Catolicismo, doutrina social e livre-mercado: com Jean-Yves Naudet e Grégoire Canlorbe

Catolicismo, doutrina social e livre-mercado: com Jean-Yves Naudet e Grégoire Canlorbe

Alta Linguagem

Nota introdutória (Alta Linguagem): O seguinte texto é uma entrevista com Jean-Yves Naudet, economista católico, professor universitário, autor na AEC (Association des Économistes Catholiques), da qual faz parte também Jörg Guido Hüllsmann; ele também é especializado em temas de ética econômica, notavelmente a Doutrina Social da Igreja. A entrevista gira em torno de temas da ética econômica, em especial sobre as relações entre o liberalismo econômico e a Doutrina Social da Igreja. 

Gostaria de fazer um breve comentário ao que comenta Naudet sobre o versículo bíblico do Evangelho de Mateus, cap. 19, vers. 23-25. Ele aponta que "agulha" refere-se à um pequeno portão em Jerusalém do qual camelos não conseguiriam passar com suas cargas. Não se sabe, todavia, se esse é realmente o caso. Tratando ao modo literal, diz-se que, de fato, é impossível passar um camelo no fundo de uma agulha, mais ainda o é um rico entrar no céu. Os demais pontos apontados por Naudet são perfeitamente cabíveis à passagem, com esta única ressalva. A mensagem fundamental da passagem, gostaria de comentar, diz respeito ao seguinte: aquele que se define como rico, define-se em termos dos bens que possui, ao fruto de seu trabalho, ou seja, define-se em termos de seus próprios méritos ou conquistas; este nunca poderá entrar nos céus, pois não são méritos nem conquistas pessoais que dão a salvação. Tal mensagem é importantíssima, pois explicita a definição bíblica de fé como a entrega total de sua vida à Deus, em especial no evangelho de Mateus, que tanta ênfase dá ao cumprimento dos mandamentos e às obras. A passagem narrada por Mateus, assim, explicita a necessidade da fé em seu sentido mais pleno (desapego das coisas terrenas e apego integral à Deus) para o cumprimento dos mandamentos e para se realizar boas obras. 

Entrevista com Jean-Yves Naudet, por Grégoire Canlorbe

 

Retirado de Institut Coppet, Entretetien avec Jean-Yves Nauded, par Grégoire Canlorbe, 25 de Dezembro de 2014.


Jean-Yves Naudet é um economista francês. Ele leciona na Faculdade de Direito da Universidade Aix-Marseille III, da qual já foi vice-presidente. Trabalha principalmente em temas ligados à ética econômica.

Grégoire Canlorbe é um empreendedor intelectual francês. Reside atualmente em Paris.

Grégoire Canlorbe: Em filosofia moral, uma primeira posição consiste em avaliar os vícios e méritos da liberdade em relação ao “bem comum”, ao “interesse geral” ou à “felicidade do maior número”. Uma segunda posição consiste em negar a realidade do “bem comum” e, portanto, recusar a pertinência desse critério para julgar a liberdade. 

Qual é a sua opinião sobre a questão? Você diria que é liberal por sua convicção de que a liberdade contribui para o bem comum?

Jean-Yves Naudet: Toda a dificuldade da questão reside na indefinição habitualmente mantida sobre o que se chama “bem comum”, frequentemente confundido com “interesse geral” ou ainda com “felicidade do maior número”, pois estes últimos elementos são resultados, que não podem ser avaliados a priori, e muito menos definidos por uma autoridade central, política ou outra. A definição mais simples e clara de bem comum encontra-se no Papa João XXIII, na Mater et Magistra (§ 65): o bem comum é “o conjunto de condições sociais que permite à pessoa atingir, de modo melhor e mais fácil, seu pleno desenvolvimento”.

Não se trata, portanto, mais de um resultado, muito menos definido a priori ou arbitrariamente por uma autoridade onisciente, mas de um conjunto de condições cujo fim não é o “interesse geral” de um grupo, de uma comunidade ou de um país, e sim o pleno desenvolvimento da pessoa, portanto de cada indivíduo vivendo em sociedade, em relação com outros indivíduos em uma família, em uma associação, em uma empresa ou no seio de uma cidade ou de uma sociedade. O bem comum não implica, portanto, o sacrifício de uma pessoa, de uma minoria, de um grupo ou até de uma geração, decidido por dirigentes ou por uma maioria política, em nome do “interesse superior” do grupo ou da pátria, visto que seu fim é o pleno desenvolvimento de todas as pessoas, sem exceção, de uma sociedade.

Essas condições são extremamente numerosas e implicam o respeito aos direitos fundamentais das pessoas, portanto aos direitos naturais do homem, mas é evidente que a liberdade de cada pessoa é a primeira condição do bem comum. Como poderia uma pessoa humana desenvolver-se, se não dispuser da liberdade de pensar, de agir, de criar, de possuir, de trocar…? A liberdade é a primeira condição do bem comum, inclusive para o desenvolvimento moral da pessoa, pois um ato moral só tem valor se é um ato livre.

Do ponto de vista religioso, é um elemento básico do cristianismo conceber o homem diante de Deus e criado por Deus como um ser livre diante de outro ser livre. O homem é feito para o bem, mas tem a liberdade de escolher entre o bem e o mal, e o relato simbólico da Criação mostra o homem e a mulher no jardim do Éden como seres livres, e o mau uso dessa liberdade, ao escolher o mal, foi um ato livre, ainda que tenha provocado a queda e a ruptura com o Criador: Deus criou o mundo por amor e o homem é o coroamento da Criação, cuja vocação primeira é governar livremente a terra e submetê-la, dominá-la, notadamente por sua atividade econômica. Deus espera uma resposta do homem, mas essa resposta só faz sentido se for livre, e não forçada. Deus faz uma aposta que repousa na liberdade humana e, nesse sentido, Deus assume o risco de uma resposta negativa, pois o homem, na tradição judaico-cristã, não é uma marionete nas mãos de Deus, mas um ser livre diante de Deus, concebido como o Ser livre por excelência, e se Deus espera uma resposta dos homens, esta resposta só tem valor se for livre. A religião acrescenta que a vocação do homem é escolher livremente o bem, inclusive o amor a Deus, mas a grandeza dessa escolha vem do fato de ela repousar sobre a liberdade humana, e que o homem tem sempre a possibilidade de dizer não e escolher o mal ou a ruptura com Deus ou com os outros homens.

A liberdade não se divide, e aquele que crê que o homem é um ser livre, cuja vocação a de se florescer e, portanto, de buscar a felicidade, deve considerar que uma sociedade liberal é mais apta a permitir esse florescimento, graças às liberdades concretas que oferece a cada indivíduo. A liberdade é, portanto, a primeira condição do bem comum e é ela que possibilita o desenvolvimento pleno de cada pessoa, inclusive no cultivo de seus talentos.

Grégoire Canlorbe: A filosofia tomista é favorável, com certas reservas, à propriedade privada. Do ponto de vista de sua natureza, os bens materiais pertencem a Deus e somente a Ele. Mas, do ponto de vista de sua destinação, eles pertencem à humanidade, pois a finalidade dos bens da natureza é permitir a subsistência dos seres humanos. A humanidade tem, portanto, o direito de usar os bens materiais (sejam de ordem mineral, vegetal ou animal).

Mais precisamente, todo indivíduo tem o direito de dispor de qualquer coisa como propriamente sua, desde que isso diga respeito à gestão. Mas, quanto ao usufruto, a coisa é diferente: um homem não deve possuir seus bens como se fossem de sua propriedade exclusiva, mas como pertencentes a todos, no sentido de que deve estar disposto a ceder o excedente aos necessitados. A coerção é legítima e até necessária para garantir que essa redistribuição ocorra. Esta é condição sine qua non para que a finalidade dos bens da natureza seja respeitada.

É preciso constatar que a posição de São Tomás de Aquino se assemelha a um caminho intermediário entre liberalismo e socialismo, embora ao longo dos séculos posteriores tenham sido feitos esforços para conferir maior firmeza aos direitos de propriedade sem renegar o quadro de pensamento tomista. Segundo você, seria intelectualmente coerente defender o respeito incondicional aos direitos de propriedade ao mesmo tempo em que se reivindica o ensinamento fundamental de São Tomás de Aquino sobre a destinação universal dos bens?

Jean-Yves Naudet: É na Suma Teológica que Tomás de Aquino aborda a questão da propriedade (IIa-IIae, questão 66, O roubo e a rapina, artigo 2: “É lícito possuir em propriedade um desses bens?”). Sua argumentação, que será posteriormente retomada na Doutrina Social da Igreja, distingue a propriedade de seu uso. Para defender a propriedade, ao afirmar que “é permitido possuir bens em propriedade”, ele acrescenta, retomando a argumentação de Aristóteles, que “isso é até necessário à vida humana por três razões”. Primeiro, “cada um dedica à gestão daquilo que lhe pertence em propriedade cuidados mais atentos do que dedicaria a um bem comum a todos ou a vários”; seguindo, há mais ordem na administração dos bens (cada um cuida do que possui); e, por fim, a paz é melhor garantida entre os homens. Resume-se a tese de São Tomás afirmando que a propriedade privada está conforme ao direito natural. Sobre esse primeiro ponto, a Escritura Sagrada, por exemplo ao estabelecer no Decálogo a proibição do roubo, confirma essa legitimidade da propriedade privada, pois, caso contrário, não haveria falta moral em se apoderar do bem alheio.

Toda a Doutrina Social da Igreja, desde Leão XIII e a Rerum novarum (1891), retoma essa defesa da propriedade. Em Leão XIII, em sua encíclica dedicada à “questão social”, trata-se mesmo de uma “questão preliminar” antes mesmo de discutir o destino dos operários: “A proposta socialista de suprimir a propriedade privada, com suas funestas consequências […] Seja bem estabelecido, pois, que o primeiro fundamento a ser assentado por todos os que sinceramente querem o bem do povo é a inviolabilidade da propriedade privada” (§ 12-2). Todos os papas confirmarão esse ponto e, por exemplo, João XXIII, papa do Concílio Vaticano II, afirma na Mater et Magistra (1961): “Essa dúvida não tem fundamento algum. O direito à propriedade privada, mesmo dos meios de produção, vale em todos os tempos, pois faz parte do direito natural, segundo o qual o homem é anterior à sociedade, que deve ser ordenada a ele como a seu fim” (§ 109).

A dificuldade aparente surge quando se aborda o segundo elemento destacado por Tomás de Aquino: o uso. Essa é a questão da “destinação universal dos bens”: Deus, ao criar o homem, deu-lhe a disposição dos bens da terra, que, portanto, são destinados a todos. É Leão XIII quem expressa mais claramente esse aspecto da doutrina tomista, fazendo do proprietário uma espécie de intendente encarregado de gerir os bens para o proveito de todos:

“Não se oponha também à legitimidade da propriedade privada o fato de Deus ter dado a terra ao gênero humano para que a use e dela desfrute. Se se disser que Deus a deu em comum aos homens, isso significa não que eles devam possuí-la confusamente, mas que Deus não atribuiu parte alguma a nenhum homem em particular; Ele deixou a delimitação das propriedades à sabedoria dos homens e às instituições dos povos”. (RN § 7-1)

Mas então, como conciliar o que parece oposto: propriedade privada e destinação universal dos bens? Uma primeira pista é dada por Leão XIII:

“Quem dela carece, supre com o trabalho”.

Em outras palavras, aquele que, embora não seja proprietário, trabalha e assim recebe, em troca do serviço prestado, uma renda, tem, graças a essa renda, acesso aos bens da terra. A atividade econômica permite, assim, a destinação universal dos bens (trocando-se trabalho por salário e a renda obtida por bens ou serviços que atendam às necessidades ou preferências humanas).

João Paulo II irá mais longe na Centesimus annus (1991), especificando que quem é proprietário tem o dever moral de fazer frutificar esse bem (seja exploração agrícola, empresa industrial ou do setor terciário...), o que gera efeitos positivos para todos (criação de bens e serviços, de rendas, de empregos etc.): cada um deve não somente fazer frutificar seus talentos, mas também os bens que possui, no sentido amplo do termo. Em outras palavras, ao contrário de uma ideia corrente, a Igreja não raciocina em termos de um jogo econômico de soma zero (divisão de um bolo pré-estabelecido), mas em termos dinâmicos de criação de riqueza (aumentar o tamanho do bolo, num jogo econômico de soma positiva): a propriedade deve desembocar numa criação que beneficie a todos, contribuindo assim para a destinação universal dos bens.

Fica, então, a questão de quem, involuntariamente, não participa da atividade econômica: a destinação universal dos bens passa então pela partição voluntária e, portanto, pela solidariedade, vista como virtude e obrigação moral. A Igreja, portanto, não lança suspeita ideológica contra a propriedade, mas convoca aqueles que possuem bens a ajudarem voluntariamente quem não os tem.

Grégoire Canlorbe: Sob quais circunstâncias e de que maneira o senhor teve o encontro com Deus e com as ideias liberais? Que luz a fé aporta às suas meditações sobre o valor da liberdade humana?

Jean-Yves Naudet: É uma questão delicada, pois é muito pessoal, e é raro achar uma causa única, embora alguns tenham tido uma conversão súbita e imediata; não foi o meu caso. Vivi minha infância num meio católico praticante, porém sem ostentação e com muito respeito à liberdade de escolha de cada um, inclusive nos estilos de vida. Sem dúvida, o encontro mais tarde com quem veio a ser minha esposa confortou essa fé herdada da infância. Quanto às ideias liberais, descobri-as tardiamente, a partir do quarto ano dos meus estudos de economia em Aix, tendo alguns professores, bem conhecidos nos meios liberais, defensores de teses liberais; até então, eu tivera professores, na melhor das hipóteses, keynesianos, na pior, marxistas. Se, por um lado, eu achava uma contradição fundamental entre as teses marxistas e a fé cristã, por outro, a descoberta da liberdade econômica pareceu-me em perfeita harmonia com o ensinamento da Igreja. Mas a fé confere outra dimensão a essa liberdade. Para o cristão, “a verdade vos libertará” (João 8:32); e, para o crente, a Verdade é a de Deus, do Cristo e do homem criado à imagem de Deus, isto é, como ser livre, feito para amar a Deus e a seu próximo. Pareceu-me então evidente que havia complementaridade entre a fé cristã e a defesa de uma economia e de uma sociedade livres, ainda que se situem em planos diferentes; mas tive a impressão de que as cada uma das coisas finalmente se colocavam em seu justo lugar e em coerência.

Grégoire Canlorbe: Ouve-se frequentemente dizer que a mensagem do Evangelho seria complementar ao discurso liberal e até um alicerce para ele. Em contracorrente a essa visão dominante, Ludwig von Mises expõe em sua obra Socialismo uma análise mais nuançada.

“As palavras de Jesus a respeito dos ricos são plenas de ressentimento, e nesse ponto os Apóstolos não ficam atrás do Salvador. O rico é maldito porque é rico, o mendigo é enaltecido porque é pobre. Jesus não convoca à luta contra os ricos; ele não prega vingança contra eles. Mas isso é unicamente porque Deus reservou essa vingança para Si mesmo. (…)
O Evangelho não é nem socialista, nem comunista. Mas mostra-se, por um lado, indiferente a todas as questões sociais e, por outro, pleno de ressentimento contra a propriedade e contra os proprietários. (…) É absolutamente impossível construir uma moral social que aceite a cooperação dos homens na sociedade sobre uma doutrina que proíba todo cuidado com as necessidades terrestres, condene o trabalho, expresse com ardor o ódio aos ricos, pregue o desprendimento da família”.

Logo adiante, von Mises formula a esperança de que a doutrina cristã um dia se emancipe das palavras do Evangelho e consiga se harmonizar “com uma moral social que favoreça a vida em sociedade em vez de destruí-la”. Von Mises sugere que o “princípio fundamental da caridade cristã” poderia finalmente encontrar uma interpretação que permitisse à Igreja “assimilar o princípio fundamental da sociedade: a livre cooperação pela divisão do trabalho”. E isso, mesmo que a própria mensagem do Evangelho não possa, de modo algum, apoiar uma tal interpretação do princípio da caridade.

Quais seriam, segundo você, os pontos fortes e fracos da análise proposta por Ludwig von Mises?

Jean-Yves Naudet: O que é certo é que von Mises se engana completamente ao imaginar que a doutrina cristã possa se emancipar “um dia  das palavras do Evangelho”, pois, sem o Evangelho, o cristianismo não passaria de uma vaga sabedoria humana sem fundamento real.

Falando mais seriamente, a afirmação de Mises me parece refletir não tanto o que há no Evangelho, mas os discursos de certos cristãos, ou mesmo aquilo que os não-cristãos pensam dos cristãos. Pergunto-me onde von Mises viu a condenação do trabalho, desde o Gênesis, onde Deus dá ao homem a missão de dominar a terra e submetê-la, essência mesma da atividade econômica, até São Paulo: “aquele que não trabalha também não coma”. Não conhecia a parábola dos talentos e a condenação daquele que não fez frutificar os bens recebidos? Não há ódio aos ricos, porque não há ódio na pessoa do Cristo.

Em contrapartida, existem de fato dois elementos delicados para o não-crente apreciar. Primeiro, em muitas passagens do Evangelho (como no episódio de Marta e Maria: Marta ocupa-se do serviço e Maria senta-se para escutar Jesus, e Jesus diz que Maria escolheu a melhor parte), a ideia de que a vida terrena é apenas uma parte da realidade, de que o além-túmulo se prepara aqui embaixo mesmo e de que a dimensão espiritual, moral e religiosa do homem é mais importante que sua dimensão material; não há contradição entre as duas, mas sem dúvida uma hierarquia. Aliás, isso não impediu Jesus de depois comer a refeição preparada por Marta! As riquezas não são mais que um meio para auxiliar o homem a crescer em vista de uma finalidade mais elevada.

Em seguida, a pobreza não é exaltada em si mesma, se é imposta; ela pode ser virtude, uma escolha radical de vida (episódio do jovem rico), como ocorre com os monges, por exemplo, chamados a renunciar a tudo para se consagrar a Deus; mas isso não é exigido da maioria. Em contrapartida, a figura do pobre é onipresente, para incitar quem legítima e justamente tem bens a prestar cuidado a quem, involuntariamente, não tem tais bens. Estamos muito mais no tema da caridade do que no do ressentimento. Quanto à cooperação voluntária entre os homens, parece-me que o fato de Jesus usar todas as suas parábolas na vida econômica de seu tempo é tudo, menos um desprezo pela realidade econômica e pela troca.

É verdade que as palavras de Cristo são radicais e apelam a uma conversão pessoal profunda; mas o episódio do jovem rico (“é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus”) significa, antes de tudo, que, no momento da grande passagem da vida para a morte, não levaremos nada de material conosco e, portanto, é preciso cultivar um “espírito de pobreza”, o que não é a pobreza em si, mas aprender a considerar os bens materiais como necessários e úteis (temos um corpo com necessidades materiais, e o homem é um ser de carne e sangue, logo de necessidades), porém passageiros. O “fundo de agulha” era a porta mais baixa para entrar em Jerusalém, a última que se fechava ao pôr do sol para proteger a cidade, e por onde passavam os retardatários; se um camelo chegasse com sua carga, não passaria, era preciso, então, livrá-lo do peso para que pudesse atravessar essa passagem (o “fundo de agulha”). Isso significa que cada um deverá, no momento último da vida, aprender a desapegar-se de tudo aquilo que não levará consigo, para conservar apenas o amor e a sede de encontro com Deus. Não se trata de um sermão anti-ricos, mas de um apelo a manter certa distância em relação ao que se possui. O Cristianismo, ao contrário do que se pensa, talvez seja a religião que mais valor dá à dimensão material e carnal do homem e a suas necessidades, porque é a única que considera que o próprio Deus se fez homem e, assim, viveu a vida dos homens: Jesus trabalhou com José como carpinteiro, comeu e bebeu com seus discípulos e com os pecadores, ele, portanto, submeteu-se em tudo à condição material dos homens e, assim, à realidade econômica. E chegou a nomear Judas para cuidar das finanças do pequeno grupo dos apóstolos, essa que nem talvez não tenha sido a escolha mais judiciosa de sua parte…

Grégoire Canlorbe: Na era da globalização das trocas, não é raro ouvir que a economia dos chamados países desenvolvidos está em risco devido à combinação de três fatores: 1. a concorrência dos trabalhadores dos países desenvolvidos com os dos países com baixos salários, que gera explosão do desemprego e crescimento das desigualdades de renda; 2. a perda da autossuficiência alimentar, comprometendo a segurança a longo prazo dos países desenvolvidos; 3. o desaparecimento de certas atividades nos países desenvolvidos em razão dos custos comparativos atuais, e cujo desaparecimento pode se revelar danoso no mundo de amanhã.

Por essas três razões, acusam-se os defensores do livre comércio de conduzir um processo eminentemente imoral, em que o bem comum da Nação é sacrificado no altar de um cegueira ideológica. Como o senhor responderia a essa crítica tão comum?

Jean-Yves Naudet: De fato, há duas críticas frequentes à globalização: que ela arruinaria os países pobres (“exploração imperialista”) ou que ela arruinaria os países ricos (o argumento avançado em sua questão). Às vezes, alguns até combinam esses dois elementos, contraditórios, ao mesmo tempo. Tudo isso não faz sentido, e a globalização assusta porque ela implica, como toda economia em movimento, em mudanças permanentes e adaptações necessárias. Sim, a globalização é exigente, pois a vida econômica demanda esforço: não se combate a escassez sem sacrifícios.

Mas globalização não é mais que troca generalizada; e a troca é economia política, como dizia Bastiat. O homem é naturalmente propenso a trocar com o outro, e a troca permite que, num dia, obtenha-se mais bens e serviços do que se produziria sozinho em um século. A globalização nasce da dispersão do conhecimento e nos permite beneficiar daquilo que os demais sabem e sabem fazer. E toda troca livre é um jogo ganha-ganha: sai-se mais satisfeito depois da troca do que antes, pois, se se aceita a troca, é porque se prefere o que se comprou ao que se deu, caso contrário, não se trocaria: a troca é um jogo de soma positiva, pois o valor é subjetivo.

É certo que a globalização assusta, pois ela obriga a cultivar seus pontos fortes e a renunciar a fazer o que se faz mal ou a um custo mais alto; mas acreditar que se será perdedor implica uma visão pessimista dos diferentes povos e das diferentes pessoas; cada um tem algo único e qualidades a oferecer numa troca. Aqui, os custos de produção são mais baixos; ali, os produtos têm maior valor agregado. Um país menos desenvolvido costuma ter competitividade-preço, e um país mais desenvolvido, competitividade-produto. A autossuficiência, alimentar ou de outra natureza, não tem sentido algum desde o momento em que se pôde prestar serviços de que se dispõe em troca aqueles de que se necessita. Na globalização, não somos dependentes, mas interdependentes, o que é diferente.

A globalização não é imoral em si (há, por sua vez,, atos imorais, por exemplo, quando se engana numa troca ou não se entrega o que foi acordado), pois a troca e o mercado são, ao contrário, morais por natureza, já que são duas livres vontades que se encontram, como dizia João Paulo II. É verdade que muitos católicos tiveram uma visão negativa da globalização, que perturba costumes; esquecem com facilidade, todavia, que “católico” vem de uma palavra grega que significa “universal”, e deveriam reler certas passagens de Bento XVI, quando afirma que “a verdade da globalização como processo e sua natureza ética fundamental derivam da unidade da família humana e de seu desenvolvimento rumo ao bem” (CIV § 42).

Grégoire Canlorbe: Um segundo receio ligado à globalização, notavelmente entre os meios católicos, refere-se ao futuro da célula familiar. A indústria da mídia e da publicidade veicularia, em escala planetária, um sistema de valores hedonistas, materialistas e egocêntricos. Tudo isso em detrimento dos valores ditos tradicionais, em particular a preocupação de fundar uma família e de desenvolver, nesse contexto, relações de lealdade, honestidade e sacrifício. Em que medida esse temor parece fundamentado ao seu ver?

Jean-Yves Naudet: Essa é uma objeção mais interessante. Há uma dose de verdade e é legítimo querer educar os filhos no respeito àquilo que se considera valores ou virtudes essenciais e, aliás, boas para todos: não é melhor ter cidadãos leais ou honestos? O próprio Hayek não dizia que a vida econômica requer, ao mínimo, a virtude da honestidade? Mas a dificuldade de alguns cristãos vem de uma visão nostálgica e, sem dúvida, idealizada do poder ou de seu papel: imaginam São Luís administrando a justiça debaixo sob a sombra de uma árvore. E, portanto, esperam muito, sobretudo em matéria de moral e costumes, do Estado. Mas pouco a pouco percebem que essa ideia do Estado como guardião dos valores é um erro perigoso. Em si, a moral estatal tem um lado totalitário, e a ordem moral imposta não atrai ninguém. A moral é assunto pessoal, logo educativo, logo familiar. Poderíamos esperar do Estado, sem dúvida, apenas o respeito e a garantia de alguns valores fundamentais, mas não há uma grande multidão que ainda caia nessa ilusão proposta: a salvação moral não virá do Estado e uma hipotética moral imposta de Estado perderia todo valor. Um ato só tem uma dimensão moral se for livre. Se o Estado garantisse os direitos fundamentais das pessoas e ele mesmo os respeitasse e nos deixasse livres para agir, isso já seria muito bom.

A resposta a essa questão sobre a globalização, a de que ela ameaça a moral ou a família não pode se encontrar num isolamento retrógrado (aliás, por que a globalização em particular? Difícil ver como fechar fronteiras garantiria uma melhor “proteção” moral). A resposta a essa questão não virá do Estado nem do isolamento: ela vem da educação das crianças para o uso responsável de sua liberdade: aprender a decodificar, a discernir, a analisar, a contestar o que elas veem e ouvem. Mas o objetivo da educação não é transformar as crianças em clones de si mesmas, mas em seres livres, suficientemente capazes de seguir o caminho que eles mesmos escolherem. Claro que, nessa educação, outros elementos além da família podem desempenhar um papel, daí a importância da liberdade escolar (escolha livre da escola) e das liberdades associativas (incluindo movimentos confessionais, se desejado). É justamente quando o Estado impõe seu monopólio sobre a escola ou sobre os movimentos de jovens que a liberdade desaparece e com ela a moral também.

Todavia, os valores tradicionais ou culturais dos quais você fala não são estáticos. A esse respeito, João Paulo II lembrava que “o patrimônio dos valores transmitidos e adquiridos está sempre sujeito à contestação dos jovens. Questionar, é verdade, não significa necessariamente destruir ou recusar a priori, mas isso quer dizer sobretudo pôr à prova em sua própria vida e, por meio de tal verificação existencial, tornar esses valores mais vivos, mais atuais e mais pessoais…” (CA §50). Não é colocando as crianças, ou o país, “numa redoma” ou num meio estéril que formaremos homens livres, mas tornando-os aptos para enfrentar, com discernimento, o vento do grande largo.

Grégoire Canlorbe: Uma certa tradição de pensamento no seio da Igreja Católica proclama sua hostilidade à figura do especulador, retratado como ser ganancioso e criminoso, e nega que sua atividade preste qualquer serviço à comunidade. A título de exemplo, Pio XI escreve em 1931, na encíclica Quadragesimo Anno:

“Os ganhos tão fáceis que oferece a todos a anarquia dos mercados atraem às funções de troca demasiadas pessoas cujo único desejo é realizar lucros rápidos por meio de trabalho insignificante, e cuja especulação desenfreada faz subir e descer constantemente todos os preços ao sabor de seus caprichos e de sua avidez, frustrando assim as sábias previsões da produção”.

A crise dita dos subprimes foi ocasião para muitos comentadores católicos reafirmarem essa desconfiança, senão esse ódio, contra a figura do especulador e sua atividade. A especulação financeira teria sido a origem da crise de 2007/2008 e, mais do que nunca, seria tempo de regulamentar, se não proibir, a atividade dos especuladores.

Qual seria sua resposta a essa denúncia tradicional da especulação e, em particular, à acusação veemente de que os especuladores seriam responsáveis pelo marasmo financeiro e econômico que conhecemos atualmente?

Jean-Yves Naudet: A vida econômica é feita de incertezas; por isso ela possui sempre, por sua natureza, uma dimensão especulativa: investir o dinheiro aqui em vez de ali, comprar antes que o preço suba; todas as escolhas econômicos são feitas na incerteza, demandam fazer antecipações e, portanto, de certo modo, somos todos especuladores. É verdade que a complexidade de certos mercados, como os de futuros, faz crer, àqueles que não sabem analisá-los, que têm um lado diabólico. O papel dos economistas é explicar que foram necessidades profissionais que geraram, por exemplo, os mercados futuros de commodities e de câmbio, e isso para transferir o risco (de variação de preços, por exemplo) a um especulador que o assume em vez do profissional que, ele, quer fixar o preço futuro imediatamente ou, ao menos, proteger-se contra a variação no preço. Nesse sentido, os especuladores prestam um serviço, um pouco como as seguradoras, mas diante de riscos distintos daqueles que são cobertos pelos seguros tradicionais. Naturalmente, há, como em toda atividade, trapaceiros, fraudadores, manipuladores, atos imorais ou então falta de transparência; mas há também a realidade de um serviço prestado, ainda que às vezes complicado de compreender.

A questão da responsabilidade dos especuladores na crise de 2007/2008 oculta o cerne do problema: a crise dos subprimes decorreu da vontade das autoridades americanas, em particular do Federal Reserve, de reaquecer a economia a qualquer custo, incentivando, inclusive forçando, os bancos a conceder crédito a lares insolventes. Há aí, de fato, uma imoralidade, mas ela vem dos líderes políticos e dos banqueiros centrais, que quiseram forçar a marcha da economia, que criaram a liquidez artificialmente e pressionaram os bancos a tomar riscos imprudentes, assegurando que, em toda hipótese, o Fed os socorreria se necessário. Não se trata de um problema de especulação, e sim de recusa ao real: empresta-se apenas a quem tem, ou razoavelmente terá, meios de pagar. A crise das dívidas soberanas segue o mesmo padrão de negação do real: crer que os Estados podem viver eternamente de crédito, isto é, acima de seus meios, neste caso de nossos meios, pois são os contribuintes presentes e futuros que, em toda hipótese, financiam o Estado.

Grégoire Canlorbe: É de bom tom enaltecer ou reprovar o papa Francisco sob o argumento de que ele seria social-democrata, se não socialista. Na primeira carta de sua exortação apostólica emitida em 24 de novembro de 2013, o papa visa claramente denunciar “as ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira” e “que negam o direito de controle dos Estados encarregados de zelar pela preservação do bem comum”.

Qual seria, em sua opinião, a apreciação correta desses dizeres do papa Francisco? Pode-se, de fato, descrevê-lo como socialista? Ele marca uma regressão em relação ao seu predecessor ou se inscreve na linha de Bento XVI, que afirmava sua adesão aos princípios da livre economia de mercado?

Jean-Yves Naudet: Essa é uma questão difícil, pois tem de se admitir algo que a maioria das pessoas não vê: um papa não é um político e não cabe nas categorias de políticos, aliás bem discutíveis. É claro que o papa é um homem e pode ter opiniões pessoais em tópicos “prudenciais”, como se diz. Cada papa tem sua sensibilidade e, por exemplo, um João Paulo II, que conheceu o totalitarismo nazista, depois o totalitarismo comunista, e contribuiu para a queda do comunismo, foi muito marcado por essas experiências e sem dúvida melhor compreendeu por reação o papel do mercado e das liberdades econômicas. O Papa Francisco vem da América Latina, o que lhe deu uma imagem de um capitalismo de compadrio, de um capitalismo de conivência, o que explica sua visão mais negativa do mercado.

Mas não se trata de um homem político que se expressa, e sim um pastor cuja missão é, antes de tudo, espiritual. Colocar-lhe uma etiqueta política é sem sentido e, ademais, não é de grande interesse. Em dois mil anos, a Igreja teve à sua frente personalidades que expressaram diferentes “sensibilidades”. E como a Igreja se interessa pela vida dos homens, é normal que cada papa se expresse sobre as questões econômicas e sociais. O Papa Francisco tem um sentido de palavras tocantes, aptas a despertar consciências; ele é também reconhecido por corresponder com o que diz naquilo que ele vive, e essa é uma das razões para sua popularidade.

Que o papa é crítico da realidade econômica atual que, aliás, está bem longe de ser liberal, é, aos meus olhos, muito consolador: o papel dos pastores é despertar consciências, e um bispo ou papa que explicasse que finalmente se alcançou o paraíso e o Reino de Deus na Terra me inquietaria: sua função é sempre chamar todos ao exame de consciência e, assim, à crítica do real, o que quer que ela seja, chamar à fazer melhor, pois a Igreja sabe que o homem é capaz do bem e do mal, do pior e do melhor.

Sendo assim, mesmo que a Igreja se dirija às consciências e não tenha um modelo técnico a oferecer, ela pouco a pouco elaborou uma doutrina social. O papel do magistério, neste caso, do papa, é adaptá-la, a cada tempo, à realidade do momento, aprofundá-la, aperfeiçoá-la, mas não mudá-la quanto aos princípios, pois, se contrariar quanto aos princípios (dignidade da pessoa, propriedade privada e destinação universal dos bens, solidariedade, subsidiariedade, bem comum etc.), um papa estaria dizendo o contrário de seus antecessores, já não seria mais no domínio doutrinal: uma doutrina se aprofunda e se adapta, mas não pode mudar, por definição. É, todavia, o mundo ao nosso redor que se transforma e exige releituras desses princípios face às novas realidades. É isso que os fazem papas em suas encíclicas sociais, e certamente é o que o papa Francisco também fará. O texto que você mencionou é uma exortação apostólica, aliás muito estimulante, mas que visa encorajar os cristãos à ação e à conversão; mas, como o papa escreve ele mesmo, não se trata de uma encíclica social. Não me choca, ao contrário, que nessa exortação o papa coloque questões incômodas e nos provoque a refletir, até a duvidar de nossas certezas. É papel dos leigos distinguir aquilo que se pode discutir do ponto de vista da realidade econômica ou da ciência econômica, e a mensagem moral ou espiritual que justificou essa advertência. Um liberal, crente ou não, sabe que os homens são imperfeitos (pecadores, diria um crente) e que uma autoridade moral que nos desperte com um discurso quente, e não morno, é bem-vinda. É preciso ler toda a exortação para compreender todo seu sentido, e nela vejo mais um apelo a moralizar a vida econômica por meio da moralização de nossos comportamentos individuais do que um chamado a um grande levante revolucionário. E é muito mais difícil e exigente mudar seu próprio comportamento que esperar pela revolução! Claro, o papa, vindo de um país ainda pobre, enfatiza muito sobre a questão da pobreza e do desenvolvimento, e ele tem razão; cabe a nós mostrar que é a liberdade que faz sair povos inteiros da miséria e que é o estatismo que os mantêm nela.

Grégoire Canlorbe:Digitus Dei est hic”. “O dedo de Deus está aqui”. Bastiat conclui nessas palavras a primeira edição de suas Harmonies économiques. As relações de Bastiat com a fé e com a instituição religiosa são, por vezes, complexas de apreender. Em que medida podemos dizer que ele foi, propriamente falando, um economista católico? Você sofreu influência de Bastiat em seu próprio percurso místico?

Jean-Yves Naudet: Eu mentiria ao dizer que Bastiat me influenciou do ponto de vista de minha fé católica; por outro lado, ele influenciou indiscutivelmente minhas ideias econômicas,  por seu talento com as palavras, e ele me confortou na ideia, retomando o título da revista fundada por Raoul Audouin, de que se pode ser ao mesmo tempo “liberal e crente”.

Gosto muito da fórmula de Bastiat, “Digitus Dei est hic”, expressão que se vê em outros autores para descrever as harmonias da natureza ou do cosmos, e que ele aplica às harmonias econômicas. Ademais, escrevi um artigo sobre esse tema e com esse título no Journal des économistes et des études humaines de dezembro de 2001. Não penso que Bastiat seja um “economista católico” no sentido habitual do termo, como poder-se-ia dizer de Villeneuve-Bargemont, de Charles de Coux ou, mais tarde, dos economistas da escola de Angers em torno de monsenhor Freppel (Claudio Jannet, Charles Périn, Joseph Rambaud). Contudo, ele era indiscutivelmente crente, sobretudo no fim de sua vida, e o padre Baunard, em sua obra La foi et ses victoires dans le siècle présent, inclui Bastiat entre os convertidos. Os economistas católicos do século XIX buscavam uma “economia política cristã”; Bastiat, por sua vez, buscava as leis da ciência econômica e visava demonstrar que elas são compatíveis com a fé cristã, essa não é a mesma abordagem .

Uma homenagem involuntária a ele vem de Proudhon, que fora adversário sobre questão do crédito gratuito, e que o perseguiu com rancor em De la justice dans la Révolution et dans l’Église, com algumas frases assassinas para criticar sua morte cristã, e que, ao contrário, poderiam ser lidas positivamente. É aquilo que o padre Baunard chama “homenagem do inferno”. Proudhon escreveu:

“Infortunado Bastiat! Foi morrer em Roma, entre as mãos dos padres. Em seu último instante, exclamava como Polieucto: “Eu vejo, eu creio, eu sei, sou cristão!...” O que ele via? O que veem todos os místicos que imaginam possuir o Espírito porque têm sobre os olhos a venda da fé: que o pauperismo e o crime são indestrutíveis; que eles entram no plano da Providência; que tal é a razão das incoerências da sociedade e das contradições da economia política; que é impiedade pretender fazer reinar a justiça nesse caos, e que não há verdade, moral e ordem senão numa vida superior. Amém”.

Que injustiças e imprecisões num só parágrafo; quem leu Bastiat não o reconhece nessa descrição; mas Proudhon estava furioso ao ver seu adversário morrer como cristão, e mais ainda em Roma, antes de ser enterrado em Saint Louis des Français.

Eu prefiro reter aquilo que disse Bastiat, quatro dias antes de sua morte, a Paillotet: “Quero viver e morrer na religião de meus pais. Sempre a amei, embora não a seguisse em suas práticas exteriores”. Mas o que me parece mais importante é que Bastiat, que defendeu em toda sua vida as liberdades econômicas, a liberdade pura e simplesmente, morre repetindo “a verdade, a verdade”. Ele, o homem da liberdade, não dissocia a liberdade da verdade, reencontrando assim a frase que São João atribui a Jesus: “A verdade vos tornará livres”.

Grégoire Canlorbe:  Nossa entrevista chega ao fim. Gostaria de acrescentar algumas palavras?

Jean-Yves Naudet: Sim: obrigado por me dar a oportunidade, graças às suas perguntas pertinentes e estimulantes, de refletir sobre esses temas.

Grégoire Canlorbe: Eu que lhe agradeço.

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