Nota introdutória, Gabriel Gotthelf
Criador do romance cíclico em 15 volumes “Tragédia Burguesa”, esse Léon Bloy brasileiro nos dá um testemunho sincero da atualidade da obra de Jakob Burckhardt, além do importante relato histórico do ambiente intelectual da faculdade de Direito de sua época.
Burckhardt e a História
Correio da Manhã, 24 de Março. 1963.
Em cuidadosa tradução de Leo Gilson Ribeiro, publicou a Zahar Editores (Biblioteca de Cultura Histórica), em 1961, as “Weltgeschichtliche Breachtungen”, de Jacob Burckhardt, sob o título de “Reflexões sobre a História”. Ainda que só agora tenha tomado conhecimento dessa tradução, julgo o empreendimento de tal modo importante, digno de registro e elogio que não me quero privar do prazer de a ele me referir como se se tratasse da última novidade publicada pelas nossas Editoras.
Confesso que não tinha bem presente à memória os pontos de vista básicos desse livro de Burckhardt que Nietzsche tanto prezava e que tanta influência teve na sua obra, mais ou menos no mesmo grau da “História da Cultura Grega” e do “A Cultura do Renascimento na Itália”. Explico: é que, quando estabeleci contato com o pensamento histórico de Jacob Burckhardt, lá pelos agitados e já bem distantes anos de 1930, havia para todos nós que nos dizíamos ou nos julgávamos “homens de direita”, um verdadeiro “papa”: Oswald Spengler. Na Faculdade de Direito de então, todo mundo que não acreditava nos “simplismos” de Marx, jurava por Spengler. A maioria, é claro, sem o ter realmente lido--por simples ouvir dizer (exatamente como sucedia aos marxistas, em relação ao “Capital”). Spengler representava o máximo do pensamento histórico. E, naturalmente, quem se deixara seduzir pelos seus grandes voos cegos entre culturas desaparecidas, pelos mergulhos dantescos que dava, quase simultaneamente, nas civilizações as mais díspares, analisando e sintetizando, particularizando e generalizando com a mesma maestria, “genializando” a propósito dos incidentes mais banais, dos detalhes menos importantes, não poderia prestar maior atenção às “considerações” históricas ponderadas e meticulosas, rigorosas, “científicas”, de um Jacob Burckhardt. A Arnold Toynbee também, creio eu, não teríamos dedicado maior atenção, apesar de todo o seu valor--se tivesse escrito nessa época da “Decadência do Ocidente”.
Foi pois quase como um “encontro” que voltei às páginas famosas de Burckhardt. A publicação do livro é de 1873 e as conferências ou aulas que serviram de base ao historiador alemão, creio, de 1870-1. É um livro, portanto, que dista de nós quase um século. E esse século de diferença, sabemos bem, quanto e quanto pesou, sobretudo para aqueles cujo propósito era “refletir” sobre o fenômeno histórico.
Inútil portanto disfarçar: o livro “data” e não há como escondê-lo. Certos capítulos, como os que abordam problemas como “a aptidão do século XIX para os estudos históricos” ou “fontes de pesquisa”, sofreram bastante a ação do tempo. E não há dúvida, também: nem todos os capítulos do volume oferecem o mesmo interesse.
Mas, forçoso é reconhecer que o essencial do livro é de uma força e de um valor que excedem de muito tudo quanto estamos habituados a ler. A visão dos três poderes básicos que dominam a história: o estado, a religião e a cultura--os dois primeiros estáticos, conservadores; o último, dinâmico, revolucionário--, de suas inter-relações, da influência constante que exerceram uns sobre os outros ao longo dos tempos, o estudo das verdadeiras e das falsas crises históricas pelas quais o mundo passou, a análise das relações entre o indivíduo e a coletividade, principalmente no que diz respeito às artes, são momentos de uma grandeza mental e de um interesse especulativo raras vezes atingido.
Aliás, a alguns desses pontos, ainda pretendo voltar em próximos “testemunhos”. Por hoje, quero apenas lembrar que a obra de Burckhardt ainda é perfeitamente atual, com Spengler ou sem Spengler, com Toynbee ou sem Toynbee.