento de um mercado livre é imperativo. Mises reconheceu que várias escolas de ética tinham objeções ao livre mercado, e seu objetivo nesse ramo da filosofia era defender o mercado de ataques. Seu método era radical: ele negava completamente a possibilidade de uma ética objetiva. Se Mises estiver correto, todas as objeções éticas ao livre mercado falham imediatamente.
Na visão de Mises, faz sentido perguntar: dado um determinado fim, como esse fim pode ser melhor alcançado? Se alguém deseja construir uma casa, a questão de como ele pode usar melhor seus recursos para fazê-lo admite uma resposta objetiva. A construção da casa depende dele; a melhor forma de fazê-lo não é. A racionalidade é uma questão de meios, não de fins. A questão é, no entanto, um pouco complicada pelo fato de que um fim pode ser um meio para um outro fim.[33] Mises, de fato, sustenta que "[a] felicidade no sentido puramente formal em que a teoria ética aplica o termo é o único fim último". Mises quis dizer com isso que queremos as coisas não por si mesmas, mas pela satisfação, avaliada puramente subjetivamente, que esperamos que elas nos tragam.
A noção de valores de Mises se opõe a dois tipos concorrentes de teoria, e ele se opôs explicitamente a ambos. Alguns filósofos sustentam que existem bens ou fins objetivos "lá fora no mundo". Independentemente do que as pessoas pensam, certas coisas são boas ou ruins. Franz Brentano, um dos principais defensores dessa posição, sustentava que os juízos de valor eram "corretos" ou "incorretos", analogamente à verdade ou falsidade das proposições factuais. Mises rejeitou a justificativa de Bretano; infelizmente ele não discutiu os argumentos de Brentano.[34] Contra o objetivismo estético Mises é contundente: "Somente pedantes empolados podem conceber a ideia de que existem normas absolutas para dizer o que é belo e o que não é".[35]
Alguns proponentes da ética objetiva concordam com Mises que os valores não são propriedades que os objetos possuem. No entanto, a ética não é subjetiva, pois a razão pode mostrar que estamos sob certas obrigações, independentemente dos fins que tenhamos. Mises tem pouco tempo para essa posição. Ele diz de seu principal proponente: a "parte mais fraca do sistema de Kant é sua ética".[36]
Ao descartar a ética objetiva, Mises preparou o caminho para sua própria defesa do livre mercado. A principal preocupação de Mises em justificar a economia sugere um motivo adicional para sua concepção subjetivista de valores. Alguém que acredita em valores objetivos no estilo de G. E. Moore, mas também aceita a economia austríaca, precisa encaixar dois tipos diferentes de valor em seu sistema intelectual. Aceitando apenas valores subjetivos, torna-se possível uma drástica simplificação intelectual; e Mises pode ter achado a tentação de empunhar a navalha de Occam forte demais para resistir. Mais prosaicamente, como economista, Mises estava completamente familiarizado com valores subjetivos e pode ter achado qualquer outra abordagem conceitualmente desconfortável. Isso explica em parte o fato de Mises dizer pouco para apoiar sua condenação de valores objetivos: ele trata a questão como praticamente auto-evidente.
Embora Mises geralmente não aborde em detalhes os argumentos dos objetivistas de valor, em uma ocasião ele o faz, com resultados esclarecedores.
O filósofo político Leo Strauss afirmou que muitos termos em nossa linguagem fundem componentes descritivos e avaliativos. Se alguém chama alguém de cruel, o julgamento se baseia em critérios factuais. Stalin agiu cruelmente, e.g., causando a morte de milhões de camponeses russos. Este julgamento não é, para reiterar, uma questão de avaliação subjetiva; mas é objetivo exatamente da mesma forma que "Stalin foi o sucessor de Lenin". No entanto, chamar alguém de cruel implica uma avaliação negativa dele. Assim, ao contrário dos subjetivistas de valor, a linguagem nos impõe certos juízos de valor. Afirmar que todos os valores são subjetivos é ignorar para um grande número de termos os critérios que nossa linguagem estabelece.
Mises discordou vigorosamente. Ele considerou três exemplos dados por Strauss: "crueldade", "prostituta" e "grupo de pressão".[37] Em cada caso, Mises sustentou: pode-se usar o termo em questão de maneira neutra em valor ou substituir por outro termo que não tenha a natureza carregada de valor do original. Assim, é falso que considerações linguísticas impeçam de separar fato e valor.
Este não é o lugar para uma avaliação da controvérsia. Pelo contrário, é a existência da própria disputa que merece atenção. Durante o final dos anos 1950 e início dos anos 1960, um dos argumentos mais importantes da filosofia moral moderna ocorreu entre Philippa Foot e Elizabeth Anscombe, por um lado, e R. M. Hare, por outro. (Todos os três eram na época professores de filosofia na Universidade de Oxford). Foot e Anscombe adotaram precisamente a posição de Strauss: há critérios para o uso de termos como "rude" ou "corajoso". Uma vez que um termo desse tipo é aplicado, nenhum ato separado de avaliação é necessário: os termos já são valorativos. Assim, os critérios descritivos implicam uma postura avaliativa, e a “dicotomia fato-valor” é, pelo menos nesses casos, falsa.
Hare objetou, em termos que lembram Mises: "Mas as palavras primariamente avaliativas são assim classificadas apenas porque seu significado descritivo é secundário e, portanto, é mais capaz de ceder quando as atitudes mudam, permanecendo o significado avaliativo inalterado".[38] Como Mises, Hare sustenta que nenhuma descrição nos compromete irrevogavelmente com uma avaliação.
Tanto na ética quanto na epistemologia, portanto, as contribuições de Mises surgem no decorrer de uma campanha defensiva em nome da economia austríaca e do livre mercado. Nesse caso, que lições podem ser extraídas sobre a maneira de estudar a filosofia de Mises?
Mais fundamentalmente, sua filosofia deve ser abordada por meio de seus próprios escritos, observando particularmente a maneira pela qual a teoria econômica lhe sugere posições filosóficas. O maior erro que se pode cometer nessa área, atrevo-me a sugerir, é atribuir Mises a uma escola filosófica e interpretar sua economia nessa base. Como exemplo do que deve ser evitado, consideremos a atribuição a Mises de uma visão "bergsoniana" do tempo. Quando Mises discute o tempo na economia, ele tem em mente o tempo como experienciado por seres humanos, particularmente na ação. Não se segue disso que Mises deva ser sobrecarregado com a crítica de Bergson do tempo na ciência física como uma abstração ou com sua defesa da compreensão intuitiva da duração real.
Mises cita Henri Bergson em apenas algumas ocasiões, e suas observações dificilmente constituem um endosso de suas posições. Ele concorda com Bergson que para os seres humanos o presente real é apreendido na ação. Mas também afirma: "não é a recordação que transmite aos homens as categorias de mudança e de tempo, mas a vontade de melhorar as condições de sua vida".[39] Isso no contexto parece ser uma crítica a Bergson.
Mais uma vez, Mises observa: "é verdade, como Bergson viu com clareza insuperável, que entre a realidade e o conhecimento que a ciência pode nos transmitir há um abismo intransponível. A ciência não pode apreender a vida diretamente. [...] Mas, se pensa-se que pronunciou-se um julgamento desfavorável sobre a ciência, está-se enganado."[40] A conclusão de Mises é totalmente não-bergsoniana. As semelhanças e diferenças exatas entre Mises e Bergson não são nossa preocupação atual. Eu toquei no tópico simplesmente para fins de ilustração. Alguns pensadores são mais bem abordados através da busca cuidadosa de fontes e influências. Pelo menos na filosofia, Mises não está entre eles.
Notas
[1]David Gordon é um membro sênior do Ludwig von Mises Institute.
Este artigo foi preparado para consideração para um prêmio Ludwig von Mises que foi concedido na conferência do 10º aniversário do Mises Institute, em 9-11 de outubro de 1992. Sou grato a Pat Heckman e Ralph Raico por suas sugestões muito úteis.
[2]Ludwig von Mises, Human Action (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1963), p. 885.
[3]Eu tentei mostrar a influência das posições filosóficas de Keynes em sua economia em “Keynes’s First Principles", Dissent on Keynes, Mark Skousen, ed. (Nova York: Praeger, 1992), pp. 149-60.
[4]Ludwig von Mises, The Ultimate Foundation of Economic Science (Princeton, N.J.: D. van Nostrand, 1962), p. vi.
[5]Pondero a Escola Historicista Alemã com maiores detalhes em The Philosophical Origins of Austrian Economics (Auburn, Ala.: Ludwig von Mises Institute, 1993).
[6]Ludwig von Mises, Theory and History (New Haven: Yale University Press, 1957), p. 4.
[7]Mises, Ultimate Foundation, p. 15.
[8]Para uma explicação excelente da filosofia de Kant, veja Paul Guyer, Kant and the Claims of Knowledge (Cambridge: Cambridge University Press, 1987). Admitidamente, algumas interpretações “psicologistas” de Kant o colocam mais próximo de Mises, mas a similaridade não é maior do que aquela entre Mises e, digamos, Herbert Spencer.
[9]Mises, Ultimate Foundation, p. 15.
[10]Peter Lipton, Inference to the Best Explanation (Londres: Routledge, 1991), pp. 172-73, discute o melhor argumento explicativo a favor do realismo.
[11]Mises apresenta sua explicação evolutiva como uma “especulação”. Ultimate Foundation, p. 15. Na minha opinião, a epistemologia evolutiva sofre de objeções debilitantes. Para críticas importantes, veja Thomas Nagel, The View from Nowhere (Oxford: Oxford University Press, 1986) e Ralph Walker, The Coherence Theory of Truth (Londres: Routledge, 1989);
[12]Para a rejeição de Mises do indeterminista na mecânica quântica, veja Theory and History, pp. 88-89.
[13]Mises, Human Action, p. 39.
[14]Mises, Theory and History, p. 74.
[15]Ibid., p. 77.
[16]Ibid., p. 1.
[17]Para uma análise importante da concepção de liberdade de Kant, veja “Reason and Autonomy in Grundlegung III” e Onora O’Neill, Constructions of Reason (Cambridge: Cambridge University Press, 1989), pp. 51-65.
[18]Para a comparação entre Mises e Kant, estou em dívida com a discussão com Ralph Raico.
[19]Mises, Theory and History, p. 13. Em apoio a sua posição, Mises surpreendente cita Ludwig Feuerbach.
[20]A principal razão é que, na minha opinião, Kant de fato atribui forte livre arbítrio ao self numênico.
[21]Para uma explicação completa dos positivistas lógicos, veja J. Alberto Coffa, The Semantic Tradition from Kant to Carnap: To the Vienna Station (Cambridge: Cambridge University Press, 1991).
[22]Mises, Ultimate Foundation, p. vi.
[23]Para uma discussão sobre argumentos ad hominem na filosofia, veja Henry W. Johnstone, Jr., Validity and Rhetoric in Philosophical Argument (University Park, Penn.: Dialogue Press, 1978), pp. 5-12.
[24]Para o “anti-essencialismo” de Popper, veja Karl Popper, The Open Society and Its Enemies, 2 vols. (Nova York: Harper, 1967), pp. 9-21.
[25]Mises, Ultimate Foundation, p. 5.
[26]Mises, Human Action, p. 38.
[27]Tomás de Aquino usa essa distinção em sua crítica ao argumento de Santo Anselmo para a existência de Deus.
[28]Mises, Human Action, pp.64-65.
[29]Ibid., p. 65; número da nota de rodapé omitido.
[30]Ibid., p. 66.
[31]Essas observações não devem ser tomadas como uma defesa do positivista. Em minha própria opinião, o critério de verificabilidade deve ser rejeitado; discussões adicionais estão em meu Philosophical Origins, pp. 36 ff. Em vez disso, estou aqui abordando a questão: se alguém aceitasse o critério de verificabilidade, quanto da economia austríaco poderia ser mantida?
[32]Mises, Human Action, pp. 32-33; número da nota de rodapé omitido.
[33]Mises, Theory and History, p. 13.
[34]Ibid., p. 36, n. 1. As posições de Brentano são apresentadas em seu The Origin of Our Knowledge of Right and Wrong, R. M. Chisholm e Elizabeth Schneewind, trad. (Atlantic Highlands, N. J.: Humanities Press, 1969). Uma discussão interessante a respeito de Brentano sobre juízos de valor pode ser encontrada em Thomas L. Carson, The Status of Morality (Dordrecht: D. Reidel, 1984).
[35]Mises, Theory and History, p. 63.
[36]Ludwig von Mises, Socialism (Londres: Jonathan Cape, [1936] 1951), p. 430.
[37]Mises, Theory and History, pp. 299 ff. O argumento de Strauss está em seu Natural Right and History (Chicago: University of Chicago Press, 1953), pp. 50 ff.
[38]R. M. Hare, “Reductio ad Absurdum of Descriptivism” em seu Essays in Ethical Theory (Oxford: Clarendon Press, 1989), pp. 122. O lado de Philippa Foot da discussão está em seu Virtues and Vices (Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1978). Para Anscombe, veja seu “Modern Moral Philosophy” em Collected Philosophical Papers (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1978), vol. 3, pp. 26-42.
[39]Mises, Human Action, p. 100. A passagem critica Edmund Husserl assim como Bergson. Não discuti a afirmação obviamente absurda de que Mises era um fenomenólogo.
[40]Ludwig von Mises, Epistemological Problems of Economics (Nova York: Nova York University Press, 1981), p. 46; número da nota de rodapé omitido.