“Conseguiu Horvat responder a Hayek? A Crise da Autogestão Iugoslava”, de David Prychitko

“Conseguiu Horvat responder a Hayek? A Crise da Autogestão Iugoslava”, de David Prychitko

Nota Introdutória, por Valério

Nesse texto, o economista austríaco e socialista de mercado David Prychitko buscará delinear uma perspectiva comparativa entre o modelo socialista do também economista Branko Horvat e a realidade econômica e organizacional do modelo iugoslavo. Como será arguido, nos momentos originários de aplicação do sistema, tanto os mercados quanto a gestão empresarial estavam assolados por um problema central de incentivos. Quando da resposta institucional à crise, o regime assumiu uma forma que dificilmente corresponde ao sistema modelado por Horvat. Essa facticidade do sistema, deduzirá Prychitko, confirma o argumento político de Mises-Hayek contra o socialismo libertário.

Conseguiu Horvat responder a Hayek? A Crise da Autogestão Iugoslava

No período em que um regime Comunista atrás do outro cai em ruínas no Leste Europeu, a Iugoslávia recebe pouca atenção da imprensa. Nós assistimos com empolgação ao colapso do Muro de Berlim, à ascensão do poeta-estadista Vaclav Hovel em Praga, à queda do Partido em Budapest, ao destino sangrento de Nicolae Ceausescu em Bucareste. Nós não temos ouvido muito sobre a Iugoslávia. As mudanças cruciais no resto do Leste Europeu parecem ignorar paralelamente a Iugoslávia. Mas não deixe que isso o engane. Os povos da Iugoslávia, tal como aqueles dos países vizinhos da Europa Oriental, estão reivindicando, e lentamente conquistando, um fim para o monolítico Partido Comunista e a introdução dos direitos de propriedade privada e uma plena economia de mercado.

O socialismo à moda Iugoslava, com sua ênfase ideológica na descentralização e na autogestão dos recursos socialmente apropriados pelos trabalhadores, foi outrora propagado como uma mais fundamental, mais humana alternativa para o planejamento por comando da União Soviética. Decerto, a Iugoslávia foi o primeiro país a romper com o jugo de poder de Stalin ainda em 1948 para criar uma perestroika própria para si. Sob a liderança de Tito, a Iugoslávia tentou uma descentralização massiva no sentido do socialismo de trabalhadores autogeridos, iniciada em 1950 com a adoção da Lei Básica sobre o Movimento dos Empreendimentos Econômicos de Estado e Maiores Associações Econômicas por seus Coletivos de Trabalhadores. A burocracia do planejamento central seria desmantelada. A propriedade estatal, apagada. Nas palavras de Tito,

“A dominação dos meios de produção pelo Estado não tornou fato consumado o slogan de luta do movimento operário, ‘Fábricas para os Trabalhadores’, porque o slogan ‘Fábrica para os Trabalhadores, Terra para os Camponeses” é mais do que apenas um grito de guerra propagandístico abstrato. Ele contém um profundo e de peso significado. Ele sumariza integralmente o programa das relações socialistas de produção; ele fala de propriedade social, dos direitos e deveres dos Trabalhadores e – portanto – pode e deve ser conquistado na prática se nós quisermos, de fato, construir o socialismo.”[1]

Conselhos operários esclarecidos estariam encarregados do planejamento da sociedade de baixo para cima, em vez de cima para baixo. A propriedade “social” substituiria a propriedade estatal. Não mais o privilégio legal de capitalistas privados ou burocratas do Estado, os meios de produção seriam oficialmente a propriedade da sociedade em sua amplitude. Os empreendimentos do Estado seriam entregues aos conselhos operários; um mercado para bens de consumo emergiria, ao reduzir a escassez e as grandes filas de espera que aterrorizaram os outros países da Europa Oriental. O socialismo não mais restringiria a democracia e a destruiria. Ele iria abraçá-la na oficina, fábrica e no escritório de planejamento.

O apogeu do “socialismo de mercado” havia surgido.

Reivindicações de Racionalidade

[Nota do tradutor: o termo “enterprise” é traduzido intercambiavelmente como “empresa” e “empreendimento”, visto que Prychitko o utiliza em ambos os sentidos de iniciativa empresarial e firma.]

Os economistas austríacos aparentemente sofreram uma derrota intelectual. Setenta anos atrás, Ludwig von Mises argumentou que o socialismo era impossível. Ao abolir a troca irrestrita de mercado dos meios de produção – e, portanto, os preços de mercado que refletem sua escassez econômica subjacente -, os planejadores centrais, Mises sustentou, careceriam do conhecimento necessário para coordenar racionalmente o sistema econômico. Eles ficariam confusos diante de “uma multidão desnorteadora de possibilidades econômicas”, conforme Mises colocou.[2] F. A. Hayek concordou com Mises, e viria a acrescentar mais tarde que o planejamento econômico compreensivo, mesmo se iniciasse com as mais humanas e democráticas aspirações imagináveis, deverá incorrer em uma ditadura totalitária, “porque a ditadura é o mais eficiente instrumento de coerção e de aplicação forçada de ideais e, com efeito, essencial se é possível um planejamento central em larga escala.”[3]

Os Austríacos portaram uma espada de dois gumes. Um lado fatiou em pedaços a crença em que o planejamento econômico central era possível no complexo mundo moderno. O outro lado atravessou a veia da democracia socialista e expôs o fato de que quaisquer ambições democráticas deverão ser sumariamente abandonadas no esforço utópico para derrubar o sistema de mercado. Ou assim criam os Austríacos.

Parecia que, pela década de 1960, a Iugoslávia havia finalmente provado impotente esta espada. O modelo iugoslavo de socialismo descentralizado, que permitia mercados para bens de consumo tão eficientemente quanto mercados de recursos limitados, aliado à sua ênfase no planejamento democrático e administração pelos próprios trabalhadores, era considerado por muitos economistas de sistemas comparativos a resposta final contra Mises e, mais ainda, Hayek.

Naquele tempo, a Iugoslávia desfrutou de um grau relativamente maior de crescimento econômico comparada com seus vizinhos por trás da Cortina de Ferro. As filas por bens de consumo minguaram. Trabalhadores estavam oficialmente no encargo de seus ambientes de trabalho e das decisões do planejamento empresarial. As fronteiras iugoslavas estavam abertas para turistas ocidentais.

Economistas tenderam a considerar a Iugoslávia como a mais próxima aplicação prática do modelo teórico de socialismo de mercado concebido por Oskar Lange. Morris Bornstein, por exemplo, alegou que “uma série de lacunas identificadas por Hayek foram preenchidas pela variante iugoslava do socialismo de mercado.”[4] Thomas Marschak escreveu que “a ideia clássica (de Hayek, por exemplo) de que a dificuldade de agregar a informação técnica íntima de gestores em um centro era o maior obstáculo para qualquer tipo de planejamento central parece perder seu rigor no contexto iugoslavo.”[5]

Afirmações como estas não eram incomuns entre economistas de sistemas comparativos nas décadas de 1960 e 1970. Mas o mais poderoso desafio para os Austríacos foi publicado em menos de dez anos atrás. Branko Horvat, o renomado economista da Iugoslávia, tornou alto e claro em seu magnum opus, “A Economia Política do Socialismo”:

“Hayek enquadrou seu argumento para provar a superioridade do livre mercado sobre o planejamento central. No contexto deste livro, poderá ser de interesse histórico tomar nota da seguinte afirmação feita por Hayek em 1945: ‘Ninguém até então sucedeu em desenhar um sistema alternativo em que pudessem ser preservados certos atributos daquele existente que são desejados mesmo por aqueles que mais violentamente o atacam – tal como, particularmente, a extensão pela qual um indivíduo pode escolher seus objetivos e, consequentemente, livremente usar seu próprio conhecimento e habilidades.’ ... Eu não deixarei irresoluto este desafio.”[6]

Horvat acredita que o projeto do socialismo autogerido responde Hayek [grifos do autor]:

“O controle social é maximamente efetivo – e a possibilidade de abusos administrativos, drasticamente reduzida – porque a administração opera perante os olhos vigilantes do conselho operário e de todo o coletivo de trabalho. É ao mesmo tempo impossível e ilegal manter decisões socialmente relevantes em sigilo. Ao contrário das tendências monopolísticas em outros lugares, a concentração de Capital é desencorajada. O coletivo de trabalhadores em uma firma gerida por trabalhadores não está inclinado a expandir em excesso a empresa através de fusões porque, então, perderá controle sobre os interesses da firma. Por outro lado, devido à diferente organização social, o poder financeiro já não é mais tão importante. Uma firma competitiva não pode ser comprada nem possuída. Portanto, uma economia gerida por trabalhadores é suscetível a operar muito mais profundamente o modelo-guia do mercado competitivo. A propriedade social implica em planejamento, mas não elimina o mercado. Consequentemente, a economia administrada pelos trabalhadores conquista o que Hayek considerava impossível: uma forma alternativa de organização em que a autonomia da parte da firma é tornada compatível com a coordenação ex ante das atividades econômicas e é feito pleno uso do conhecimento existente enquanto perdas oriundas de falhas de mercado são evitadas. O planejamento e a propriedade social tornam quase impossível a especulação financeira e reduzem o escopo da publicidade supérflua. As intervenções do Estado são minimizadas, uma vez que as decisões são automaticamente controladas em cada estágio, e a taxação é simples por causa da distribuição igualitária de renda.”[7]

Horvat manteve que “a solução iugoslava não deve ser tomada como o fim de um processo, mas, antes, como o começo promissor do desenvolvimento de uma sociedade genuinamente autogovernada.”[8] Mas a experiência iugoslava com o socialismo autogerido – que já agora entrou em sua quinta década – ilustra qualquer coisa menos as alegações de Horvat. Deixemo-nos, pois, considerar essas reivindicações à luz da realidade do socialismo iugoslavo.

Controle Operário versus Controle do Partido

Comecemos com o ponto mais importante: a democrática e autogerida empresa enquanto veículo revolucionário de controle social. Defendida pelo apelo de Tito por “Fábricas para os Trabalhadores” em 1950, a Iugoslávia, considera-se, é fundamentada no controle operário democrático da empresa. O empreendimento autogerido é composto de vários conselhos de trabalhadores. A ideologia comunista iugoslava alega que, através de processos democráticos, operários elegem uma mesa administrativa que supervisiona e auxilia a coordenação da operação empresarial. Trabalhadores, em seus respectivos conselhos, gerem oficialmente os meios de produção “socialmente” apropriados (tal como se eles alugassem recursos de Capital ao Estado, ao invés de disporem da completa reivindicação de propriedade legal). Não coagidos pelos ditados do planejamento por comando Stalinista, a Constituição Iugoslava admite aos trabalhadores distribuir quaisquer lucros empresariais conforme seus desígnios, seja na forma de renda pessoal (sobre e acima dos salários-padrão dos trabalhadores) ou na forma de reinvestimento na própria empresa.

A empresa socialista autogerida é dita ser uma entidade de planejamento relativamente autônoma, um empreendimento dos trabalhadores, pelos trabalhadores, para os trabalhadores. Além do mais, porque o trabalhador é também cidadão, porque as empresas autogeridas seguem procedimentos gerais de planejamento, tais quais entrar em acordos de planejamento com outras empresas, conselhos sociais e gabinetes governamentais, e porque todo esse processo é suposto representar os melhores interesses da sociedade globalmente, o sistema socialista de empresas autogeridas é também dito ser um sistema da sociedade, pela sociedade, para a sociedade. A distinção entre indivíduo e sociedade torna-se, em tal utopia marxista, ofuscada, se não diretamente abandonada.

Dessa forma, Horvat pode dizer que o controle social é “maximamente efetivo” e que gestores possuem escassa oportunidade para abusar de suas posições. Na prática real, contudo, trabalhadores têm desfrutado de muito menos autonomia e poder decisório do que a teoria de Horvat nos faria crer.

O Partido Comunista da Iugoslávia conseguiu manter um grande nível de poder dentro da empresa. Uma via do poder encontra-se na aktiv, que é uma conexão crucial entre a empresa e outras organizações sociopolíticas. Organizada por membros do Partido que geralmente ocupam posições importantes naquelas organizações externas, a aktiv possui um tremendo grau de influência sobre as políticas empresariais internas.

A aktiv “assiste” a empresa em persuadir oficiais dentro da comuna local, da república ou dentro do próprio Partido para assegurar empréstimos bancários, para conseguir preços mais altos pelo seu produto, receber licenças de construção etc. Mas, porque ela usufrui de tão forte posição de poder, os gestores dentro da empresa possuem baixo incentivo para resistir à pressão partidária. A autonomia da empresa é, então, sacrificada por novas cartas de permissão, empréstimos e licenças, menores preços em investimentos, maiores preços sobre a produção e alocação aprimorada de trocas no estrangeiro, qualquer dos quais poderá ser necessário para o sucesso do empreendimento.[9]

A típica empresa iugoslava está corroída por ambos conflitos de interesse e apatia operária. Trabalhadores tendem a faltar interesse real em gerir o empreendimento. Na verdade, conforme argumentaram Egon Neuberger e Estelle James, os operários preferiam não tomar a responsabilidade pela tomada de decisões, porque a tomada de decisões é demasiado arriscada.[10] Boas decisões trarão, pelo menos, rendimentos mais altos, mas elas poderão, também, trazer maiores expectativas do Partido e, com elas, maiores responsabilidades no futuro. Mais ainda, más decisões ferem imediatamente. Operários, então, tendem a cair na rotina. Eles atendem a reuniões conciliares, mas falta-lhes iniciativa para introduzir um diálogo significativo acerca da maior parte das questões empresariais. A apatia generalizada entre trabalhadores da empresa permite ainda ao Partido, direta ou indiretamente, assumir o controle sobre o conselho administrativo eleito. No lugar do ideal de autogestão democrática, uma elite tecnocrática emergiu para controlar as operações empresariais.

Isso não quer dizer que os trabalhadores não se tornam verbais e falham em negociar ou lutar por certas questões dentro da empresa. Apáticos tal qual eles de outro modo seriam, operários, de qualquer maneira, têm um grande interesse pessoal na distribuição dos lucros empresariais. Conflitos amargos de interesse aparecem sobre o problema de quanto lucro deverá ser direcionado aos trabalhadores para consumo pessoal e quanto deverá ser retornado à empresa na forma de investimento.

Muito embora o Partido gostaria de ver um acréscimo no investimento, operários têm pouco, se algum, incentivo para investir voluntariamente no empreendimento socialista. Eirik Furubotn e Svetozar Pejovich demonstraram esse problema em uma série de estudos teóricos e empíricos.[11] Porque o trabalhador iugoslavo não desfruta de plenos direitos de propriedade sobre os meios de produção, mas somente o direito de uso, ele não é livre para recuperar qualquer dinheiro investido na empresa na ocasião de que ele deixe a firma ou seja demitido. Do ponto de vista do trabalhador, é mais racional “investir” sua própria renda pessoal em bens duráveis, a exemplo de geladeiras, automóveis e decorações – coisas que são tratadas como propriedades privadas sob o total controle de seu possuidor – em vez de jogar seu dinheiro em um poço coletivamente apropriado que não está à sua plena disposição.

Em resposta, o Estado iugoslavo impõe largas taxas sobre o rendimento bruto das empresas e engaja em uma política de investimento forçado. Trabalhadores devem, então, entrar em greve por salários mais altos. Greves por aumentos salariais não são incomuns na Iugoslávia. Na verdade, milhares ocorreram nos últimos anos. Isso é fonte de tremendo constrangimento para o Partido Comunista da Iugoslávia com sua retórica de autogestão. Se a empresa iugoslava fosse realmente um “verdadeiro” sistema autogerido, tal nos faz acreditar o Partido, os trabalhadores parecem entrar em greve contra eles mesmos!

Socialismo de Mercado, Monopólio e Privilégio

Horvat alegou que “a economia gerida por trabalhadores é suscetível a operar muito mais profundamente o modelo-guia do mercado competitivo.” Isso está longe de ser verdade, ou melhor, é primariamente ridículo à luz da real experiência iugoslava. O “mercado” iugoslavo tem sido historicamente contagiado por uma horrenda falta de entrada. Cidadãos têm a sua luta legal para formar suas próprias empresas autogeridas, mas a vigilância compulsória dos “Comitês de Competição”, na prática, eliminou essa forma de entrada. Ao invés de novos rivais forçarem as firmas existentes a reduzir seus custos de produção e/ou criar produtos de melhor qualidade, firmas incumbentes (geralmente estabelecidas pelo Estado) têm tendido a expandir ao criar novas empresas. Curiosamente, posto que empresas recentemente estabelecidas possuem o direito de secessão sobre seu fundador, elas raramente o exerceram, e elas, em muitos casos, formam o equivalente a um arranjo de cartel com a empresa fundadora.[12]

A falta de entrada provocou, também, sem surpresa, uma falta de saída. Empresas custosas, ineficientes, empresas que entrariam em falência em uma verdadeira economia de lucros e perdas, têm sido tipicamente auxiliadas, tais quais a maioria das firmas socialistas através do Leste Europeu, por meio de enormes subsídios estatais. Na Iugoslávia, como igualmente em todo lugar sob o socialismo, a sobrevivência das empresas depende em maior parte do empreendedorismo político – a habilidade de cooperar eficientemente com o Partido – em contraposição ao tipo de capacidade administrativa necessária para sobreviver em mercados realmente competitivos. Embora um empreendedorismo político dessa sorte ajude a preservar empregos, ele o faz por um custo significativo, incluindo produtos de baixa qualidade, falta de inovação e um declínio geral no crescimento econômico.

Caos Planejado

Horvat insiste em que a “propriedade social” combina ambos o mercado e o planejamento; ela não elimina o mercado em favor do centralizado planejamento por comando. Eu concordo com Horvat pelo menos em que, para a Iugoslávia, o mercado ainda há de ser eliminado. Lá tem havido um mercado para bens de consumo que tem sido, de fato, mais aberto do que em outros países da Europa Oriental. Mas os benefícios integrais do processo de mercado nos meios de produção e bens de maior ordem são severamente restringidos pela intervenção do Estado.

O papel da aktiv do Partido que eu mencionei acima é uma via pela qual o Estado intervém na troca de recursos escassos. O obstáculo burocrático para a entrada é outra. E o fato de que o Estado engajou em uma política de precificação administrativa de recursos escassos desde 1965 – ao fixar os preços de 90% dos produtos industriais – é um terceiro exemplo. Atividades bancárias estatais centralizadas, que recorreram a imprimir dinheiro para subsidiar empreendimentos terrivelmente ineficientes, são responsáveis pela taxa fantástica de inflação da Iugoslávia – que cresceu de cerca de 40% por ano em 1981 para mais de 2000% a partir de 1990 (só entre 1985 e 1988, o suprimento de dinheiro cresceu mais de 9,5 vezes). A dívida externa da Iugoslávia ultrapassou $20 bilhões de dólares.

Tal como na URSS, a dificuldade econômica da Iugoslávia reinflamou as chamas do nacionalismo. Eslovênia, a república mais orientada ao Ocidente da Iugoslávia, já ameaçou uma secessão. A Croácia deverá segui-la brevemente. Tensões étnicas em Kosovo, a província problemática no sul da Sérvia, estão atualmente empurrando a Iugoslávia em uma guerra civil.

A Iugoslávia, outrora celebrada enquanto um marco do socialismo de mercado, se encontra agora à beira de uma catástrofe. O discurso de abertura para a Presidência da Liga dos Comunistas da Iugoslávia (LCY) do presidente Stipe Suvar durante a 17ª Sessão da reunião do Comitê Central em outubro de 1988 nos diz:

“Os últimos 30 anos desde a adoção do Programa LCY têm sido marcados pelos nossos esforços de saltar do estágio de socialismo de Estado. Todos os nossos esforços, cujas metas têm sido o Programa LCY, a reforma econômica de 1965, a reforma constitucional de 1971-1974, o modelo para o sistema político providenciado no 11º Congresso no trabalho de Edvard Kardelj, Democracia e Socialismo e o Programa de Estabilização Econômica a Longo Prazo, as decisões do 13º Congresso da LCY e partidos tomados na Conferência da LCY realizada em maio [1988] têm por objetivo a aprofundada elaboração desse modelo original de nossa revolução e a canalização das energias sociais organizadas da nossa sociedade para realizá-la. As últimas três ou quatro décadas assistiram a uma luta entre o socialismo de Estado e as forças dos assalariados da autogestão acerca do caráter das relações de produção e as linhas pelas quais elas deveriam mudar. A sociedade desenvolveu-se rapidamente, mas, hoje, todas as crises pós-portadas [post-ported] e erros anteriores nos alcançaram, e a sociedade passa por uma profunda crise estrutural. Em outras palavras, a crise atual é a culminação de todas as contradições sociais que têm sido construídas por todos esses anos. Nesse meio-tempo, uma confusão considerável foi criada na cabeça das pessoas; há muitas concepções ideológicas equivocadas e ilusões, e tentativas de encobrir a real situação.”[13]

O argumento apresentado por Mises e Hayek – de que a tentativa de constituir o socialismo, mesmo o socialismo descentralizado, democrático, de mercado, será contaminada por uma ineficiência grosseira, desperdício, disputas por poder e dominação, propaganda cegante e eventualmente falhará -, esse mesmo argumento se aplica com profunda força no sistema iugoslavo. Como prossegue Suvar:

“A séria crise atual de nossa sociedade é produto de todas as crises anteriores, e, por essa razão, é, de todas, a mais severa e disruptiva. Se havia nacionalismo no passado, o nacionalismo de hoje é a sua expressão consumada; se havia burocracia no passado, a burocracia hodierna é totalmente inflexível e improdutiva; se havia demagogia e tentativas de cegar os olhos das pessoas com falsa promessas de comunidades homogêneas, os exemplos que vemos hoje excedem vastamente qualquer coisa do passado. Com efeito, a posição dos estratos criativos da sociedade que têm sido empurrados ao plano de fundo e o status dos trabalhadores, camponeses e da vasta maioria da intelligentsia são o melhor indicador de quanto poder tem sido concentrado nas mãos de forças burocráticas e tecnocráticas nas últimas décadas.”

Teoria e Prática

Branko Horvat pode ter críticas similares a, senão mais fortes que, as de Stipe Suvar no que concerne à maneira com que o sistema iugoslavo de socialismo autogerido funcionou na prática, especialmente agora que a crise se tornou esgotadora [all-consuming]. Algo, de fato, “deu errado”. Ele argumentaria, eu suponho, que, na realidade, a economia iugoslava precisa de mais trocas de mercado, uma certa liberação de preços, menos tecnocratas e menor pressão do Partido no ambiente de trabalho, e mais controle empresarial nas mãos dos trabalhadores.

Isso é o que os iugoslavos estão desesperadamente intentando conquistar no meio de seu presente caos político e econômico. Eles vão mesmo ainda mais longe que isso: no último ano eles começaram a introduzir outras formas de propriedade – privada, cooperativa, conjunta [joint] e assim por diante – para competir com firmas autogeridas socialmente apropriadas. Eles estão tomando alguns dos maiores passos no Leste Europeu para promover empresas conjuntas [joint ventures] com o Ocidente, e preparam o quadro para um livre e unificado mercado de ações na Iugoslávia. Com a ideologia tradicional de autogestão socialista agora ilegítima nas mentes (e orçamentos) do típico cidadão iugoslavo, o potencial para uma reforma radical de mercado e o pluralismo político de fato existe.

Sem dúvidas, a Iugoslávia realmente falhou terrivelmente em corresponder ao projeto teórico do socialismo autogestionário.

Isso põe um dilema a ambos o teórico socialista e o estadista. De quem era a culpa? Se fosse um sistema realmente gerido pelos trabalhadores, então são estes os mais prováveis candidatos. Mas, é claro, a crise não é de responsabilidade operária. Eles são as vítimas. O ideólogo deve agora considerar se a teoria ainda pode ser reciclada, à luz de seu óbvio fracasso prático. Essa questão é refletida na declaração de Suvar na 17ª Sessão: “Já passou da hora para que resolvêssemos o dilema de se isso é o resultado de uma crise teórica e de um sistema imperfeito ou se é resultado de uma pobre implementação e de pessoal incompetente.” Isso, tenho certeza, será debatido por algum tempo entre os economistas, filósofos, partidários, trabalhadores e cidadãos iugoslavos.

Isso também traz um importante ponto no que toca à alegada “solução” de Horvat à análise de Hayek. Refutaria o projeto da Iugoslávia a afirmação de que o socialismo reproduz ambos o estatismo e a ineficiência, e se encerrará, inevitavelmente, no fracasso? Certamente os problemas fundamentais da experiência iugoslava eram previsíveis segundo a posição de Mises-Hayek. Mas e quanto ao modelo ideal em si?

Os economistas Austríacos garantiram que o socialismo “funcionaria” em teoria. Mas isso não é uma tão grande concessão, se uma concessão de fato. Afinal, nós podemos distinguir a boa teoria da má teoria. Dadas as assunções apropriadas, talvez qualquer coisa deveria funcionar em teoria. Não é nem intelectualmente impossível nem logicamente contraditório o desígnio de uma teoria abstrata que argumenta que, nomeadamente, um gato poderia atravessar nadando todo o Oceano Atlântico. A questão importante é o que provavelmente acontecerá quando o gato for jogado na água. Este é o teste. Uma teoria que não pode ser atrelada a uma prática de sucesso, embora, talvez, possa apelar para uma via puramente intelectual ou espiritual, seria classificada não só como uma má teoria. Ela seria primariamente perigosa e desumana.

Horvat não conseguiu responder a Hayek. Ele respondeu a críticas com má teoria, com um modelo abstrato sem nenhum potencial de realização através da ação de homens e mulheres vivos. No meio-tempo, a Iugoslávia, uma vez imaginada ser a epítome da autogestão socialista, se afogou no que é provavelmente a mais perturbadora crise sociopolítica que já chegou a enfrentar.

Notas

[1] Citado em Edvard Kardelj, Tito and Socialist Revolution of Yugoslavia (Belgrade: Socialist Thought and Practice, 1980), pp. 51-52.

[2] Ludwig von Mises, Socialism.’ An Economic and Sociological Analysis (Indianapolis: Liberty Classics, 1981), p. 101. Esse livro originalmente apareceu em alemão em 1922. A primeira afirmação de Mises foi publicada em 1920, no meio da desastrosa experiência da União Soviética com o planejamento central, e foi traduzido para o inglês em 1935 como “Economic Calculation in the Socialist Commonwealth,” in Friedrich A. Hayek (ed.), Collectivist Economic Planning (Clifton, N.J.: Augustus M. Kelley, 1975), cap. 3.

[3] Friedrich A. Hayek, The Road to Serfdom (Chicago: University of Chicago Press, 1944), p. 70. Hayek também criticou o chamado “socialismo de mercado” de Oskar Lange, uma alegada alternativa ao planejamento por comando, em seu “Socialist Calculation: The Competitive ‘Solution’” e “The Use of Knowledge in Society.” Esses dois ensaios estão disponíveis em Hayek, Individualism and Economic Order (Chicago: University of Chicago Press, 1948).

[4] Morris Bornstein (ed.), Comparative Economic Systems: Models and Cases (Homewood, Ill.: Richard D. Irwin, 1965), p. 78. Bornstein se referiu em particular a um artigo de J. Marcus Fleming e Viktor R. Sertic, “The Yugoslav Economic System”, que aparece no mesmo livro, pp. 230-49.

[5] Thomas A. Marschak, “Centralized Versus Decentralized Resource Allocation: The Yugoslav ‘Laboratory,’” Quarterly Journal of Economics, vol. 82, #4 (November 1968), p. 569.

[6] Branko Horvat, The Political Economy of Socialism: A Marxist Social Theory (Armonk, N.Y.: M. E. Sharpe, 1982), p. 577, n. 56.

[7] Ibid., p. 208.

[8] Ibid., p. 165.

[9] Veja Harold Lydall, Yugoslav Socialism: Theory and Practice (New York: Oxford University Press, 1986), pp. 115-22.

[10] Egon Neuberger e Estelle James, “The Yugoslav Self-Managed Enterprise: A Systematic Approach,” in Morris Bornstein (ed.), Plan and Market: Economic Reform in Eastern Europe (New Haven: Yale University Press, 1973), pp. 245-84.

[11] Veja, por exemplo, Eirik G. Furubotn e Svetozar Pejovich, “Property Rights and the Behavior of the Firm in a Socialist State: The Example of Yugoslavia,” Zeitschrift fur Nationaloekonomie, vol. 30 (1970); e Svetozar Pejovich, “The Banking System and the Investment Behavior of the Yugoslav Firm,” in Morris Bornstein (ed.), Plan and Market, pp. 285-311.

[12] Veja Stephen R. Sacks, Entry of New Competitors in Yugoslav Market Socialism (Berkeley: Institute of international Studies, 1973), ch. 1; e Jan S. Prybyla, Issues in Socialist Economic Modernization (New York: Praeger, 1980), pp. 103-104.

[13] Suvar, “Let Socialism Start Moving Forward Again to a Better Future,” Belgrade, October 17, 1988, reprinted in Socialist Thought and Practice, vol. 28, no. 7-10 (1988), pp. 3-50

Voltar para o blog

Deixe um comentário