"É a liberdade nada mais do que um valor instrumental?", de Frank Van Dun

"É a liberdade nada mais do que um valor instrumental?", de Frank Van Dun

Nota Introdutória,

Frank van Dun se dispõe a entrar em um profundo e rico debate, a saber, sobre a possibilidade de valores absolutos e apoditicos. Neste ensaio os principais autores sob ataque são: Hayek e Mises. Ele partilha de uma opinião um tanto quando controversa, Mises não era um filósofo, e a filosofia dos economistas austríacos depois dele está impregnada por certos vícios que tangem o relativismo nos valores -- incorporada pela neutralidade axiológica. E a pergunta que fica é: será possível um tipo de agir que não seja aquele meramente instrumental? Um tipo de agir em que os falantes se colocam em posição de dar e pedir por razões, em busca de um entendimento, e não somente agir segundo um cálculo estratégico. Também é abordado neste escrito o argumento único de Anselmo, como uma suposta prova da existência de verdades absolutas, assim como também de valores absolutos, e enfim conclui: a liberdade é não somente mais do que mero valor instrumental, mas sim é um valor absoluto.

 

AEME, Maio 12-13, 2023 (Université Catholique de l’Ouest)

 

É a liberdade nada mais do que um valor instrumental?

Frank van Dun (Rascunho)

 

Tabela de Conteúdos

Introdução

Mises, Hayek e David Hume

Dualismo metodológico

A Natureza e o Mundo

Homem e Besta; Racionalismo vs Irracionalismo

A praxiologia de Mises: livre de valor, utilitarismo formal

Rothbard: a busca do praxiologista pela lei objetiva

O Princípio Fundamental do Direito

Ética argumentativa

Consciência e conscienciosidade

A chave para o pensamento cônscio

Descobrindo valores absolutos

O argumento concludente

Notas

 

As notas estão no fim do texto, elas não estão incluídas na conferência.

 

 

Introdução

 

Deixe-me começar com uma confissão: eu não sou um economista. Estou aqui como um filósofo do direito, muitas pessoas ficam facilmente aborrecidas com filosofia. Isso é compreensível: Filosofia é, sobretudo, elaborar o óbvio. Entretanto, o filósofo tem uma desculpa decente, a saber, quando as pessoas, especialmente os intelectuais, vão em frente, então o óbvio frequentemente é a primeira coisa que eles perdem de vista. E esquecer o óbvio traz um sério risco de consequências terríveis. Agora, eu nem sonharia em me chamar de economista, mas tenho lido muito, na verdade praticamente tudo, dos livros e coleções de artigos de Mises, Hayek, Rothbard e uma boa dose de escritos de Menger, Böhm-Bawerk, Wieser, Kirzner e outros “austríacos”. Penso que eu estou no direito de dizer que tenho uma boa ideia do contexto geral dos papers e discussões apresentadas nessa conferência.

 

Meu tema é a questão “é a liberdade nada mais do que um valor instrumental?”. Poucos economistas austríacos sequer a mencionam, mas pelo menos Mises e Hayek fizeram um ponto declarando a liberdade nada mais do que um valor instrumental. Podemos parafrasear a posição dele dessa maneira: “qualquer que seja seu objetivo, você precisa de liberdade para persegui-lo. Liberdade é um meio, ainda que um meio necessário. Consequentemente, quem quer que você seja, quaisquer sejam seus objetivos, você vai querer liberdade. A liberdade é um valor quase universal, mas em todo caso um valor meramente instrumental”. O problema é óbvio: Liberdade pode ser um meio, mas não é só isso; então os humanos constantemente enfrentarão a escolha de ceder parte ou toda a sua liberdade por mais de outro meio -- e vice-versa. De todo modo, sob o risco de fazer Mises se revirar em seu túmulo, argumentarei que a liberdade não é um valor meramente instrumental, mas absoluto.

 

Mises, Hayek e David Hume

 

Mises e Hayek, cada um deles de sua própria maneira, foram utilitaristas, embora numa variedade humeana mitigada, em vez de em uma variedade benthamista pura. David Hume, o homem que acordou Kant de seu “sono metafísico”, foi a estrela guia intelectual deles.

Hume pontuou infamemente que não se pode derivar logicamente um “deve” de “é”. Ele não pontuou que não se pode também derivar um “é” de um “deve”. A maioria de seus seguidores o tomam como tendo dito que somente declarações descritivas [is-statements] podem ser verdadeiras ou falsas, e que declarações prescritivas [ought-statements] não são nem verdadeiras nem falsas, ao menos que se possa de algum modo reduzi-los a declarações descritivas -- que é o que Bentham fingiu ter sido bem-sucedido em fazê-lo. “Dever”, dizem os seguidores de Hume, podem expressar sentimentos ou impulsos, preferências ou desejos, mas isso não expressa opiniões verificáveis sobre o que é ou não é o caso “lá fora”, na Natureza, no universo de coisas materiais e processos físicos. Entretanto, isso nos deixa com um problema: Como poderíamos ser capazes de argumentar quais declarações descritivas devemos considerar verdadeiras ou mais provavelmente verdadeiras que outra? Como argumentaríamos que devemos preferir verdade à falsidade? A resposta question-begging de Hume foi: O método das ciências naturais (física newtoniana) -- é a primeira e única maneira de decidir o que é verdadeiro ou não. É claro, Hume não era um físico e não era um matemático. Ele nem sequer era um filósofo da ciência ou da matemática.[1]

Não há lugar para valores absolutos nessa visão de mundo Humeana ingênua, supostamente científica, que Mises tomou seriamente.[2] Em seu Theory and History, Mises escreve:

 

[Atos mentais que determinam o conteúdo de uma escolha de fins últimos] são chamados juízos de valor. [Atos mentais que determinam o conteúdo de uma escolha de meios a fins últimos] são decisões técnicas derivadas de proposições factuais. [...] Escolher meios é um problema técnico [...] Escolher fins últimos é um caso individual, subjetivo, pessoal. Escolher meios é uma questão de razão; escolher fins últimos uma questão da alma e da vontade. (T&H, p.12)

 

Algumas páginas depois, ele declara que proposições de existência e não-existência são descritivas, de tal modo que, com respeito a elas,

questões de verdade e falsidade são significantes. Elas não devem ser confundidas com juízos de valor. (T&H, p.19)

Aparentemente, onde juízos de valor são considerados, questões de verdade e falsidade não são significantes. Mises conclui:

     Não há tal coisa como uma ciência normativa, uma ciência do que deve ser. (T&H, p.55)

Dualismo metodológico

Mises sai do cânon humeano quando rejeitou a ideia de que toda ciência genuína é uma aplicação dos métodos da física. Hume assumiu que o corpo governa a mente -- “A razão é e deve ser escrava das paixões”. Isso foi uma negação escancarada da tradição clássica -- e.g., o “Nemo liber est, qui corpori servit”[3] de Sêneca. Mises estava inclinado a concordar com Hume, mas ele não viu provas da suposição. Ele, consequentemente, insistiu no dualismo metodológico. Ele fez da ciência da ação humana (praxiologia) seu campo particular de investigação, e a considerou uma ciência genuína -- em outras palavras, “uma ciência livre de valor”, uma ciência que não pressupõe ou produz juízos de valor. Entretanto, a praxiologia difere significativamente das ciências da Natureza. Supõe-se que cientistas naturais sabem o que eles estão fazendo e por que eles fazem isso, mas eles estudam coisas das quais não se pode supor saber o que eles estão fazendo e por quê. Em contraste, um praxiologista, que também deve saber o que ele faz e por que, estuda coisas (agentes humanos) que são bem parecias com ele. Não tem razão para pensar que eles são incapazes de conhecer o que eles fazem ou por que eles fazem.

 

No entanto, Mises protegeu suas apostas. Seu dualismo era apenas metodológico. Ele não queria ser entendido como tendo dito que pessoas humanas nunca serão expostas como sendo nada mais que objetos de ciência física. Tão logo sabemos no presente, pessoas humanas são diferentes de objetos físicos -- isso era o mais longe que Mises ia. Por enquanto, nossa ignorância do conhecimento físico futuro nos deixa sem escolha a não ser desenvolver uma metodologia separada para o estudo da ação humana

Um filósofo certamente notaria que, a menos que o postulado básico da física seja falso e os objetos físicos, como tais, saibam o que estão fazendo e por que, não se pode nem sequer pensar que os físicos cheguem ao ponto em que saibam que o homem nada mais é do que um objeto físico. Isso é indisputável, pelo menos enquanto os físicos pensarem a si mesmos como seres humanos, ao invés de, digamos, como Demônios de Laplace ou deuses.

Mas Mises não era um filósofo. Em linha com o clima predominante da opinião acadêmica de seus dias (neokantismo e positivismo lógico), ele queria definir uma “teoria pura da economia”, tal como seu contemporâneo e compatriota Hans Kelsen queria uma “teoria pura do direito”. Em ambos os casos, uma teoria pura tem de ser não apenas livre de valores mas também livre de declarações sobre causação física. Agora, em minha opinião, a “teoria pura da ciência legal” de Kelsen não era sobre direito no final das contas, era sobre sistemas legais, i.e., sistemas de declarações prescritivas, comandos, “regras” ou “normas”.

A Natureza e o Mundo

 

Físicos estudam a ordem da Natureza para descobrir seus princípios de ordem. O estudo do direito, para mim, era o estudo da ordem do Mundo para descobrir seus princípios de ordem. A diferença entre a Natureza e o Mundo é que na Natureza nada é capaz de cometer erros -- portanto, nossas teorias da Natureza podem estar erradas, mas a Natureza nunca está. Em contraste, no Mundo, cometer erros é parte do percurso -- portanto, teorias do Mundo podem estar erradas, mas não devemos assumir que nunca haverá algo errado com o Mundo ele mesmo.

Meu interesse em Mises foi despertado por sua confiante declaração de que sua teoria da ação humana, sua praxiologia, estava apoditicamente certa. Se isso for verdadeiro, então deve ser possível desenvolver uma praxiologia do direito apoditicamente verdadeira. Descobriu-se, no entanto, que isso era impossível sem romper os limites da metodologia de Mises. Seu conceito de agente humano, que embasava toda a sua praxiologia econômica, era muito limitada para abranger o tipo de ação que se precisaria para descobrir a ordem ou a lei do Mundo. Enquanto ele insistiu que a economia era apenas uma ramificação da praxiologia, ele nunca explicou o que um conceito praxiológico verdadeiramente geral de ação humana deve ser. Ademais -- como vimos -- ele excluiu categoricamente a possibilidade de qualquer ciência normativa, incluindo uma praxiologia do direito. Assim, no que diz respeito ao direito, Mises não era particularmente útil. Hayek era melhor: pelo menos ele providenciou uma teoria sensível do direito, embora apenas do direito consuetudinário. Mas, como Tertuliano escreveu, “o costume sem verdade é tão somente um erro envelhecido”.

Homem e Besta; Racionalismo vs Irracionalismo

Mises pensava que humanos poderiam aprender praxiologia e, na extensão de seu conhecimento teorético da praxiologia, eventualmente seriam capazes de modelar o melhor de todos os mundos possíveis, tão distante quanto a condição do Mundo depende de ações humanas. Por isso, ele foi chamado de “um racionalista”. Em contraste, Hayek pensava que o conhecimento teorético desempenha, na melhor das hipóteses, um papel marginal e que a emergência da ordem no mundo humano depende primariamente sob fatores não-racionais, assim como acontece no mundo dos animais e plantas. Por isso, Hayek foi chamado de “um irracionalista”, pelo menos por alguns Misesianos para quem a analogia do Homem e da Besta foi um anátema metodológico. Nas palavras de Mises:

     Para animais a geração de todo novo membro de espécies significa o aparecimento de um novo rival na luta pela vida (T&H, p.56)

ao passo que

 

  Somente o homem tem o poder de escapar em alguma medida dessa regra [luta Darwiniana pela vida] pela cooperação intencional” (T&H, p.40)

 

A última declaração repetiu uma declaração que ele havia feito muito antes em seu Socialism[4]:

 

  Para o Liberalismo, os conceitos de homem e homem social são o mesmo. A sociedade acolhe como membros todos aqueles que podem ver o benefício da paz e cooperação social”

 

Entretanto, em Theory and History, ele significativamente qualificou sua defesa da singularidade do homem - e, por implicação, sua insistência a respeito do dualismo metodológico:

 

  Contanto que haja cooperação social e a população não tenha aumentado além do tamanho ideal, a competição biológica é suspensa. Portanto, é inadequado referir-se a animais e plantas ao lidar com os problemas sociais do homem. (T&H, p.40)

 

Aparentemente, diferente de humanos, animais e plantas sempre viveram em um mundo superpopuloso e consideravam sua prole como “rivais”. Claramente, biologia não era o forte de Mises. No tempo que ele escreveu isso, “superpopulação” estava prestes a se tornar um grande meme no discurso público e até acadêmico. Na linguagem dos economistas acadêmicos, “Malthus estava de volta!” — A economia voltou a ser a “ciência sombria”.

 

No início dos anos 1970, provavelmente a grande maioria dos ocidentais estava madura para o que veio a ser chamado de “socialismo melancia” – verde por fora, vermelho por dentro. Logo não seria mais uma questão de desacelerar a taxa de crescimento populacional, mas de reduzir o tamanho absoluto da população humana do planeta. Surgiu um novo progressismo que via o ser humano — significando “outras pessoas” — como o inimigo público número 1, um câncer no ecossistema do planeta. No que diz respeito à ética progressista, o aborto e a eutanásia tornaram-se direitos humanos fundamentais e o sexo estéril um dever quase religioso. Por volta de 1900, a eugenia e até as guerras genocidas capturaram a imaginação como meios “cientificamente” justificados para melhorar a qualidade da raça humana. Até o ano de 2010, eles foram justificados como meio de salvar o planeta, para se livrar de todas as pessoas supérfluas. De acordo com Paul Ehrlich, autor de The Population Bomb (1968), o tamanho ideal da população foi superado logo após o ano de 1900.

Isso levanta uma questão que é relevante ao tema dessa conferência, Socialism and Liberty: Se Mises compartilhava a opinião de Ehrlich, teria mobilizado sua praxiologia em serviço do socialismo? Ele teria saído furioso de uma reunião com Hayek, Milton Friedman, Wilhelm Röpke, Frank Knight e outros (como ele fez na conferência de 1947 onde a Mont Pèlerin Society foi fundada), mas agora denunciando todos eles como “um bando de liberais” ao invés de “um bando de socialistas”? Talvez – até porque ele queria que sua praxeologia como “livre de valor”.

 

A praxiologia de Mises: livre de valor, utilitarismo formal

 

Mises também queria sua economia sendo “o produto mais refinado da filosofia do utilitarismo” (T&H, p.55). Para fazer da praxiologia uma ciência livre de valor, ele recorreu ao formalismo extremo: o Homem busca fins utilizando-se de meios -- não é de interesse da praxiologia que agentes humanos acreditem ser meios para seus fins, ou o que eles tomam como sendo seus objetivos ou fins. Nem é do interesse do praxiologista prescrever que fins os agentes humanos devem buscar, que meios eles devem usar ao buscar fins particulares, ou como eles devem usar os meios à sua disposição. A praxiologia científica deve ser uma lógica da ação puramente formal. Para fazer da praxiologia econômica o produto mais refinado do utilitarismo, Mises recorreu a um truque de mágica:

 

     No sentido estrito do termo, o homem agente mira apenas um fim último, a realização de um estado de coisas que lhe convém melhor do que os alternativos. (T&H, p.12)

 

Seguindo Bentham, ele chamou esse fim último de “felicidade”. No discurso ordinário, ‘felicidade’ significa “sentir-se afortunado”, mas Mises a definiu como significando “fim último”. Para ele, tudo o mais que se poderia associar ordinariamente com felicidade era uma conotação irrelevante, uma associação meramente psicológica de ideias de nenhuma importância lógica. Foi um truque de mágica, porque obscurece a substituição falaciosa de “o agente homem visa apenas um fim último” por “todo agente humano visa a obtenção de um estado de coisas que lhe convém melhor do que qualquer outro alternativo”. A falácia é o non-sequitur “Todo agente busca um fim; portanto há um fim que todos os agentes perseguem”, que sustenta o mantra utilitário “O desejável é o desejado”. A falácia é onipresente nos escritos de Mises. Ele nem sempre distingue cuidadosamente entre os significados de uma palavra quando ela é usada como nome incontável (‘Homem’) e seu significado como um nome contável (‘esse ou aquele homem, algum ou todo homem’) -- outro exemplos: ‘sociedade’, ‘lei’, ‘cooperação’, ‘razão” e muitas outras palavras.

 

De qualquer jeito, de “Felicidade é o fim último” Mises inferiu, novamente falacioso, que “cooperação social” é o meio universal para alcançar a felicidade. Ele não especifica como a cooperação social difere da cooperação em geral, ou de outras formas de cooperação. Ademais, ele declara apoditicamente,

     Prevalece entre os membros da sociedade divergência quanto ao melhor método para sua organização. Mas esta é uma divergência relativa aos meios, não aos fins últimos. Os problemas envolvidos podem ser discutidos sem qualquer referência a juízos de valor. (T&H, p.52)

Em outras palavras, o problema de organizar a sociedade é uma questão de “decisões técnicas derivadas de proposições factuais”. Ousamos dizer que, para Mises, sociedade é e deve ser uma tecnocracia?[5]

 

A praxiologia econômica formal de Mises dependia fortemente da distinção entre oferta e demanda. É claro que, para um economista, “oferta” se refere a ofertas de venda e “demanda” a ofertas de compra. Consequentemente, “consumo” não se refere ao uso físico das coisas; refere-se à compra de bens prontos para consumo; similarmente, “produção” refere-se a tornar as coisas prontas para serem vendidas como bens de consumo. Crianças, idosos senis, pessoas gravemente doentes ou deficientes, presas ou internadas, gado, animais de estimação e roedores e outras pragas, incêndios, desastres naturais, até mesmo desgaste regular podem consumir fisicamente bens, mas eles não são consumidores no sentido do economista da palavra "consumidor" — eles não pagam de seus próprios bolsos para seu consumo. Animais, árvores, plantas, rios e córregos produzem consumíveis, mas eles não esperam ser pagos — eles não são produtores no sentido do economista da palavra "produção". Muitos produtores (“trabalhadores”, “empregados”, “subcontratados”) esperam ser pagos por outros produtores, não — pelo menos, não diretamente — pelos consumidores. Eles ganham renda agradando seus chefes, não os consumidores. Um dia, talvez, Guido Hülsmann escreverá um livro sobre os efeitos culturais da mentalidade do empregado em uma sociedade de empregados onde os empregadores mais importantes procuram agradar seus acionistas (os equivalentes modernos dos proprietários ausentes de tempos anteriores). Temos uma economia, no sentido que o economista dá a palavra, apenas onde há oferta econômica e demanda econômica, onde há “produtores” e “consumidores”. A economia de Mises é uma análise formal dessa definição de “sistema econômico”. Não está interessado em quantos produtores ou consumidores existem, ou quem eles são. Ele nos diz que uma oferta competitiva é benéfica para os consumidores econômicos (pagantes) e que a demanda competitiva é benéfica para os produtores (que esperam ser pagos). A análise implica que, em um sistema econômico com apenas um consumidor (“o imperador” ou “o proprietário de escravos”), o único consumidor se beneficia de forçar um regime de oferta competitiva em seus servos — deixe os escravos competirem pelo favor de seu mestre. Implica também que, num sistema com apenas um produtor, o produtor beneficia da imposição de um regime de demanda concorrencial aos seus clientes — deixando que os clientes concorram pelo favor do produtor.

O ponto, aqui, é que a análise econômica não implica que nem mesmo que todo ser humano adulto é um consumidor pagante ou um produtor que produz para ser pago. Uma ilha onde, digamos, dez famílias vivem, cada uma com cerca de dez mil escravos, pode ser um livre mercado, se o governo da ilha usar seu aparato de coerção e compulsão para manter os chefes das dez famílias segundo os princípios Misesianos do mercado desimpedido.[6] A análise não implica nada sobre a fonte da “renda” de um indivíduo, seja a venda de seus próprios produtos ou um salário obtido trabalhando para um produtor. Em qualquer caso, a fonte de renda é a produção, não o consumo. Mises gostava de dizer que em “um livre mercado”, os consumidores, não os “capitães da indústria”, é que determinam o que será produzido. (Pense no que isso significa em uma economia com apenas um “consumidor”). No entanto, uma economia é orientada pelo consumo somente se os consumidores forem soberanos, ou seja, puderem gastar livremente sua renda e obter sua renda sem ter de conformar seu consumo às exigências ou incentivos impostos por seus empregadores ou outros interesses organizados. Certamente, a propaganda dos produtores desempenha um papel significativo. William Penn escreveu: “Deixe as pessoas pensarem que governam e elas serão governadas” e “Deixe as pessoas pensarem que elas podem comprar o que elas querem e elas deixarão você dizer a elas o que elas querem”.

Nem Mises nem Hayek tinham qualquer uso para valores absolutos. Ao contrário do século XVIII e até mesmo de muitos liberais “clássicos” do século XIX, eles não mais subscreviam a visão de que o liberalismo responde a uma verdadeira filosofia da vida humana. Como já foi mencionado, Mises e Hayek eram utilitaristas subjetivistas e relativistas descarados. “O fim (seja ele qual for) justifica os meios (sejam eles quais forem).” O desejável é o desejado. A ideia clássica de que apenas fins justificáveis podem justificar os meios e a maneira de usá-los havia caído para fora do quadro — embora fosse milênios mais antiga que o liberalismo clássico.

 

Rothbard: a busca do praxiologista pela lei objetiva

 

Para seu crédito, Rothbard, um tanto tardiamente, percebeu que o neoliberalismo de Hayek e especialmente o de Mises não era um suporte intelectual tão forte para seu próprio projeto libertário como ele esperava que fosse. Ele observou com razão que o argumento de Mises contra a economia socialista planejada apenas assumia que os planejadores pretendiam maximizar o bem-estar da população, quando na verdade eles poderiam ter outras intenções (por exemplo, satisfazer sua própria sede de poder e riqueza, mudar ou domar a natureza humana, o que quer que fosse). Em 1982, Rothbard publicou The Ethics of Liberty. Ele se voltou para as teorias medievais, especialmente escolásticas tardias e modernas da Lei Moral Natural, na esperança de encontrar bases sólidas para sua posição libertária. Ele conseguiu identificar alguns antecedentes veneráveis, mas isso obviamente não foi suficiente para justificar sua própria teoria. Afinal, as teorias da Lei Moral Natural não eram mais consideradas respeitáveis nos círculos acadêmicos. Tais teorias tinham sido baseadas na fé no Deus cristão — uma crença que, entretanto, tinha sido descartada como uma mera "opinião privada". Mesmo entre os cristãos, a ideia de uma lei natural tinha sido contestada, especialmente pelos primeiros protestantes, que insistiam em aderir ao texto da Bíblia e eram hostis à sugestão de que a razão humana é capaz de participar da Razão Divina. A razão humana, de acordo com Lutero, era “a prostituta do Diabo” — “O homem não pode distinguir entre a vontade de Deus e a vontade do Diabo”.

 

O Princípio Fundamental do Direito

 

No mesmo ano em que Rothbard publicou The Ethics of Liberty, apresentei e defendi com sucesso minha thèse d 'agrégation de l' enseignement supérieur (alemão: Habilitationsschrift). Seu título: O Princípio Fundamental do Direito.[7]

O ponto de partida da minha tese foi a observação de que a maioria das pessoas na maioria das vezes tem uma certa quantidade de controle sobre algumas partes do seu corpo (um número de músculos, membros, língua, cordas vocais) que lhes permitem fazer as coisas à vontade — certas "ações básicas" que se pode executar sem primeiro ter de fazer outra coisa e sem ser obrigado a fazê-las por alguma força externa ou comando. Uma criança aprende rapidamente a diferença entre levantar um dedo e ter um de seus dedos puxado para cima por outra pessoa ou experimentar um espasmo incontrolável em suas mãos. Assistir a um pianista virtuoso, um mágico ou um batedor de carteiras, até mesmo os adultos ficam surpresos com o que a capacidade de realizar ações básicas pode alcançar, quando as pessoas definem sua mente para desenvolvê-la e treiná-la. Que as pessoas têm “por natureza” uma medida de controle sobre seu corpo me pareceu uma base tão sólida para um discurso sobre o direito quanto eu poderia imaginar. Pela carência de um termo melhor, me refiro a isso como “o poder da autodeterminação”. O problema, é claro, era passar desse fato incontestável para os princípios do direito, que todos entendem como princípios que afirmam que algo deve ser ou deveria ser feito. Em outras palavras, como passamos do poder ao direito de autodeterminação — ou, como Rothbard colocou, “propriedade de si mesmo [self-ownership]” — e, a partir daí, ao direito de possuir coisas fora do corpo?

 

Ética argumentativa

 

Em minha tese, apliquei uma ideia que havia captado em uma existência anterior como pesquisador no campo dos fundamentos da lógica[8], a saber, a ideia de que a validade objetiva é, e só pode ser estabelecida, por meio de um diálogo, onde cada falante tenta pensar junto com o outro, enquanto faz e responde perguntas com a melhor de sua capacidade. Para que o diálogo seja possível, os falantes devem ser capazes e autorizados a falar livremente e como iguais — devem presumir-se que têm o poder efetivo e a oportunidade efetiva de falar livremente. Essa ideia, rebatizada de “ética argumentativa” em vez de “ética do diálogo”, ganhou asas em certos círculos austro-libertários, quando Hans-Hermann Hoppe introduziu algo semelhante a Rothbard, pois parecia oferecer uma base logicamente irrefutável para o axioma fundamental de Rothbard de que toda pessoa é proprietária de si mesma e deve ser respeitada como tal. Em outras palavras, parecia validar a doutrina de direitos absolutos de Rothbard, implicações da “propriedade de si mesmo” absoluta de cada indivíduo, a pedra angular de sua ética libertária e a base de sua “filosofia política” libertária, i.e., seu princípio de não-agressão, bem como outras proposições caracteristicamente Rothbardianas, por exemplo, “todos direitos são direitos de propriedade” e “Não há bens públicos”.

No entanto, a intervenção de Hoppe não foi bem recebida por todos os “austríacos”, incluindo a maioria dos Misesianos, especialmente aqueles que persistiram na tentativa de reduzir a ética a “decisões técnicas baseadas em proposições factuais”.[9] Por que a oposição? A ética argumentativa pressupõe um conceito de ação que não se encaixa no paradigma subjetivista e relativista que os anti-Hoppeanos prezavam acima de tudo: “Todos os valores são subjetivos”. Como eles vêem as coisas, falar de valores objetivos e absolutos é abrir a porta para a tirania e a escravidão. No fundo de suas mentes, pode ter havido um motivo religioso: para eles, “valores absolutos” denotavam o obscurantismo medieval dos católicos, sua insistência em algo que eles chamavam de “consciência humana”, da qual a doutrina de Lutero da “consciência privada” supostamente havia libertado o homem moderno. (Não importa que a “consciência privada” seja uma contradictio in terminis). A doutrina de Lutero se resumia a “Faça o que quiser, mas tenha fé na Bíblia” e, eventualmente, através do “siga o fluxo de seus semelhantes” de Hume e Hayek e do “critique livremente, mas obedeça” de Kant, ao “Pense o que quiser, mas seja um cooperador social” de Mises — em outras palavras, “A sociedade (ou seja, a cooperação social) está sempre certa”. Embora simpatizante da diligência de Hoppe, achei que exagerou o caso dele. Para que a argumentação seja possível, é realmente necessário que os participantes tenham o poder natural de falar o que pensam. No entanto, estabelecer o poder dos participantes não prova que o uso desse poder equivale a um direito justificável, um direito que deva ser respeitado. A prova de um “dever” só pode ser entregue na argumentação e através dela — um “dever” não pode ser observado, é sola mente perceptibile (perceptível apenas pela mente). Para que a argumentação seja possível, também é necessário ​presumir ​que os falantes participantes falem livremente, em seu próprio nome, por eles mesmos, comprometendo-se apenas consigo mesmos; que eles falem seriamente, honestamente, não tenham agenda oculta, não visem enganar ou intimidar com ameaças ou promessas — em suma, deve-se presumir inocência deles, falantes bona fide. Precisamente essas presunções tornam possível falar de ética argumentativa. O ponto importante, no entanto, é que essas são presunções. Isso significa que elas são revogáveis. Pode acontecer no curso de uma argumentação que um falante não esteja no controle de si mesmo, não é honesto, um charlatão mercenário, manipulador, vigarista ou embusteiro. Nesses casos, a presunção de que ele está exercendo legitimamente seu auto-controle deve ser abandonada. Então, os direitos presumidos que lhe foram concedidos quando ele parecia disposto a participar de uma argumentação se mostraram infundados. No entanto, a vontade de argumentar conscientemente é sempre um direito respeitável.

 

Então, a questão é: como a argumentação pode validar qualquer coisa? Como pode a argumentação discriminar entre um “é” que deveria ser e um “é” que simplesmente é? Como pode fazê-lo, quando, de acordo com os preconceitos metodológicos misesianos, a argumentação nada mais é do que uma subespécie de negociação?

Argumentação e negociação são ambos únicos para os seres humanos - ambos envolvem fala e lógica. Nenhum outro animal ou objeto natural exibe algo que se assemelhe à argumentação ou negociação humana. No entanto, enquanto fazer ameaças e promessas são a tarifa comum das negociações; elas não têm lugar nas discussões. A singularidade da argumentação é que ela por si só pressupõe senso comum ou conhecimento comum no sentido específico de conscientia, consciência.

 

Consciência e conscienciosidade

 

Com efeito, a consciência é a conditio sine qua non da argumentação. Argumentar é apelar para o senso comum do outro, para sua consciência. Como tal, do ponto de vista lógico, a argumentação é diferente de fazer um discurso de vendas, que apela aos interesses ou preferências pessoais de outra pessoa, aos seus preconceitos, medos e esperanças. O vendedor (ou seu gerente de vendas, consultor de publicidade ou advogado) não precisa compartilhar os interesses particulares, preferências ou preconceitos de seu público — ele simplesmente tem que fingir que sim. {Confrontado com públicos diferentes, ele mudará seu discurso de vendas, dizendo a um público uma coisa, a outro público outra coisa, dependendo do que ele acredita que seu público do momento quer. Ele não apela para a sua consciência. Ele quer que eles comprem o que ele está vendendo, quer alguém esteja interessado ou não. No que diz respeito a ele, “o que esta audiência aqui e agora deseja é desejável”}

 

A argumentação, em contraste, não procura jogar com os interesses, preferências ou preconceitos particulares de outra pessoa. Em vez disso, joga com o que as pessoas concordam que devem concordar, com o que sabem em seus corações que não podem negar, mesmo que, na verdade, não estejam inclinadas a prestar muita atenção a isso. A argumentação parte do conhecimento comum da falibilidade humana — Errare human est — o conhecimento comum de que aquilo em que se acredita ou deseja não é necessariamente verdadeiro ou desejável. Isso apela ao sentido de valores como a Verdade, a Justiça, a Bondade e outros semelhantes, i.e., valores que não são relativos a pessoas ou situações e não são subjetivos, mas absolutos e objetivos — valores que nenhuma pessoa madura (inteligente, conscienciosa) pode negar sem se contradizer ou sem evitar, até mesmo se recusar, a responder a perguntas críticas de outras pessoas maduras. A máxima da argumentação é “Levem-se uns aos outros a sério como pessoas conscientes”. Superficialmente, a argumentação é uma troca entre duas pessoas, entre um “eu” e um “você”, mas na realidade é uma tentativa dedicada e consciente de descobrir o “nós” que deve estar lá, se levar um ao outro a sério é ser possível. A propósito, a palavra latina para “consciencioso” é “religiosus”. Nesse sentido, a argumentação é uma atividade religiosa.

É claro que, nas faculdades de direito, como eu as experienciei tanto como estudante quanto como membro do corpo docente, a ênfase estava no treinamento na arte de vender, i.e., na advocacia, sobre o uso da então imensa massa de regras legais para defender quase qualquer propósito particular e sobre a adição de novas regras para expandir o número de casos possíveis e, com isso, o mercado de serviços jurídicos, oportunidades de emprego para graduados em direito. Antes instituições dedicadas à busca da sabedoria — isto é, instituições filosóficas que buscavam a sabedoria — as universidades se tornaram fornecedoras das demandas do mercado de trabalho, das demandas de todos os tipos de interesses corporativos: do Estado, dos partidos políticos, dos grupos de pressão, dos três CIMs (os complexos militar, médico e industrial da mídia) e o FIC (o complexo financeiro-industrial). A mudança foi talvez mais evidente nas faculdades de direito e economia, mas poderia ser observada também em praticamente todos os outros departamentos, até mesmo naqueles que continuaram a chamar-se "departamentos de filosofia". À medida que a “ética da situação” — a defesa dos interesses partidários orientada pela mídia — excluía a ética no sentido tradicional da palavra, a “ciência da situação” excluía a ciência no sentido de reivindicações validadas de conhecimento. Isso foi quase oficialmente reconhecido no Discurso de Despedida do presidente Dwight Eisenhower, em janeiro de 1961.[10]

Eu estava convencido de que a argumentação era o método apropriado para validar os princípios do direito, incluindo a Lei Moral Natural.[11] Certamente, auto-referencialmente, a argumentação validou os princípios da ética da argumentação. No entanto, isso não respondeu à questão da validade da argumentação em si, em particular, a validade do apelo à consciência no sentido literal da palavra: senso comum ou conhecimento compartilhado em comum por todos os adultos maduros. Além disso, no clima intelectual predominante nas escolas e universidades, a consciência era considerada, na melhor das hipóteses, uma ilusão sentimental e, na pior das hipóteses, um preconceito partidário de um ou outro grupo ou indivíduo. No entanto, o Mênon de Platão forneceu um exemplo estendido de ensinar as verdades da geometria a uma alma simples, o escravo do Mênon, apelando a sua consciência, isto é, no jargão da Academia moderna, a seu conhecimento a priori — o conhecimento que ele havia adquirido, como uma criança ingênua e inocente, crescendo no mundo, antes de se tornar consciente da distinção entre saber e meramente acreditar ou fingir saber.[12]

 

A chave para o pensamento cônscio

 

Quando deixei a universidade, finalmente tive tempo de começar a procurar a chave que desbloquearia aquilo que é comunitário dos homens, consciência, mente e vontade — o que os filósofos costumavam chamar de “alma racional”. Graças a um comentário de um correspondente americano, Ben Novak, encontrei-o a cerca de 250km ao norte de Angers, em um lugar chamado Le Bec Hellouin, que havia sido forjado há quase mil anos. Eu deveria ter percebido isso antes. Afinal, embora estivesse trancado no equivalente acadêmico de uma zona proibida, foi um dos argumentos mais famosos da história da civilização ocidental: o “argumento único” de Anselmo[13], que mais tarde se tornou conhecido sob o pomposo nome de “argumento ontológico de Anselmo para a existência de Deus”, isto é, para a proposição “Deus existit”. O argumento tinha sido reconhecido como válido e sólido pela maioria dos filósofos de mentalidade matemática, de Descartes a Leibniz e Kurt Gödel, mas quase todo mundo o rejeitou, especialmente aqueles que haviam sido convencidos de que apenas coisas físicas empiricamente observáveis ou empiricamente detectáveis podem existir — um preconceito compartilhado por nenhum matemático e poucos cientistas naturais antes de meados do século XIX.

Anselmo apresentou seu único argumento no segundo capítulo de seu Proslogion (ca 1077), que resumiu e emendou seu Monologion (ca 1075), reduzindo seus muitos argumentos complicados para um único formato. Para entender o argumento único, precisamos entender a compreensão de Anselmo das duas palavras de sua conclusão, “Deus” e “existit”. O primeiro, “Deus”, ele entende como “aquilo do qual algo maior não pode ser pensado”​[14], que ele considera ser o denominador comum da compreensão de todos sobre a palavra “Deus”. Se você é um cristão, um judeu, um maometano ou um ateu; o que quer que você possa pensar de deuses, se você não entende a expressão “aquilo do qual algo maior não pode ser pensado”, então você não deve sequer tentar falar a sério sobre deuses. Quanto à segunda palavra, “existit”, Anselmo a entende como “emerge inequivocamente, acima de qualquer dúvida”, seja de uma observação cuidadosa ou de um processo lógico de pensamento. Por exemplo, o pensamento cuidadoso e consciencioso estabelece a existência de uma prova matemática, portanto, de uma verdade matemática indubitável sobre coisas inobserváveis, a saber, números, “coisas que não são nada além de quantidades puras”. Também temos de lembrar que em ​Monologion, Anselmo havia especificado que ele pretendia usar “maior” como significando “melhor, mais excelente”, não “maior em tamanho”. Os princípios cruciais ao passar de “Deus é maior do que aquilo que não pode ser pensado” para “Deus existe” são:

 

  • “aquilo do qual algo maior não pode ser pensado” não é uma expressão logicamente inconsistente.

(Ninguém jamais demonstrou que é uma contradictio in terminis).

  • Se há pelo menos uma coisa boa, então aquilo do qual algo melhor não pode ser pensado é certamente uma coisa boa.

(Esta é uma verdade lógica elementar)

  • É impensável que nenhuma coisa boa seja pensável.

(Por exemplo, é impensável que toda proposição seja falsa, portanto, a verdade só pode ser considerada uma coisa boa. Além disso, é impensável que toda argumentação seja falaciosa; portanto, a lógica só pode ser considerada uma coisa boa)

  • É maior (ou seja, melhor) para uma coisa boa existir na realidade do que apenas na imaginação.

(Este certamente não é o caso de coisas ruins ou neutras.)

  • O que logicamente precisa ser pensado como real é real

(Este é o axioma da filosofia realista, por exemplo, de Parmênides e Platão[15])

Essas proposições, que Anselmo já havia estabelecido em Monologion e que ele pressupôs em Proslogion, são indubitavelmente verdadeiras. Nenhuma pessoa madura e inteligente vai seriamente e consciosamente negá-las. Elas são verdadeiras a priori, embora, na forma em que são declaradas, não sejam tautologias formais óbvias ou declarações analíticas triviais. Eles são, se você preferir o jargão Kantiano, proposições sintéticas a priori.

O único argumento de Anselmo é, então: “Se você acredita ou não subjetivamente que Deus existe, se você entende a expressão ‘aquilo maior do que é impensável’, então você não pode negar que seu significado implica a realidade do que significa. Deus não pode logicamente ser pensado como uma coisa imaginária; Ele deve ser pensado como uma coisa real. E se Ele deve ser pensado real, então Ele é real.” Em suma, Deus é a ideia de Deus — ou seja, a Ideia Platônica de Deus.[16]

Descobrindo valores absolutos

Observe que “maior do que não pode ser pensado” nomeia uma qualidade, não um número ou quantidade, nem uma coisa ou magnitude física ou material mensurável. O grande avanço intelectual que Anselmo alcançou com seu único argumento foi que ele provou a realidade de todas as qualidades que se encaixam no esquema de seu Monologion: “O Divino é supremamente qualquer coisa boa que seja” (por exemplo, “Deus é Amor, Vida, Razão, Verdade, Justiça, Bondade …”[17]) Essas qualidades são muitas vezes erroneamente chamadas de ‘atributos de Deus’, mas essa expressão perde o ponto de Anselmo: “Deus não tem essas qualidades, ele é essas qualidades”. Prefiro chamá-los de “qualidades divinas” — afinal, somos convidados da Université Catholique de l'Ouest. Pode-se também chamá-las de “virtudes divinas” ou “valores objetivos e absolutos”. 

Você pode pegar qualquer qualidade que quiser e se perguntar: “É logicamente possível pensar o que é divino sem diminuir a grandeza de Deus?” Você pode então elaborar um teste para determinar se uma qualidade é divina, por exemplo, da seguinte forma:

  • Uma qualidade pode estar mais ou menos presente

(Por exemplo, pode-se ser mais ou menos sábio)

  • Uma qualidade verdadeira não é uma magnitude

(Por exemplo, uma pessoa pode ser mais sábia do que outra, mas não há unidade de sabedoria com a qual medir a sabedoria)

(Contraste uma pseudo-qualidade como grandeza, estatura, solidez, força, riqueza, que são magnitudes mensuráveis)

  • Uma qualidade divina só pode ser pensada melhor do que o seu oposto.

(Qualidades ruins ou neutras não são divinas)

  • Mais de uma qualidade divina é necessariamente (só pode ser pensado) melhor do que menos, independentemente das circunstâncias

(Mais do que isso torna uma pessoa melhor do que seria se tivesse menos ou não tivesse tudo junto)

  • Uma qualidade divina considerada em si mesma é melhor do que aquilo que é impensável.

(Ou seja, nada pode ser considerado mais sábio do que a pura sabedoria, ou seja, a própria sabedoria, porque a pura sabedoria não é corrompida, não é contaminada por nada externo a ela — está livre de qualquer defeito)

  • Que aquilo do qual algo melhor é impensável (Deus) são todas as qualidades divinas em sua pureza.

  (Caso contrário, não poderia ser pensado melhor do que o que é impensável)

 

Assim, se “a aquilo do qual algo melhor é impensável” é uma ideia logicamente possível cuja realidade não pode ser negada, então toda qualidade divina implica todas as outras — a fortiori, nenhuma qualidade divina considerada em si mesma (em sua pureza) é incompatível com qualquer outra. Em outras palavras, Deus nunca precisa trocar uma qualidade divina por outra, nem poderia fazê-lo sem destruir sua própria grandeza (i.e, bondade). É claro que os humanos não são Deus. Para eles, trocar um valor absoluto por outro é equivalente ao percurso da vida.

O argumento concludente

A menos que Anselmo possa ser provado errado, não há desculpa para Mises desconsiderar verdades a priori sobre valores objetivos, ou negar a realidade de valores objetivos, absolutos ou a possibilidade de uma verdadeira ciência normativa. A esse respeito, Rothbard certamente estava certo em procurar ir além de Mises. Infelizmente, ele não poderia — em qualquer caso, não o fez — livrar-se do conceito instrumentalista e utilitarista de Mises de agência humana. Ele falhou em acompanhar a ética argumentativa de Hoppe para incluir a argumentação (como distinta da negociação) entre as ações humanas com as quais um praxiologista deveria lidar. Assim, ele não produziu a praxiologia do direito que ele precisava para completar seu projeto Austro-Libertário.

O desafio é, então, 1) identificar as qualidades divinas que Mises descartou como valores meramente subjetivos, irracionalmente mantidos, e 2) interpretá-las de tal forma que, pelo menos em sua forma pura, sejam todas logicamente compatíveis entre si e, normalmente, “compossíveis”[18], até mesmo para os seres humanos. Ou seja: Além de situações de extrema necessidade ou extrema coação, nenhuma qualidade divina fornece uma desculpa válida para sacrificar, ignorar ou negligenciar qualquer outra. Além do óbvio (Verdade e Lógica, que poucos subjetivistas se atrevem a negar, a menos que estejam preparados para declarar suas próprias teorias meramente opiniões pessoais que não comprometem nem a si mesmos, muito menos a outros), a lista de possíveis candidatos é longa. Inclui, entre muitas outras coisas, Razão e Consciência, cujo cultivo é objetivamente virtuoso. Também Personalidade e Comunidade — as qualidades que fundamentam a afirmação de Anselmo de que sua análise daquilo que é maior do que aquilo que é impensável não contradiz a concepção trinitária cristã ortodoxa de Deus.[19]

A lista de qualidades divinas (valores objetivos e absolutos) também inclui Liberdade.[20] Naturalmente, não é a liberdade de fazer o que você quer, ou mesmo a liberdade de fazer o que você quer com sua própria propriedade. É a liberdade de fazer o que é certo. Como Lord Acton (1834-1902) escreveu em The Church in the Modern World (1860): “A noção católica, definindo a liberdade não como o poder de fazer o que queremos, mas como o direito de poder fazer o que devemos, nega que os interesses gerais possam substituir os direitos individuais”.[21] No entanto, essa noção teria exigido que Rothbard abandonasse sua posição subjetivista, mas ilógica, viz. que os direitos naturais de alguém incluem o direito de errar — como se o poder de controlar partes do corpo validasse (tornasse respeitável) o direito de errar. A menos que se equacione direito natural com poder natural, essa posição é ilógica. Na verdade, se alguém procura definir uma ética da liberdade, então ela leva diretamente a uma teoria legal-positivista do direito — “O Poder está certo”; o oposto de “A justiça está certa”, que Rothbard procurou validar. A posição lógica é: deve-se presumir que as pessoas não têm más intenções; elas devem ser presumidas pessoas livres, até que a prova do contrário seja estabelecida pela argumentação conscienciosa.

Conclusão: Não apenas os Austro-Libertários, mas todos os economistas da Escola Austríaca devem considerar a liberdade um valor absoluto e uma virtude absoluta, se quiserem defender seriamente o livre mercado e a liberdade como um direito fundamental, se apenas presumível.

 

 

Notas

 

[1] Antes de escolher fazer um nome para si mesmo como historiador e intelectual público — i.e, antes de abandonar seu projeto filosófico, que culminou em seu famoso Treatise of Human Nature — ele obviamente pensou que o método científico era uma coisa simples e definida. Ou você o aplica e então você estava no negócio de descobrir a verdade, ou você ignorou e então você era um obscurantista.

[2] Hayek também se inspirou em Hume. Diferente de Mises, no entanto, ele estava muito mais interessado na ênfase de Hume no comportamento animal, instintivo ou reflexivo dos seres humanos do que na adulação de Hume ao método da “ciência natural”. No mundo dos animais e das plantas, aparecem padrões de ordem mais ou menos duráveis que não são planejados racionalmente, mas são o resultado das interações descoordenadas ex ante de muitos animais ou plantas uns com os outros e com seu ambiente físico. Seguindo Hume, Hayek considerou o mesmo verdadeiro no mundo humano. Animais e plantas não devem saber o que estão fazendo ou por que estão fazendo, e ainda assim, suas populações podem prosperar e florescer e, o mais importante de tudo, adaptar-se às mudanças nas circunstâncias. O mesmo é verdade para os seres humanos. Não a física dos físicos, mas a dinâmica populacional dos biólogos evolutivos seria a estrela guia da ciência de Hayek sobre o mundo humano.

 

[3] Sêneca, Epistula 92, 33: “Ninguém é livre à serviço do corpo”

[4] Mises, Die Gemeinwirtschaft (1922, em inglês: Socialism, An Economic and Sociological Analysis , 1936, 1951), Parte III, capítulo 3, §3

[5] Do site tecnocrático https://technocracy.works : “Os tecnocratas veem o mundo como um problema de engenharia. Algo que podemos empregar o melhor da ciência para resolver. Estamos preocupados em resolver problemas baseados na realidade para todos, identificando e apoiando as necessidades das pessoas.”

[6] Mises, Human Action , Capítulo XIV, seção 3.

[7] Frank van Dun, Het Fundamenteel rechtsbeginsel (1983, edição expandida 2008, 2013); foi minha tentativa de mostrar que é possível ensinar direito a partir de princípios elementares e comuns, e não, da maneira dogmática usual, de “fatos legais” contingentes (códigos legais, textos legislativos e um punhado de veredictos judiciais que os professores de direito consideravam “muito importantes”). Ensinar direito a partir de princípios do senso comum teria a vantagem de tornar os alunos mais críticos da enxurrada de “legislação especial” que se tornou a tarifa comum da vida na sociedade moderna.

 

[8] Frank van Dun, “The Modes of Opposition in the Formal Dialogues of Paul Lorenzen”, Logique et Analyse, IV, 57/58, 1972, 103-136 (edição editada por Leo Apostel, Negation)

 

[9] Leland B. Yeager, Ethics as a social science: The Moral Philosophy of Social Cooperation (2001), que foi obviamente influenciado por Henry Hazlitt, The Foundations of Morality (1964)

[10] Foi imediatamente confirmado e encoberto em novembro de 1963 pelo assassinato do sucessor de Eisenhower, John F. Kennedy, quando o investimento de uma década da CIA em sua “Operação Mockingbird” valeu a pena — um investimento no controle da mídia, incluindo instituições de educação formal, expressão cultural e entretenimento por último, mas não menos importante. Outros interesses corporativos foram rápidos em entrar nesse movimento em particular. Quase da noite para o dia, fomos introduzidos na era pós-moderna da propaganda e advocacia produzidas em massa: a Era da Ciência Pós-Verdade e do Utilitarismo Triunfante, de “O fim justifica os meios”, “O que for preciso”, “Vale tudo”, “Capturar como pode” e “Somente o crédito financeiro é sagrado” — este último um lembrete do fato de que, na esteira da Primeira Guerra Mundial, outro meio de trocas interpessoais, o dinheiro, havia sido substituído pelos meios de comunicação de massa de políticas de crédito direcionadas e subsídios legislados, todos eles enredando massas de pessoas em redes multicamadas de dependência de processos de tomada de decisão opacos e complicados e interesses não revelados.

[11] Frank van Dun, “The Philosophy of argument and the logic of common morality” in E.M. Barth & J.L.Martens (eds), Argumentation: Approaches to Theory Formation , Benjamins, Amsterdam, 1982, 281-293.

 

[12] Não há razão para interpretar ‘conhecimento a priori’ como o conhecimento de fetos ou conhecimento que magicamente infesta um bebê recém-nascido quando o cordão umbilical é cortado. No entanto, é, metaforicamente falando, “inato” em pessoas capazes de razão adultas.

[13] O Unum argumentum de Anselmo:

{

Todo mundo que possui um mínimo de inteligência entende que a palavra “Deus” significa “aquilo do qual melhor é impensável”.

 

Entretanto, se — como alega o néscio presumivelmente um tanto inteligente do livro dos Salmos — Deus não é real, então Deus não pode ser pensado “melhor do que o que é impensável”, porque

é melhor para uma coisa boa — a fortiori, uma coisa da qual o melhor é impensável — ser real do que ser apenas um produto da imaginação.

Portanto, “ou o tolo não entende a expressão ‘aquilo do qual melhor é impensável’ ou ele contradiz a si mesmo. Deus é uma coisa imaginária” não pode ser pensado, porque implica sua própria negação, “Deus é real”

 

  Portanto, todo aquele que entende o que a palavra “Deus” significa deve logicamente reconhecer que Deus só pode ser pensado real.

  Ergo, Deus é real, Deus existe.

}

[14] Cf. Seneca, Quaestiones Naturales, “Quid est Deus? ... [M]agnitudo qua nihil maius excogitari potest...” Observe que Anselmo deixou cair a referência a “magnitudes”. Sêneca não era cristão. Seu deus era a divindade Romana, Júpiter.

[15] E.g., Alessandro Medri, “Anselm's unum argumentum and its Development in St. Bonaventure”, Lyceum, XI, n°2, 2010.

[16] Lembrem-se de que Anselmo foi o preeminente Platonista dos tempos medievais. Duzentos anos depois, Tomás de Aquino turvou as águas tomando Aristóteles, em vez de Platão, como “o filósofo”, principalmente para poder atribuir um papel fisicamente causal a Deus. Enquanto Anselmo era um monge, membro de uma ordem contemplativa ou religiosa (um beneditino), Tomás era um frade, membro de uma ordem mendicante de pregadores (um dominicano). Como filósofo e monge, Anselmo estava interessado principalmente nas perguntas “O que é Deus? O que significa dedicar a vida a Deus?” O principal interesse de Tomás era a pergunta: “Como vendemos nossa doutrina da Igreja aos pagãos e aos cristãos meramente nominais?” Sua Summa contra gentiles era um manual para frades dominicanos, cujo trabalho era sair para o mundo para converter pagãos e cristãos mornos. Ele então o reescreveu como um livro de curso para estudantes de teologia nas universidades (sua Summa theologiae). Anselmo escreveu antes do início do movimento universitário. Ele não estava envolvido na luta pelo controle das universidades que se opunham às ordens mendicantes (dominicanos e franciscanos) ao ramo secular da Igreja (padres e bispos) e aos intelectuais leigos. No entanto, em 1093, ele investiu com o arcebispado de Canterbury e, em seguida, como membro da hierarquia da Igreja, voltou-se a escrever obras altamente influentes que eram mais apologéticas do que filosóficas.

[17] “Obviamente, a Natureza Suprema (Deus) é suprema em qualquer coisa boa que seja. Então, a Natureza Suprema é o Ser Supremo, a Vida Suprema, a Razão Suprema, o Refúgio Supremo, a Justiça Suprema, a Sabedoria Suprema, a Verdade Suprema, a Bondade Suprema, a Grandeza Suprema, a Beleza Suprema, a Imortalidade Suprema, a Incorruptibilidade Suprema, a Imutabilidade Suprema, a Bem-Aventurança Suprema, a Eternidade Suprema, o Poder Supremo, a Unidade Suprema. E todas essas descrições descrevem a mesma coisa: Ser Supremo, Vida Suprema e assim por diante”. (Monologion , Capítulo 16, in fine)

[18] Hillel Steiner, “The Structure of a Set of Compossible Rights”, Journal of Philosophy , 74, no. 12: 767–75;

[19] Monologion, capítulo 79.

[20] Katherin A. Rogers, Freedom and Self-Creation: Anselmian Libertarianism (2015); ​(2015); Eu não usei o livro de Rogers, pois minha interpretação de Anselmo antecede sua publicação e foi informada principalmente pela minha correspondência de 2009-2012 com Ben Novak (que incluiu muito material não-publicado).

[21] J. Rufus Fears (ed.), Selected Writings of Lord Acton, Volume III (Essays in Religion, Politics, and Morality), Indianapolis, Liberty Classics, 1985, p. 613. Cf. Albert Camus, Lettres à un ami allemand (1960, em inglês: Resistance, Rebellion, and Death: Essays, 1995): “A liberdade não é composta principalmente de privilégios; é composta especialmente de obrigações” (p.96). Sobre os "interesses gerais", Camus escreveu: "O bem-estar do povo... sempre foi o álibi dos tiranos" (p.101).

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