“Cristóvão Colombo”, por Léon Bloy

“Cristóvão Colombo”, por Léon Bloy

Texto introdutório (Hélio Sena): O texto do saudoso escritor francês Léon Bloy nos leva a uma investigação espiritual da colonização. O trecho foi escrito em uma época em que crescia uma vasta movimentação intelectual anticolonialista, buscando protestar contra as demais "injustiças históricas" da época das grandes navegações. Tendo isso em destaque, Bloy lamenta como civilizações que estavam em um estágio avançado de desenvolvimento puderam ignorar, por todos esses séculos, uma metade do globo que foi destinada como "novo mundo", tendo seus povos inibidos de conhecer a palavra do evangelho e, portanto, sendo abandonados em uma longa ignorância sobre a ressurreição de Cristo por todo esse tempo. Mas, apesar dessas circunstâncias, Bloy também aponta a Providência na história das colonizações, lembrando-nos novamente que a descoberta das Américas foi um ato divino para expandir a fé cristã, uma missão espiritual na qual o escritor utiliza a figura de Cristóvão Colombo, a ser comparada com a de vários santos da Igreja Católica, que fizeram o máximo que puderam em sua devida dimensão para evangelizar e converter o maior número possível de gentios. Assim, Bloy enxerga que a tarefa de Colombo, na verdade, era uma tarefa apostólica (Marcos 16:15: "Ide e pregai o evangelho"), a qual Jesus encarregou a seus apóstolos de anunciar o Reino de Deus a toda criatura. Colombo, o jovem navegador e explorador, deu de presente à Santa Igreja Católica milhões de almas que já não podiam mais estar em estado de pobreza e miséria, ao desejarem fazer parte do plano de salvação na qual o Senhor nos exalta fazer. Algo que a Igreja nunca se esquecerá do que Colombo fez espiritualmente ao descobrir as Américas.

Cristóvão Colombo

Do livro “Le Révélateur du Globe” 

Uma coisa que a inteligência humana não saberia atingir com o minguado espanto de sua noção de justiça, é o mistério de toda uma raça humana excluída, durante mais de cinco mil anos, de toda a participação na vida espiritual dos povos do Velho Mundo. Este Simples fato atormenta o pensamento.

Que crime sem nome e sem medida teria podido exigir uma tão longa e tão espantosa expiação suportada, não por um único povo, mas por centenas de nações, em alguma das quais ainda perdura? Que digo eu? A maior parte delas não viram o alvorecer de luz alguma e a aurora da civilização ocidental foi para o grande número dessas infortunadas criaturas como o anúncio de um dilúvio de sangue e de fogo sobre as ondas do Atlântico. 

Este Hemisfério terrestre desconhecido — semelhante à misteriosa metade da lua perpetuamente inobservável — rolava no espaço, com o resto do mundo durante dois milhões de dias. Em vão o Candelabro da Revelação havia transitado de Oriente para Ocidente. Desde Abraão, se estendendo sob os pés do futuro Messias — como uma miraculosa via láctea de corações humanos — toda a sua estelar posteridade em vinte e dois séculos; e, de Jesus, o vencedor da morte, a Maomé, vencedor de Bizâncio, incontáveis gerações, obscuras ou luminosas, tinham temperado a terra com sangue, suor e lágrimas. 

Civilizações poderosas tinham expandido suas influências em todas as direções do espírito humano. Inteligências miraculosas haviam esgotado toda a conjectura. Os santos, os mártires, os apóstolos mesmo, a quem o Senhor mandará pregar em todas as nações, não cumpriram o seu mandato mais que sobre uma só metade do globo, deixando assim a outra metade numa invencível ignorância da Redenção. O mais audacioso, o mais infatigável dos doze, testemunha privilegiada da Ressurreição do Filho de Deus, — aquele, dizia Santa Brígida, que é o Tesouro de Deus e a luz do mundo, — Tomás Dídimo, deixando atrás de si Alexandre, o Grande, entre as outras poeiras de seu caminho, tinha avançado até às margens extremas do Oriente. E desde ali, pressentindo talvez, antes de morrer, o clamor longínquo e mudo dessas almas abandonadas, estenderá inutilmente seus braços de apóstolo acima do incomensurável Pacífico, barreira imóvel e decepcionante que zombava do seu desejo… 

Nada de divino nem de humano puderam prevalecer contra as trevas inexoráveis dessas raças inexplicavelmente castigadas. 

Um dia, enfim, o Senhor chamou um homem, como certa vez chamara João, para preparar seus caminhos, e o investiu, por uns tempos, com o seu poder, a fim de que ele pudesse decididamente por um termo a essa semelhança de eternidade de dolorosa com a qual Satã, chamado o macaco de Deus, havia tentado arremedá-lo em uma sacrílega contrafação de seu próprio reinado.

Esse homem, a quem Isaías parece ter em vista todas as vezes que fala nas ilhas longínquas e dos povos das extremidades da terra, é Cristóvão Colombo, “o mais doce dos homens”, como o Divino Espírito Santo diz de Moisés. O título de Grande Almirante, sob o qual ele foi tanto caluniado em vida, não tem mais significado para uma geração que desconhece a história. A multidão não sabe dele mais que de um nome misterioso, ou então, que ele tornou a Terra uma vez maior e que os homens o mataram de amargura na obscuridade. 

Quanto a sua providencial e única missão, que o situa entre a meia dúzia de homens excepcionalmente prodigiosos com os quais a sabedoria divina contou, quem então, pensaria nisso, nesse século inimigo da grandeza, se nem a Igreja o havia pensado, ela, tão cheia de memória e sempre tão grande? 

A Igreja Católica, que é a imperatriz do Oriente e do Ocidente, levando em seu nome a universalidade de seu direito, não esqueceu jamais, ninguém; recorda, porém, mais particularmente, mais profundamente e com uma dileção mais calorosa aqueles seus filhos que a tem prolongado e que ela, por sua vez, enaltece, honrando-os sob o vocábulo doze vezes augusto de Apóstolos. 

Descobrindo o novo mundo, Cristóvão Colombo era como se dissesse para a Igreja: “Mãe bem amada, eu vos dou, em nome de Jesus Cristo, a metade da terra. Vos dou milhões de almas que eu gerei para a Salvação e que são as flores infinitamente dolorosas de minhas entranhas espirituais. Eu as confio para sempre a fim de que sejam novamente colocadas na verdade de onde tombaram, como os anjos infiéis, há tantos séculos. São os enjeitados do Amor divino de que sou o Mensageiro e que simbolizo-me meu próprio nome”. 

Era como se ele ainda dissesse ao espírito humano: “Duplico a extensão da tua herança e engrandeço incrivelmente o campo já tão vasto de tuas investigações. E por mim que se vai revelar um sentido inteiramente novo: o sentido das grandes coisas e do infinito. O conhecimento perfeito do globo terrestre será o menor fruto de minha descoberta. Terei dado o impulso às minhas audaciosas empresas científicas nos extraordinários séculos que virão. O livro da natureza, hermeticamente fechado até hoje, está agora aberto e aberto por mim, o Revelador da criação que contudo seria desdenhado e desconhecido e que irei extinguir-me como um facho vulgar conduzido contra o sopro da tempestade. Prevejo que os homens abusarão desse novo dom de Deus, como tem abusado de todos os outros. Mas sei também que é necessário que a sua vontade se cumpra para que o seu reino chegue ao fim sobre a terra predestinada de que eu fui encarregado de ampliar e arredondar, como uma esfera imperial, para o futuro domínio de Jesus Cristo.” 

Cristóvão Colombo foi um varão de desejos, à maneira de Daniel. Ora, o desejo atrai o desejo, como o abismo atrai outro abismo, “pela voz dos caracteres de Deus” que são as torrentes de lágrimas da prece e do amor. Um ano antes da Descoberta, nasceu aquele que tanto devia fazer pelo progresso da igreja: Santo Inácio de Loyola e, no mês em que o embaixador de Deus é chamado por seu mestre, dezessete dias antes de sua morte, nasceu o apóstolo encarregado de cumprir o voto de evangelizar as nações idólatras: São Francisco Xavier. Estas coincidências não têm nada de fortuito. Elas são, ao contrário, infinitamente calculadas e infinitamente sábias, isto é, providências, como todas as coisas neste mundo. Quando um homem é suscitado para a realização de uma parte deste grandioso plano divino que se chama a História, basta-lhe estender as mãos como um cego para encontrar os seus instrumentos. Mas se este homem é do porte de Cristóvão Colombo, nem lhe é necessário mesmo fazer um gesto. É um centro de gravitação para a multidão de almas que correspondem a seu destino e que estão misteriosamente em sua órbita como uma gloriosa constelação de satélites espirituais!

Acabo de escrever a palavra “desejo” que enche todo o Antigo Testamento como um prodigioso suspiro. Teria podido comparar o desejo de Cristóvão Colombo ao deste Espírito que nos é mostrado no Evangelho sob a forma de uma pomba e que “súplica por nós — Diz São Paulo — com gemidos inenarráveis”. Agora, quer dizer, ou bem, que conjecturar do desejo de todo um mundo oprimido e brutalizado pelo mais satânico despotismo, mas em cujo seio, a alma humana “inexterminável” e naturalmente anelante jorrava, ainda vacilando, algumas centelhas? 

Está escrito que o Senhor exalta o desejo dos povos, e aqueles eram tão pobres que jamais se conheceram mais lamentáveis. Por mais negras e profundas fossem as suas trevas é impossível que não as erguesse do fundo do coração desses miseráveis, ao menos um arrepio de desejo e de esperança. Apesar de tudo, não eram eles os filhos de Japhet, e por consequência solidários na promessa feita ao gênero humano? Ainda que sua separação do resto da congregação Babélica remontasse a tempos extremamente antigos, dever-se-ia conservar entre eles um como indeterminavel fio de luz de uma tenuidade e de uma palidez infinita; e Deus, que conhece os pobres corações que ele criou, bens sabe que isso era bastante para que esses abandonados desejassem! Mas, o que desejavam eles? Não o sabiam de modo algum. Uma espécie de tradição antiga falava apenas de homens extraordinários que deveriam vir das bandas do Oriente e que modificariam todas as coisas em sua pátria. Esta espera muda e surda dava-lhes ainda mais pavor do que alegria. A isso reduzia-se, para eles, o Veniet Desideratus do profeta Ageu.

E agora… perguntamos-nós, qual poderia ser o título verdadeiro e o verdadeiro nome do homem incomparável que a Igreja quer honrar, o vocábulo litúrgico de sua verdadeira glória? Parece-me não haver outra que a palavra Pai e eu me arrepio escrevendo este nome divino. Imediatamente depois do pescador galileu que se chama o Pai comum dos fiéis, que homem feito de barro teve jamais tantos filhos e uma tão prodigiosa dilatação do sentimento paternal?

Cristóvão Colombo foi verdadeiramente o pai dos povos sem nome, indo pessoalmente procurar, como um muito diligente Pasteur, no fundo deste Ocidente Temível que a ignorância de seu século supunha tenebrosamente e barrado pelo monstruoso formigamento do abismo. 

Durante os terríveis dezoito anos de tentativas que precederam suas primeiras viagens ás Índias, Cristóvão Colombo levou em sua alma o enorme clamor de uma metade do gênero humano de que só ele sabia a existência e queria dá-la a Jesus Cristo. Para ser mais profundamente o pai dos infortunados tomou o hábito de São Francisco e o vestiu ostensivamente até a morte. Enfim, quando esgotou tudo o que o Pai dos pais lhe havia deixado de borra no fundo de seu cálice de agonia, quando viu o tráfico e o massacre daqueles que ele havia tirado de suas entranhas — achando seu destino subitamente realizado — esta incomparável semelhança de Deus mergulhou na morte, sem maior rumor que uma partícula que tombasse do alto de uma ruína no deserto…

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