"Bertrand Russel e a Realidade Suprema", de E. Michael Jones

"Bertrand Russel e a Realidade Suprema", de E. Michael Jones

nota: trata-se da introdução do livro "Logos Rising", ou "Logos Ascendente" em nossa tradução.

“Suponho que eu deveria dizer algo em conclusão quanto à ideia de que é de algum modo impróprio ou irreverente empregar o rigor da lógica ao falar da Majestade Divina. Parece-me blasfemo dizer que Deus esteja “acima” da lógica; a lógica tira seu nome do Logos, que estava no início com Deus e era Deus. Em uma história muçulmana, um campeão caído viu um cruzado brandir contra ele uma espada mágica invencível portando o nome de Deus: ‘Espada’, gritou ele, ‘tu podes acertar um verdadeiro crente? Não sabes o nome na sua lâmina?’ ‘Não sei nada, a não ser acertar em linha reta’. ‘Então acerte em nome de Deus’! A lógica não é partidária, e não sabe nada a não ser acertar em linha reta; mas a espada é invencível, portando o nome do Criador”.  
- Peter Geach, God and the Soul (1969)  

Bertrand Russell e a Realidade Suprema

 

“A maioria dos filósofos, com ou sem razão, acredita que a filosofia… pode nos dar um conhecimento, inalcançável doutra forma, acerca do universo como um todo e da natureza da realidade suprema”.
-Bertrand Russell, The Problems of Philosophy

No início de 2015, eu passei seis meses viajando pela Índia. Os católicos são uma ínfima minoria num mar de mais de um bilhão de pessoas, a maioria dos quais são hindus, mas eles têm um ativo cultural valioso. Estabeleceram uma rede de escolas que são as melhores da Índia. Por serem as melhores, 80 por cento dos estudantes são hindus. Encontrei um destes estudantes em uma escola católica que visitei em Delhi. Depois que dei uma curta palestra a uma classe de inglês composta por alunos de 16 anos, um adolescente hindu cujo nome era Samil levantou-se e perguntou se eu poderia lhe dar uma prova científica da existência de Deus.

Ele fez tal pergunta porque vivia em uma cultura que tinha muita religião e muita ciência, mas nenhuma explicação corrente de como uma se relaciona à outra. Descobri isso durante uma viagem a Mumbai onde meu guia, o Pe. Cyril Fernandes, que fundou quatro escolas católicas, levou-me ao templo de Ganesha da cidade.

O Pe. Cyril assegura-me que é um templo famoso, e se a multidão servir de indicação, o que ele disse é verdade. Para entrar lá, você precisa tirar seus sapatos e entrar na fila com os fiéis. Antes de chegarmos à grande atração, precisamos passar por dois ratos grandes de prata. Os hindus aproximam-se deles com grinaldas de flores que põem ao redor do pescoço de um dos ratos; então um homem coloca o que parece ser um guardanapo ou cobertor de sela nas costas do rato, reclina-se e sussurra as suas orações, leia-se, seus pedidos, ao ouvido do rato. Então, supõe-se que o rato foge e diz a Deus o que ele ouviu. Em vez de “da sua boca ao ouvido de Deus”, é “da sua boca ao ouvido do rato e dele ao ouvido de Deus”. A esposa e os filhos do homem fazem o mesmo.

A atração principal depois disso foi um pouco decepcionante. O ídolo de Ganesha, o rapaz gordo com cabeça de elefante, era dourado sobre um fundo de prata, mas decepcionantemente pequeno, especialmente depois de eu ter visto a estátua do deus macaco Hanuman em Delhi, com altura de três andares. O sacerdote hindu estava com o torso nu, mas vestia uma saia cor de açafrão. Após receber as ofertas dos peregrinos, ele os devolveu metade como uma espécie de quid pro quo.

Depois de visitarmos o templo de Ganesha, fomos ao Centro Científico Nehru, equivalente ao Museu da Ciência e da Indústria em Chicago ou o Franklin Institute em Filadélfia. Quando fomos à fila para entrar, contemplei um mural logo depois da porta da frente com o nome de “Evolução Cósmica”, que tentava retratar a história do cosmo do Big Bang até o presente.

A voz passiva abundava. No início de absolutamente tudo, nos é dito que “os átomos foram formados”. O amplo uso da voz passiva no mural entregava o fato de que a “evolução cósmica” era em outras palavras um ataque à causalidade. Dizer que “os átomos foram formados” era o equivalente científico a dizer que “Merda acontece”. A merda em questão, de acordo com a cosmologia do Centro Científico Nehru, tinha estranhas semelhanças à cosmologia hindu tradicional, simbolizada pela imagem da Terra descansando nas costas de um elefante que está em pé sobre uma tartaruga. Daí em diante, são só tartarugas em baixo tanto para Nehru quanto para Ganeesh.

A justaposição entre o templo hindu e o Centro Científico Nehru no tour de ônibus por Mumbai foi instrutiva. O fato de que a Índia foi de adorar macacos, elefantes e cobras a adorar a ciência sem nenhuma experiência metafísica no meio lembra-me de como G. B. Shaw descreveu a América como “um país que foi do barbarismo à decadência sem encontrar a civilização no caminho.[1]

Assim, a Índia parece destinada a se tornar um país de programadores adoradores de cobras. Os católicos podem fazer uma contribuição significante através do seu sistema educacional, mas eles não parecem inclinados a pressionar o problema, talvez pela tendência da Índia ao sincretismo, talvez pela ascensão do nacionalismo hindu e as conversões forçadas que eles estão orquestrando entre os cristãos da Índia, e talvez por medo de perderem as suas escolas.

Durante a minha viagem, tive uma longa discussão com um padre católico acerca da filosofia hindu. Ele diz que o conceito hindu de maya, ou do mundo enquanto véu de ilusão, é similar à ideia de Platão do mundo do devir, que é incompreensível, como oposto às formas, ou mundo do ser, que é transcendente. Do mesmo modo, o conceito hindu de neti neti - nem isso e nem aquilo – não é diferente da via negativa dos místicos.

Estou certo de que há semelhanças, mas a despeito delas, a Índia é a terra dos 33 milhões de deuses onde o Logos morreu há muito tempo. Então não fiquei surpreso quando Samil me pediu para provar a existência de Deus, o que eu fiz da seguinte maneira:

Nada vem do nada; algo existe; portanto, nunca houve nada. Este algo não pode trazer a si mesmo à existência, porque para fazer isso teria de existir antes de existir, o que é impossível. Portanto, algo mais teve de trazê-lo à existência. Este algo mais é aquilo que Aristóteles chama de causa não causada e motor imóvel. Aquino termina suas provas da existência de Deus dizendo que isso é o que todos os homens chamam Deus.

Houve um momento de silêncio aturdido (ou incompreensão) e então Samil perguntou se a viagem no tempo era possível e eu disse “Claro, eu vim do futuro. A revolução sexual que a América experimentou nos anos 60 está acontecendo na Índia agora”. Mais silêncio aturdido.

Um dos melhores expositores da dicotomia entre a religião e a ciência no mundo anglófono foi Bertrand Russell. Russell acreditava em uma “realidade suprema”, e ele acreditava que poderia sabê-la e comunicá-la aos seus leitores porque era um filósofo, e “a maioria dos filósofos, com ou sem razão, acredita que a filosofia… pode nos dar um conhecimento, inalcançável de outra forma, acerca do universo como um todo e da natureza da realidade suprema”.[2] O editor de Russell sentia-se do mesmo jeito. No frontispício de An Outline of Philosophy, lemos que:

"Ao longo do livro, Russell tenta revelar o tipo de mundo no qual, segundo a ciência moderna, realmente vivemos e como ele difere do mundo em que parecemos viver. Ele deixa claro o efeito do avanço científico moderno em transformar nosso conceito de mundo; neste livro, o novo mundo é apresentado com grande clareza.".[3]

Como essa passagem deixa claro, entender a ciência, e não a filosofia, é essencial se quisermos acesso à realidade suprema. O editor americano de Russell, novamente, deixa isso mais claro que o próprio Russell quando escreve que “era sua convicção que Russell é o estudioso de hoje que deveria empreender a revisão da filosofia nos termos da ciência moderna”.[4]

Russell tinha se correspondido antes com o behaviorista americano John B. Watson, porque ele, como Watson, esperava analisar “fenômenos mentais usando apenas eventos físicos enquanto dados”, porque isso “encaixa bem na descrição do pensamento do próprio sobre a natureza da mente”[5], que era materialista no sentido filosófico do termo. Russell tenta parecer imparcial na sua discussão da história da filosofia, dizendo-nos que Berkeley sentia que a realidade suprema era uma “ideia na mente de Deus”, mas as especulações de bispos do século XVIII foram suplantadas por uma “ciência sóbria”, que nos conta que a “realidade suprema” é “uma vasta coleção de cargas elétricas em moção violenta”.[6]

Russell chamou a sua filosofia de “atomismo lógico”, uma ideia que ele tirou de Lucrécio, que também o deu seu entendimento de que a religião é “uma doença nascida do medo e uma fonte de incontável miséria sobre a raça humana”.[7] Lucrécio, como seu precursor grego, Demócrito, acreditava que a “realidade suprema” poderia ser reduzida a átomos e vácuo.  Russell começa sua discussão da filosofia a partir de uma página de Descartes. As coisas não são o que parecem. Em vez de falar de cera, Russell fala sobre uma mesa:

"O senso comum ingênuo supõe que as 'coisas' são o que parecem ser, mas isso é impossível, já que elas não parecem exatamente iguais para dois observadores simultâneos. Se vamos admitir que o objeto não é o que vemos, não podemos mais ter a mesma certeza de que existe um objeto; esta é a primeira intrusão da dúvida.
No entanto, rapidamente nos recuperaremos desse contratempo e diremos que, claro, o objeto é 'na verdade' o que a física diz que ele é. Agora, a física diz que uma mesa ou uma cadeira é 'na verdade' um sistema incrivelmente vasto de elétrons e prótons em movimento rápido com espaço vazio entre eles."[8]

De acordo com seu entendimento do “atomismo lógico”, Russell acreditava que a física tem a chave para entender a realidade suprema, mas ele o fez quando a crença no atomismo estava se tornando cada vez mais ilógica. Sob o escrutínio de físicos alemães como Werner Heisenberg e Erwin Schroedinger, “os vestígios do velho átomo sólido derreteram, e a matéria tornou-se tão espiritual quanto qualquer coisa em uma sessão espírita”.[9] Russell, como resultado, encontra-se em uma enrascada. Ele é um atomista lógico vivendo na época em que “a velha concepção da matéria como uma substância indestrutível”[10] foi substituída por

"emanações de uma localidade — o tipo de influências que caracterizam quartos assombrados em histórias de fantasmas. [...] Todos os tipos de eventos acontecem no mundo físico, mas mesas e cadeiras, o sol e a lua, e até mesmo nosso pão de cada dia, tornaram-se pálidas abstrações, meras aparições da lei na sucessão de eventos que irradiam de certas regiões."[11]

Você pode até pensar que um atomista lógico acharia esse tipo de revelação devastadora, mas Russell parece notavelmente estático diante de uma descoberta científica que equivale a um anúncio de que ele não está mais em contato com a realidade suprema, e isso porque a verdade, se ela significar a correspondência da mente à coisa (ou realidade), nunca foi a preocupação principal de Russell.

Já que “o conhecimento filosófico … não difere essencialmente do conhecimento científico”[12], Heisenberg criou “um mundo aberto de possibilidades livres”[13] Russell sempre esteve mais interessado no tipo de liberdade que ele definia como a habilidade de agir sem consideração pela lei moral. No que tange a realidade suprema, o princípio da indeterminação de Heisenberg é mais útil até que o determinismo de Laplace.

Dado o seu materialismo, não surpreende que Russell considere a ética repugnante. Russell lida com a ética no seu Outline of Philosophy só porque “é tradicionalmente um departamento de Filosofia”. Se dependesse só dele, ele a teria omitido, “mas provar isso demoraria tanto quanto a discussão do assunto em si, e provaria ser menos interessante”.[14]

Sem qualquer indicação de que ele está mudando de cavalo no meio do caminho, Russell usa os termos ética e moral para que ele possa levar o argumento para longe da filosofia e falar da revelação. Russell estava familiarizado com o imperativo categórico, que era a tentativa de Kant de formular um princípio ético supremo na base única da razão, mas ele escolheu não o discutir mesmo que mencione Kant frequentemente, mesmo que o considere superestimado.

Ignorando a ética, ou seja, por ignorar um exame da razão prática em termos filosóficos, Russell pode desprezar a razão prática como proveniente da revelação, ou seja, da religião, o que significa que ele automaticamente vence no argumento, porque, como todas as pessoas inteligentes sabem, a religião não está mais em contato com a “realidade suprema”.

Mais importante, “o filósofo pode apenas observar que houve muitas revelações, e que não é claro é o porquê de ele dever adotar uma e não outra”. Nesse ponto, Russell foca na consciência, que ele descreve em termos religiosos e não filosóficos como “uma revelação privada a cada indivíduo” que “invariavelmente o diz o que é certo ou errado”. Ele descreve a consciência como algo não confiável porque “varia de tempos em tempos”.[15] E como um exemplo dessa falta de confiabilidade, ele cita a Inquisição (não por esse nome) como uma época em que as pessoas eram queimadas vivas por cometer erros em metafísica:

"A maioria das pessoas hoje em dia considera errado queimar alguém vivo por discordar delas em metafísica, mas anteriormente isso era considerado um ato altamente meritório, desde que fosse feito em nome da metafísica correta. Ninguém que estudou a história das ideias morais pode considerar a consciência como invariavelmente correta. Assim, somos levados a abandonar a tentativa de definir a virtude por meio de um conjunto de regras de conduta."[16]

O Bem, de acordo com Russell, é um “ato em relação ao qual eu sinto a emoção de aprovação”.[17] Não preciso dizer que para ele as emoções não fazem parte da “realidade suprema”. Elas são pessoais, idiossincráticas e no fim baseadas em circunstâncias culturais irracionais que mudam com o tempo e de acordo com as variedades da geografia. Sabemos que “as regras morais diferem de acordo com o tempo, a raça e o credo da respectiva comunidade”[18] porque a ciência, em particular a da antropologia, nos diz assim.

Isto significa, de fato, que as regras da ética precisam ser corrigidas periodicamente à luz da realidade suprema que a ciência confere a tudo. Isto significa que:

"o código moral recebido, na medida em que é ensinado na educação e incorporado na opinião pública ou na lei penal, deve ser cuidadosamente examinado em cada geração, para ver se ainda serve para alcançar fins desejáveis, e, se não, em que aspectos precisa ser alterado. O código moral, em resumo, como o código legal, deve se adaptar às circunstâncias em mudança, mantendo sempre o bem público como seu motivo."[19]

Lorde Russell nunca nos diz quem deveria determinar onde o código precisa de conserto, mas é claro que ele, como um filósofo sintonizado com a realidade suprema, bem como como um membro mimado das classes altas da Inglaterra, tal qual um habitué do demi-monde boêmio chamado Bloomsbury, era o melhor homem para o trabalho, e pela maior parte do século XX ele fez só isso, mesmo que a filosofia tivesse de ocupar o banco de trás da ciência para conseguir isso.

O conhecimento, como Bacon nos contou, é poder. Isso significa que aqueles que possuíam “ciência” possuíam poder. A verdade, portanto, era a opinião dos poderosos. Isto significava concretamente que “a questão da bondade e da maldade do mundo é da ciência, e não da filosofia”. Isso significava que “o mundo é bom se tiver certas características que nós desejamos”.

Russell dizia isso sem especificar quem constituía o “nós” em questão. Não eram os filósofos porque “a filosofia professava ser capaz de provar que o mundo tinha tais características, mas é bem evidente que as provas eram inválidas”.[20] Também não eram os cientistas. Eram os filósofos da ciência, como Bertrand Russell.

A filosofia materialista estava em um tempo ruim porque Heisenberg e Schroedinger puseram em xeque a materialidade da matéria, que Russell erroneamente associa à substância:

"Mas a noção de substância, no sentido de uma entidade permanente com mudança de estados, não é mais aplicável ao mundo. Pode acontecer, como com o elétron, que uma sequência de eventos esteja tão interconectada causalmente que seja praticamente conveniente considerá-los como formando uma única entidade, mas quando isso acontece é um fato científico, não uma necessidade metafísica. Portanto, toda a questão da imortalidade pessoal reside fora da filosofia, e deve ser decidida, se for o caso, ou pela ciência ou pela religião revelada."[21]

Mas, de novo, quem determina a diferença entre fato científico e necessidade metafísica se não Bertrand Russell?

No dia 6 de Março de 1927, Russell deu uma conferência no Battersea Town Hall sob os auspícios da Filial do Sul de Londres da National Secular Society quanto ao tópico “Por Que Não Sou Cristão?”[22], que carregava estranhas semelhanças com meu encontro com Samil em Delhi. Russell foi ao coração da questão na sua palestra ao disputar o que ele chamou “Argumento da Primeira Causa” para a existência de Deus, que era uma variante rude de uma das provas cosmológicas de Santo Tomás de Aquino e não muito diferente do argumento que dei para Samil. Não é necessário dizer que Russell não ficou impressionado. Após sua replicação desdenhosa do argumento, ele escreve:

"Você pode ver que o argumento de que deve haver uma Primeira Causa é um que não pode ter nenhuma validade. Posso dizer que quando era jovem e debatia essas questões seriamente em minha mente, por muito tempo aceitei o argumento da Primeira Causa, até que um dia, aos 18 anos, li a Autobiografia de John Stuart Mill, e lá encontrei esta frase: 'Meu pai me ensinou que a pergunta 'Quem me criou?' não pode ser respondida, pois imediatamente sugere a pergunta seguinte 'Quem criou Deus?''.
Essa frase muito simples me mostrou, e ainda a vejo assim, a falácia no argumento da Primeira Causa. Se tudo deve ter uma causa, então Deus deve ter uma causa. Se pode haver algo sem causa, pode muito bem ser tanto o mundo quanto Deus, de modo que não pode haver validade nesse argumento."[23]

A resposta à perplexidade de Russell jaz não em nenhuma falácia no argumento da Primeira Causa, mas na sua ignorância em metafísica. Em um debate contra Russell na BB em 1948, Frederick Copleston S.J. explicou a diferença entre ser necessário e contingente como necessária ao entendimento do porquê de a criação, ou como Russell diz, o mundo, não ser um candidato para a Primeira Causa, mas Deus, ou o que Copleston chama ser necessário, é. Àqueles interessados na confusão Russeliana quando o assunto é uma discussão filosófica genuína, recomendo ouvir o debate por inteiro.[24]

A cruz da discussão gira em torno da discussão entre ser contingente e ser necessário. Uma coisa contingente, de acordo com Copleston, é algo que não contém em si a razão para a sua existência. Se mencionamos o porquê de uma coisa contingente existir, precisamos mencionar alguma outra coisa da qual a sua existência depende. Precisamos trazer uma existência necessária para explicar a existência das coisas contingentes. Se a existência das coisas contingentes precisar de uma explicação, precisamos concluir que haja algo como Deus.

Copleston explica a sua posição nos seguintes termos:

Sabemos que existem alguns seres no mundo que não contêm em si mesmos a razão para sua existência. Por exemplo, eu dependo da existência dos meus pais e agora da existência do ar e da comida, e assim por diante.
O mundo é simplesmente a totalidade real ou imaginada de objetos individuais, nenhum dos quais contém em si mesmo sozinho a razão para sua existência. Não existe um mundo distinto dos objetos que o formam, assim como não existe uma raça humana à parte de seus membros. Portanto, já que objetos existem e já que nenhum objeto de experiência contém em si mesmo a razão para sua existência, essa razão e a totalidade dos objetos devem ter uma razão para sua existência externa a si mesmos.
Essa razão deve ser um ser existente. Esse ser é ou não é a razão para a sua própria existência. Se for, muito bem. Se não for, então nós devemos prosseguir um pouco mais. Mas se prosseguirmos ao infinito, então não há explicação para a existência em absoluto. Portanto, para explicar a existência, devemos chegar a um ser que contém em si mesmo a razão para sua própria existência. Ou seja, que não pode não existir.[25]

O Ser que não pode não existir é o que todos os homens chamam Deus.

Russell ataca a prova de Copleston dizendo que “uma proposição necessária precisa ser analítica”. Proposições tais como “esse é um animal” não podem nunca serem analíticas. Mas isso está fora do ponto porque a proposição de Copleston é baseada na asserção de um fato empírico:

Se existe um ser contingente, ele deve ser descoberto pela experiência. A proposição de que existe tal coisa como um ser contingente certamente não é uma proposição analítica. Mas uma vez que você sabe que existe tal coisa como um ser contingente, segue-se necessariamente que deve existir um ser necessário.

A proposição “se existe um ser contingente, logo existe um ser necessário” é, de acordo com Copleston uma proposição necessária, ou o que Russell se referiu como sendo uma proposição analítica. Copleston baseou seu argumento nos argumentos de Aristóteles contra um regresso infinito.

No seu ensaio “Por Que Não Sou Cristão?” Russell disse que o argumento cosmológico da causa não causada ou do motor imóvel  é “exatamente da mesma natureza da visão do hindu de que o mundo jazia sobre um elefante e o elefante sobre uma tartaruga”[26] quando de fato é o exato oposto porque, quando perguntado sobre “e a tartaruga?”, o indiano não disse, como Russell supôs que diria, “vamos mudar de assunto”[27], mas sim “daí para baixo são só mais tartarugas”, que era o modo indiano imperfeito de se referir ao que Aristóteles chamou de regresso infinito.

Russell poderia ter sido salvo de um considerável embaraço se tivesse entendido a Metafísica de Aristóteles, onde Aristóteles ensina o porquê de um regresso infinito ser impossível, o mesmo em termos de cosmologia hindu o porquê de “daí para baixo são só mais tartarugas” não ser uma explicação coerente de qualquer coisa que seja, “pois na série infinita descrita aqui e nos infinitos em geral, todas as partes até a anterior a nós são do mesmo modo termos médios, e portanto onde não existe primeiro termo, não há qualquer explicação”.[28]

Um regresso infinito - “daí para baixo são só mais tartarugas” – é impossível porque “os termos no primeiro caso, sendo intermediários, precisam ter um fim, e no segundo caso, um se muda no outro, à medida que a destruição de um é a gênese do outro”.[29]

Russell continua para dizer que:

Não há razão para que o mundo não pudesse ter surgido sem uma causa, nem, por outro lado, há alguma razão para que ele não pudesse ter existido sempre. Não há razão para supor que o mundo teve um início. A ideia de que as coisas devem ter um início é na verdade em virtude da pobreza de nossa imaginação. Portanto, talvez, eu não precise perder mais tempo com o argumento sobre a primeira causa.[30]

Aristóteles refere-se àqueles que negam o princípio de não-contradição como sofrendo de uma “falha na educação”[31] porque deveriam saber que “não pode haver uma demonstração completa de tudo de uma vez só”[32] porque “então haveria um regresso infinito, e assim ainda não haveria uma demonstração final”.[33]

Um regresso infinito também destrói o bem porque:

Aqueles que assumem um regresso infinito deixam de perceber que eles removem a natureza do bem. Pois ninguém tentaria fazer algo se não fosse chegar a um limite. A racionalidade, pelo menos, é incompatível com tal série infinita, pois o homem razoável sempre age por causa de algo, e isso serve como um limite (pois o fim é o limite).[34]

Mentes maiores que a de Bertrand Russell debateram se o homem pode saber sem a ajuda da Revelação se o mundo é eterno ou se veio a ser no tempo. A revelação afirmou a última opinião no Livro do Gênesis. Mas o tempo não é a questão. A questão é a causalidade. Quando Russell diz que “a ideia de que as coisas precisam ter um início vem da pobreza da nossa imaginação”, está se referindo ao tempo, e não à causalidade, mostrando sem querer sua incapacidade de distinguir entre os dois.

É claro que a evolução cósmica tem um início; ele é conhecido agora como Big Bang, mas um início no tempo não é um substituto para a causalidade. Mesmo que o mundo fosse eterno, ou seja, coextensivo ao tempo, Santo Tomás mostrou no De Aeternitate Mundi Contra Murmurantes  que ele ainda teria de vir à existência.

Santo Tomás prosseguiu dizendo que o cosmos não poderia trazer a si mesmo à existência porque para isso, ele teria de existir antes de existir, o que é impossível. Ao fazer este esclarecimento, Santo Tomás resgatou a filosofia do beco sem saída chamado averroísmo, nomeado em honra a Ibn Rushd, conhecimento como Averróis no ocidente, cujo maior discípulo em Paris no século XIII era Siger de Brabante. Siger violou o princípio da não-contradição dizendo que tanto Aristóteles quanto o Alcorão estavam certos mesmo quando eles se contradiziam entre si. Sete séculos depois, Pierre Duhem, o eminente historiador francês da ciência, disse que o bispo Etienne Tempier trouxe o nascimento da ciência quando condenou o averroísmo em 1277.

Copleston refutou o regresso infinito do seu próprio jeito quando disse a Russell que:

O que chamamos de mundo é, em princípio, ininteligível sem a existência de Deus. Não vejo que uma infinidade de uma série de eventos seria de menor relevância para a situação. Se você somar chocolates, você obtém chocolates afinal e não uma ovelha. Se você somar chocolates ao infinito, presumivelmente você obterá um número infinito de chocolates. Então, se você somar seres contingentes ao infinito, você ainda obtém seres contingentes, não um ser necessário. Um número infinito de seres contingentes seria tão incapaz de causar a si mesmo quanto um ser contingente.

Forçado a recuar para um canto sob a inexorável investida da lógica de Copleston, o único recurso de Russell é subjetivo. Tudo o que ele pode dizer é: “Não vejo nenhuma razão para supor que o universo tenha qualquer tipo de causa”. Copleston responde dizendo: “A série das causas fenomenais é insuficiente para a explicação das causas. Portanto, a série não tem uma causa fenomenal, mas sim uma causa transcendente”.

A resposta de Russell é novamente subjetiva: “Isso presume que não apenas tudo no mundo tem uma causa, mas que o mundo também precisa ter uma causa. Para esta presunção, eu não vejo nenhum fundamento”.

No entanto, cegueira não é argumento. Tacitamente reconhecendo isso, Copleston responde dizendo: Bem, ou é causada ou não causada. Se for causada, precisa haver uma causa fora da série. Se não é causada, é suficiente em si mesma, e então é o que eu chamo necessária, mas não pode ser necessária porque cada membro é contingente. E concordamos que a totalidade não tem nenhuma outra parte que não a totalidade dos membros. Portanto, ela não pode ser necessária.

E eu gostaria de dizer de passagem que não se pode concluir pela análise lógica que o mundo está simplesmente lá e não pode ser explicado. Não consigo ver como a ciência pode ser conduzida de outra maneira se não pela inteligibilidade na natureza. O físico sabe que há alguma inteligibilidade na natureza ao se procurar as causas dos eventos. O metafísico assume que existe alguma razão ao procurar pela causa dos fenômenos. E, não sendo um kantiano, acredito que o metafísico está tão justificado na sua presunção quanto o físico. Quando Sartre diz que o mundo é fortuito, acho que ele não delimitou bem o que significa fortuito.

Russell responde dizendo: Parece haver uma extensão sem garantia aqui. O físico procura causas. Isso não necessariamente implica que existem causas em todo lugar. Um homem pode procurar ouro sem assumir que existe ouro em todo lugar. Acho que a noção de que tudo no mundo tem uma explicação é um erro.

Copleston: O seu ponto geral, Lorde Russell, é que é ilegítimo até mesmo perguntar a razão do mundo.

Russell: Sim, este é o meu ponto.

Copleston: Bem, se a questão não tem nenhum sentido para você, é muito difícil discutir, não é?

Russell: Sim, como você diz, é muito difícil. Devemos passar a outra questão?”[35]

Quando confrontado com uma real exposição da prova cosmológica da existência de Deus, foi Russell, e não algum indiano hipotético, que disse “podemos mudar de assunto?”. Russell pediu para mudar de assunto porque não podia entender a explicação de Copleston do argumento cosmológico porque a luxúria tinha obscurecido a sua mente. Quando perguntado sobre o porquê de ter parado de fazer filosofia à idade de quarenta, Russell declarou sem qualquer vergonha: “Porque eu descobri que preferia foder”.[36]

Russell era um notório libertino que passou sua carreira inteira usando a ciência como uma desculpa para absolver a si mesmo da responsabilidade moral pelas suas ações. Enquanto jovem homem casado, ele teve um notório caso com Lady Ottoline Morrell; e como indicação de que a sabedoria não veio com a idade, aos 92 anos, Russell apalpou o joelho e a coxa da atriz Sarah Miles, que tinha então seus 23 anos, em uma fútil tentativa de criar nela paixão sexual.[37]

A Igreja era a vilã deste psicodrama porque o lembrava da lei moral que ele escolhia não observar, ou, como ele dizia, “pela sua insistência quanto ao que escolhe chamar de moralidade”, a Igreja “infringe a todo tipo de gente um sofrimento desmerecido e desnecessário”.[38] Ao contrário de Kant e Aristóteles, que sentiam que a razão prática era o modo pelo qual o homem atingiria o Bem essencial à felicidade humana, Russell diz que a Igreja “escolheu rotular como moralidade um certo conjunto estreito de regras que não têm nada a ver com a felicidade humana”.[39] A religião, de acordo com Russell, é baseada “primariamente e principalmente no medo”. A religião cria “aliados no céu”.[40] Mas, há esperança:

A ciência pode nos ajudar a superar esse medo covarde com o qual a humanidade viveu por tantas gerações. A ciência pode nos ensinar, e eu acho que nossos próprios corações podem nos ensinar, a não mais inventar aliados no céu, mas sim a olhar para nossos próprios esforços aqui embaixo direcionados a tornar este mundo um lugar adequado para viver, em vez do tipo de lugar que as igrejas fizeram dele em todos esses séculos..[41]

Russell está disposto a conceder que o homem tem direito a uma “religião puramente pessoal” desde que “esteja contente em evitar afirmações que a ciência pode refutar”.[42] A fonte intelectual do conflito entre a religião e a ciência é o credo, mas “a amargura da oposição tem sido pela conexão de credos com Igrejas e com códigos morais”.[43]

Isso é compreensível porque códigos morais ocupam a interseção entre a realidade humana e o comportamento humano. A utilidade inteira da ciência na visão de Russell é eliminar a Igreja como árbitro da realidade suprema, para que Russell agisse segundo seus desejos sexuais sem sofrer as aflições da consciência. Seu papel como um porta-voz da ciência dependia de um público interessado no mesmo tipo de libertação da lei moral.

Nunca houve um tempo na história humana em que o homem não estivesse ciente da sua dependência da realidade suprema. A realidade suprema era conhecida como Deus. Não existe cultura, não importa o quão primitiva, nem uma língua, não importa o quão primitiva, que não tenha uma palavra para Deus. As similaridades que todas as culturas têm vão além de um único conceito.  Deus é conhecido como pai, porque mora no céu. O termo protoariano Dyaus-pater é traduzido como Zeus pater em grego e Jupiter em latim. Deus é associado ao poder, e aqueles que se associam a Deus partilham do seu poder.

Já é bastante coisa para o básico. Neste ponto, frequentemente a imaginação do homem toma conta e começa a especular sobre a aparência de Deus. Se Deus é um pai, de acordo com essa linha de raciocínio, é lógico presumir que ele precisa ter uma barba, e neste ponto a mente do homem vaga pelo caminho da mitologia, criando um Zeus imaginário que nada mais é que uma projeção da condição do homem com mais poder adicionado. Deus torna-se um chefe tribal exaltado.

Para termos uma parcela do poder de Deus, temos que tratá-lo como trataríamos um governante poderoso oferecendo presentes para garantir o seu favor. Se quisermos impressioná-lo, teremos de oferecer algo de valor, o que na maior parte das culturas significava a fonte da vida, ou seja, comida.

Então, aplacar Deus significava sacrifícios animais, e dada a natureza do homem, eventualmente passou a significar a coisa que o homem considerava mais valiosa, ou seja, sua descendência. Logo, o sacrifício humano era o resultado do fato de que Deus era a realidade suprema e do fato de que nunca houve um tempo na história quando o mundo não fosse governado por demônios que pervertem o senso natural de culto do homem em algo diabólico.

Mas, havia outro jeito de lidar com a realidade suprema, e era baseada na ideia rudimentar de que o mundo que Deus governava do céu era sua criação e que ela participava da sua natureza de um modo similar à como as coisas que o homem cria participavam da natureza do próprio homem também. O homem começou a perceber padrões recorrentes na natureza que o permitiam prever o que aconteceria. Vivendo nas estepes no continente Eurasiano, eles caçavam animais grandes, matavam-nos e cozinhavam suas carnes em um fogo, um ato que atraía outros animais, cachorros em particular, o que levou à domesticação dos animais.

Uns poucos milênios depois, a mesma coisa aconteceu com o cavalo, que foi primeiro uma fonte de comida, e depois uma fonte de transporte que poderia ser usada para matar outros cavalos. Depois que o homem percebeu que o cavalo poderia ser usado para puxar cargas, mas só se estas cargas pudessem se mover livremente, o que levou à criação da roda, o que aconteceu no mesmo continente eurasiano de onde o cavalo era nativo. A roda era inútil em regiões florestais montanhosas, então não foi inventada lá.

Neste ponto, já estamos falando da chegada da tecnologia, que era um modo mais indireto de partilhar do poder de Deus, e que coexistia lado a lado com o entendimento mais tradicional do compartilhamento do poder de Deus, que envolvia culto e sacrifício. Vemos ambos na Ilíada, uma das mais antigas expressões de pensamento mitológico.

A combinação de teologia e tecnologia – que incluía a habilidade de fazer armas de metais como bronze e ferro – deu poder às pessoas que detinham este conhecimento. Os que tinham o conhecimento eram hegemônicos sobre os que não o tinham. A combinação do cavalo, da roda e do ferro deu origem à era da carruagem, e as carruagens permitiam aos que as possuíam conquistar os outros, como os hicsos fizeram com os egípcios ao redor do meio do século XVII a.C. A conquista militar era prova de que um grupo estava na posse da realidade suprema e o outro não, o que persiste até o dia de hoje.

Em maio de 2018, entrei em uma discussão sobre a invenção da roda com um mulá em Mashhad, uma cidade no leste do Irã. Hojestan Mahdi Nasiri, que viajou de Qom até Mashhad para uma disputa quanto à relação entre revelação e razão, é um seguidor de Mirza Mahdi Gharawi Isfahani (1885-1945), um erudito xiita que fundou a Escola Ma’arifi de Khorasan, também conhecida como Escola Tafkid, que travou uma batalha contra a filosofia islâmica.

De acordo com a declaração no seu website, “Isfahani distinguiu os ensinamentos divinos e humanos, dizendo que os últimos eram totalmente inválidos e tinham de ser rejeitados. Ele acreditava que os filósofos e místicos estavam errados”. Provavelmente não é coincidência que a escola de Isfahani era baseada em Mashhad, que é em Khorasan, pois Khorasan era a cidade de al-Ghazali, que começou como um filósofo aos moldes de al-Farabi, mas terminou sua carreira por um repúdio de todo o “conhecimento autônomo” no seu livro A Incoerências dos Filósofos. De acordo com Walbridge:

Há mil anos, houve uma idade de ouro islâmica da razão e da ciência sob os Abbasidas, um período no qual a teologia era dominada pelos racionalistas Mu'tazilitas e a ciência e a filosofia pelas traduções de obras gregas.
Essa era de tolerância e criatividade... chegou a um fim abrupto quando Ghazali atacou a lógica e a ciência em nome de uma teologia Asharita antirracionalista. Desde então, o mundo islâmico se acomodou em um sono dogmático que ainda não terminou.[44]

Nossa discussão reforçaria a afirmação de Walbridge. Era o reflexo do debate de Russell com Copleston. Russell acreditava na razão sem fé; Nasiri acreditava na fé sem razão. A discussão em Mashhad deveria ter sido filmada pelo mesmo cameraman que filmou nossa primeira disputa em Qom há alguns anos; durante o curso da nossa discussão sobre a sexualidade, Nasiri disse: “só porque você começou uma Coca-Cola não quer dizer que você deva terminá-la”, fazendo o  cameraman objetar. O cameraman não disse nada durante a filmagem desta vez, discussão essa que atraiu uma multidão significante, mesmo que não estivesse no programa oficial.

Eu comecei afirmando que não há distinção entre razão e revelação na mente de Deus, onde tudo era apenas Logos. A história do Logos, entretanto, seguiu duas trilhas paralelas: Uma para os hebreus e uma para os gregos. As Escrituras Hebraicas tinham uma profunda competência na história. Os gregos tinham competência na filosofia, mas um entendimento primitivo do papel exercido pelo tempo no desenvolvimento humano.

O tempo, de acordo com Aristóteles, nada mais era que o número no qual se encontrava a moção. O momento inicial da moção era algo que Aristóteles não conhecia porque ele não tinha nenhum entendimento claro da criação. De fato, Aristóteles sentia que o mundo era eterno. O Deus de Aristóteles era o primeiro motor, mas Ele mesmo era imóvel.

Confrontado com a contradição entre o Alcorão, que dizia ter sido o mundo criado, e Aristóteles, que dizia ser o mundo eterno, Ibn Rushd criou a doutrina do averroísmo e disse estarem os dois certos em suas afirmações, uma decisão que acelerou o ocaso da filosofia islâmica. Os hebreus, que não tinham aptidão para especulações filosóficas, precisaram ser informados que Deus era um ser autosubsistente porque jamais poderiam ter chegado a tal conclusão sozinhos. Isto aconteceu ao redor do século XIV a.C., quando Moisés se aproximou da mata ardente e Deus respondeu à questão de Moisés quanto à sua identidade ao anunciar “Eu sou quem eu sou”.[45]

  Seriam necessários mais 2500 anos de meditação filosófica até que Santo Tomás de Aquino pudesse desempacotar as implicações metafísicas completas do que Deus disse a Moisés na sarça ardente no Monte Horeb. Na sua Summa Theologiae, Santo Tomás argumenta que Ele Que É é o nome mais adequado para Deus:

(a) porque significa Deus de acordo com sua essência, ou seja, como sendo ele mesmo; (b) porque é universal e não determina mais de perto a essência divina que é inacessível ao intelecto humano nesta vida; e (c) porque significa o ser no presente que é apropriado a Deus, cujo ser não tem passado nem futuro.[46]

Nenhum hebreu dessa época, inclusive Moisés, tinha a menor ideia do que isso significava. De fato, nenhum grego da época sabia. Durante o século VI a.C., Parmênides descobriu o conceito de ser quando escreveu “O que é não pode vir do que não é”, uma das mais profundas declarações da história do pensamento. Infelizmente, Parmênides não podia integrar esta compreensão ao seu entendimento de Deus ou enquadrá-lo na realidade da mudança.

Na discussão com Nasiri, minha intenção original era mostrar como São João Evangelista uniu as tradições hebraicas e gregas na primeira sentença do Evangelho quando escreveu que “no princípio” (as primeiras três palavras do Gênesis) “era o Logos” (anunciando a tradição da filosofia grega), mas eu nunca fui até aí porque Nasiri ficou impaciente e me interrompeu antes de eu terminar.

Nasiri queria falar sobre Adão e Eva. De acordo com a escola do pensamento islâmico que Nasiri representa, toda discussão é uma discussão teológica porque todo conhecimento está incluído no Alcorão e nas Hadith. Quando desafiado, Nasiri reconheceu a queda de Adão, mas quanto mais ele descreveu, mais claro ficou que a queda não tinha efeito real sobre o homem porque Deus perdoou Adão, e mais importantemente, pessoalmente o ensinou tudo o que ele precisava saber. O mesmo vale para a humanidade. Qualquer época em que haja um avanço no conhecimento, ele vem ou porque o homem foi diretamente ensinado por Deus ou por um dos seus profetas.

Essa afirmação me deixou perplexo. “Então”, eu questionei, “como a roda veio à existência”? Nasiri não tem uma explicação clara porque não há nenhuma Hadith que descreve como a roda veio à existência. Mas ele continuou a insistir que, para ganhar qualquer conhecimento, o homem precisa ser ensinado por Deus ou por um dos seus profetas.

Quando eu mencionei a geometria, Nasiri disse que Euclides foi ensinado por um profeta, embora não haja nenhuma Hadith para justificá-lo quanto a isso. Agora a questão se tornou axiomática. Se alguém souber de algo, ele foi ipso facto ensinado por Deus ou por um profeta. Quando eu falhei em aceitar tal conceito, Nasiri disse que eu era irracional.

Nasiri estava em um fundamento melhor quanto à domesticação dos animais porque existe uma Hadith que lida com a questão. De acordo com Nasiri, um profeta ensinou o homem a domesticar o cachorro. De acordo com o meu entendimento, a primeira evidência incontroversa de domesticação canina data de uma tumba comum compartilhada por um homem e seu cachorro que foram enterrados juntos há 14.500 anos atrás.[47]

Quando Nasiri baseou suas afirmações, digamos, quanto à domesticação do cachorro nas Hadith eu não sabia como continuar, pois estávamos conduzindo uma discussão teológica sem nenhum texto em comum como fundamento teológico. Uma vez que eu não aceite o Alcorão, e muito menos as Hadith, como canônicos, e Nasiri não aceite a Bíblia, nossa discussão terminou nesta nota incerta.

Não é claro o quanto Nasiri é representante do pensamento islâmico. É desnecessário dizer que um país moderno como o Irã não poderia funcionar se todos o seguissem. Nenhuma ciência é possível, porque a mente, mesmo que sem danos pelo pecado original, de acordo com a opinião de Nasiri, não pode abstrair leis científicas pelo contato com o Logos da criação de Deus.

Se eu tiver entendido Nasiri corretamente, o homem nada mais é que um pupilo dócil esperando por um profeta para instrui-lo, como evidentemente é o caso de Euclides. Dada esta visão, não é difícil entender porque a ciência se desenvolveu em outros lugares. As consequências desta visão continuam até o dia de hoje, como eu descobriria durante a segunda metade da minha estadia no Irã.

O Aiatolá Shahroudi foi um conselheiro próximo tanto ao Aiatolá Khomeini e seu sucessor, o Aiatolá Khamenei. Ele radiava um senso de calma conforme se senta na sala de estar na sala de estar do seu modesto apartamento em Gorgan. Já havíamos encontrado o Representante do Líder Supremo por todo o Golestão no dia anterior, mas este clérigo parecia pouco inclinado a discutir a crise geopolítica atual.

Shahroudi não mostrou tal reticência. A principal questão geopolítica, na sua opinião, era a difusão do Islamismo tóxico, conhecido como Wahabismo. O Irã estava em uma briga de vida ou morte com os Sauditas. O Irã tinha uma nação de 80 milhões de cidadãos inteligentes muito comprometidos do seu lado. A Arábia Saudita tinha muito dinheiro, mas muito pouca gente, e era ligada a uma versão irracional do Islã, e com uma aliança com os EUA e Israel.

“Por que”, eu o perguntei através de um intérprete, “os sauditas colocaram uma espada na sua bandeira”?

“Porque eles se espalham pela conquista”, ele respondeu.

“A Arábia conquistou o Irã”?

“Sim”, ele disse. Mas, ao contrário do diretor do programa e de outros com os quais falei durante minha estadia no Irã, Shahroudi não queria tirar conclusões daquele fato. Ele prosseguiu e afirmou que a Pérsia aderiu livremente ao Islã.

Depois do nosso encontro com Shahroudi, visitamos a planta da Aria Tena Gen, uma companhia biofarmacêutica que fabrica enzimas que podem ser usadas para restaurar a medula óssea em pacientes enfraquecidos para quimioterapia. O Dr. Amini, um professor de bioquímica na Universidade do Golestão, nos dá uma explicação da linha de produção, que é composta por graduados recentes da universidade.

O Dr. Amini e os seus colegas iranianos criaram esse negócio na primeira década do século XXI apenas com sua experiência compartilhada. Estão agora produzindo um produto que poderia ser vendido a um terço de um produto comparável nos Estados Unidos, mas a FDA não os permite entrar no mercado americano. O resultado é que a ATG só vende no Irã, assim como as vendas do refrigerador médico que vimos no mesmo dia.

Esse fato põe as sanções que os EUA impuseram no Irã em uma nova luz. As sanções são uma forma involuntária de tarifa, como Friedrich List teria explicado, e as sanções econômicas contra o Irã são uma benção porque promovem o crescimento da manufatura doméstica, o que aumentou drasticamente como um resultado das sanções prévias que os americanos impuseram ao Irã.

Se os EUA fossem fazer o mesmo às exportações de camisetas ao Quênia, a Uganda e à Tanzânia, estariam fazendo aos Africanos do Leste um grande favor, pois as sanções os obrigariam a fazer suas próprias roupas, crescer seu próprio algodão, tecer suas próprias veste de lã, e no processo tomariam os primeiros passos para o estabelecimento de uma manufatura doméstica que é a verdadeira fonte da riqueza material.

A existência da fábrica ATG é uma prova de que os iranianos têm conhecimento tecnológico suficiente para produzir sua própria infraestrutura de manufatura. O que falta aos iranianos é uma língua franca capaz de servir de ponte ao enorme abismo que agora separa a ciência da religião. Como, em outras palavras, iria o Rev. Nasiri explicar a criação da  fábrica ATG? Um profeta instruiu o Dr. Amini? Ou o Dr. Amini usou a experiência que ele ganhou através do estudo da biologia para criar a tecnologia que fabricara o produto deles?

O perigo neste momento da história Iraniana, é que os iranianos que foram treinados como cientistas abandonarão a religião completamente e se tornarão ateus aos moldes de Richard Dawkins, adotando o Darwinismo como a única cosmologia plausível. Isso seria uma tragédia, mas não seria a primeira vez que algo assim acontece.

A mesma coisa aconteceu na Inglaterra durante as últimas décadas do século XIX e durante as primeiras décadas do século XX. Virgínia Woolf, a filha de Leslie Stephen, que perdeu sua fé através de Darwin, notoriamente comentou a respeito da mudança da natureza humana em 1910. Bem, não aconteceu, mas algo similar poderia acontecer a um Irã na ausência do poder mediador do Logos, a única ideia que pode reconciliar uma religião irracional com uma ciência ideologicamente ateísta.

Tecnologia militar é sempre uma ferramenta de compreensão da realidade suprema, mas não é nunca idêntica a ela. Tecnologia militar é a manifestação de algum espírito mais profundo. Os conquistados tem meios de adotar as normas sociais e a tecnologia dos que os conquistaram, e no tempo de Moisés, os descendentes do Faraó derrotados pela tecnologia superior dos hicsos, se tornaram famosos por suas carruagens e seus condutores, mas seu exército, invencível em quaisquer outros aspectos, falhou em subjugar os hebreus, que sem qualquer tecnologia, caminharam a pé através do Mar Vermelho, enquanto os condutores do Faraó se afogavam atrás deles. Os Hebreus claramente possuíam algo espiritual, superior ao estado da arte da tecnologia militar, demonstrando que a compreensão da realidade suprema e a tecnologia derivada dela nem sempre caminhavam de mãos dadas.

Compreendendo que um cavalo não pode investir contra uma parede, os gregos inventaram o phalanx, que se tratava de uma parede de escudos erguidos por homens de pé, com uma mão, enquanto seguravam lanças longas com a outra. Alexandre O Grande usou o phalanx para conquistar o mundo antigo. Os romanos descobriram que a espada curta conhecida como gladius era mais efetiva do que a lança longa, e usaram essa modificação na tecnologia militar para subjugar os gregos, mas ao conquistá-los, perceberam que os conquistados detinham uma cultura superior à deles próprios, e a adotaram para si, indicando que a conquista militar ou tecnológica não detêm a palavra final na história humana.

Vitória militar é frequentemente uma casualidade baseada em contingências que nada tem a ver com a cultura. Os romanos perderam a Batalha de Adrianópolis contra os Godos porque não comeram antes da luta. Armínio ou Hermann venceu os exércitos de Varrão na Batalha da Floresta de Teutoburgo porque os romanos não podiam utilizar o phalanx na ravinas estreitas do bosque germânico.

Essa derrota preveniu que os romanos ocupassem as terras a oeste do Rio Reno, mas isso não significa que os bárbaro germânicos tinham uma cultura superior à dos romanos que eles venceram. Por outro lado, as tropas de Kitchener, com suas metralhadoras, venceram o exército numericamente superior dos Mahdi na Batalha de Ondurmã de forma tão estridente, que espalharam o terror e um senso de inferioridade ao mundo Islâmico que durou por décadas.

A Europa tinha armas superiores na Batalha de Ondurmã, mas a Europa também tinha um entendimento melhor da realidade suprema e sua relação com a tecnologia. A Realidade Suprema pode vencer sem armas, mas armas não podem vencer sem a Realidade Suprema. O Cristianismo, para retornar a Roma, venceu o Império Romano sem disparar um único tiro, simplesmente por possuir uma compreensão superior da Realidade Suprema.

Bertrand Russell identificou, acertadamente, ciência e religião como os dois candidatos principais a reivindicarem acesso privilegiado à realidade suprema, através da história humana. Russell identificou, incorretamente, a ciência como vitoriosa dessa disputa. Na verdade, ele declarou a vitória da ciência quando sua reivindicação havia sido explodida com a física quântica.

A decepção que se seguiu à tentativa fracassada de mitologia de descrever a realidade suprema levou à ciência. A ciência teve seu começo na Jônia, quando Thales alegou que o cosmos era feito de água. Existe uma linha direta de influência que leva a Demócrito, que disse que a realidade suprema eram átomos e o vazio e materialistas modernos como Bertrand Russell, mas filósofos naturais jônicos como Heráclito, que diziam que a realidade suprema era fogo, puseram o materialismo rumo à sua conclusão lógica, quando propuseram o termo Logos como denominador comum que unificava o mundo dos deuses e o mundo da matéria.

O ponto final da jornada veio quase cinco séculos depois, quando São João escreveu seu evangelho em grego e o começou com a asserção: Logos é Deus. O que se segue é um exame detalhado de sua trajetória, do começo até os dias de hoje.

 

E. Michael Jones

Manistee, Michigan

5 de setembro de 2019

 

Notas

[1] Esse ditado bem-humorado já foi creditado às seguintes pessoas: Ogden Nash, George Bernard Shaw, James Agate, Winston Churchill, Henry James, Oscar Wilde, Georges Clemenceau, e ao jornal francês La Liberte.

[2] Russell, The Problems, p. 40.

[3] Russell, Outline, frontispiece.

[4] Russell, Outline, p. x.

[5] Russell, Outline, p. x

[6] Russell, The Problems, p. 24.

[7] Russell, Not A Christian, p. 24.

[8] Russell, Outline, p. 3.

[9] Russell, Outline, p. 78.

[10] Russell, Outline, p. 78.

[11] Russell, Outline, p. 84

[12] Russell, Outline, p. 239.

[13] Russell, Outline, p. 238.

[14] Russell, Outline, p. 180.

[15] Russell, Outline, p. 182.

[16] Russell, Outline, p. 182.

[17] Russell, Outline, p. 181.

[18] Russell, Outline, p. 181.

[19] Russell, Outline, p. 183.

[20] Russell, Outline, p. 239.

[21] Russell, Outline, p. 240.

[22] Russell, Not A Christian, p. 3.

[23] Russell, Not A Christian, pp. 6-7

[24] “A Debate ... F. C. Copleston vs. Bertrand Russell,” YouTube

[25] “A Debate ...EC. Copleston vs. Bertrand Russell,” YouTube.

[26] Russell, Not A Christian, p. 7.

[27] Russell, Not A Christian, p. 7.

[28] Aristotle, Metaphysics, p. 36.

[29] Aristotle, Metaphysics, p. 37.

[30] Russell, Not A Christian, p. 7.

[31] Aristotle, Metaphysics, p. 68.

[32] Aristotle, Metaphysics, p. 68.

[33] Aristotle, Metaphysics, p. 69.

[34] Aristotle, Metaphysics, p. 38.

[35] “A Debate . . . F. C. Copleston vs. Bertrand Russell,” YouTube.

[36] Rodgers and Mel Thompson, Philosophers Behaving Badly, p. 94.

[37] Brown, Hello Goodbye, pp. 178-180.

[38] Russell, Not A Christian, p. 21.

[39] Russell, Not A Christian, p. 22.

[40] Russell, Not A Christian, p. 22.

[41] Russell, Not A Christian, p. 22.

[42] Russell, Religion and Science, p. 9.

[43] Russell, Religion and Science, p. 9.

[44] Walbridge, God and Logic, p. 9.

[45] Bible, Exodus 3:14, p. 80.

[46] Voegelin, Israel and Revelation, p. 462.

[47] “Origin of the Domestic Dog,” Wikipedia: The Free Encyclopedia. Origin_of_the_domestic_dog

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