Introdução (Alta Linguagem)
Neste artigo, Gilberto Freyre trata de realizar um review do livro A Cinza do Purgatório, de Otto Maria Carpeaux, que, segundo ele, traz o melhor do pensamento europeu e em especial germânico para terras brasílicas. Nesse sentido, é notada pelo autor a falta que uma certa influência autenticamente europeia, isto é, medieval, no Brasil. Assim, a obra de Carpeaux evidenciou um imigrante digno de um visto de "alien of extraordinary ability" mas, em vez de ir para os EUA, veio para o Brasil. Curiosa perda ao mundo anglo-saxão, talvez! Mas acima de tudo um profundo desperdício que o Brasil realiza com seu "capital intelectual".
EM TORNO DE UM LIVRO DE MESTRE
O Jornal, 20 de Maio. 1943.
O México soube atrair para a sua capital intelectuais, cientistas e artistas europeus de primeira ordem. O espantalho do comunismo, que lá, como noutros países, a plutocracia ou o nazismo associado aos Jesuítas e aos seus agentes--sejamos francos e digamos as coisas como elas são--levantou o mais alto que pode, não conseguiu o desejado efeito: o de encher os mexicanos de cautelas excessivas e até mórbidas contra todo estrangeiro de inteligência e cultura superior desejoso de continuar, em terra quanto possível livre, sua atividade intelectual, científica ou artística. O resultado é este: nenhum país da América chamada latina tem hoje o movimento intelectual e artístico que dá ao México cores verdadeiramente festivas no mapa das atividades de inteligência e de arte. Seu movimento intelectual é intenso. Seu colégio universitário salienta-se por um esforço admirável. Sua música desenvolve-se ao lado de sua pintura e de sua arquitetura. Seus pesquisadores realizam obras da importância da de Silvio Zavola e da de Manoel Gamio. Raro é o mês sem a publicação, na capital mexicana, de um livro de alta expressão científica ou literária: original ou traduzido.
Nós, no Brasil, nos deixamos alarmar pelo espantalho comunista a ponto de regressarmos aos dias mais cinzentos da nossa meninice intelectual de povo proibido pelos governantes portugueses de tudo que fosse atividade literária. Aos raros prelos só se permitia o pecadilho de imprimir orações e cartas de jogar.
Há quatro ou cinco anos, só encontrei indiferença para a sugestão de que procurássemos trazer para o Brasil espanhóis e portugueses da eminência intelectual de Fernando de los Rios, de Americo Castro, de Antonio Sergio, de Joaquim de Carvalho, de Osorio de Oliveira. O pavor de que fossem todos uns comunistas disfarçados, agentes de Moscou ou dos Soviets dissimulados em filólogos, historiadores e filósofos, abafava todas as obras vontades, todas as simpatias, todos os entusiasmos que em circunstâncias normais teriam decerto prevalecido com relação a estrangeiros tão ilustres.
Otto Maria Carpeaux é um dos raros europeus de valor refugiados no Brasil. Do seu livro Cinza do Purgatório não há o menor exagero em dizer-se que é livro de mestre. Em suas páginas, o leitor brasileiro se sente em contato com o que há de melhor no pensamento, na sensibilidade e na cultura europeia: a cultura totalmente europeia construída pela Idade Média. Abrigando Carpeaux, o Brasil enriqueceu-se intelectualmente: abrigou um mestre. E acentuando-se entre nós certas tendências lamentáveis no sentido do empobrecimento da nossa cultura intelectual, nós é que acabaremos tendo de nos refugiar à sombra de mestres estrangeiros do porte de Carpeaux. É bom que desde já eles estejam solidamente entre nós; e seria ótimo que pudéssemos contar com a presença definitiva deles em nossa vida e em nossa cultura; com a sua integração—e não apenas com a sua iniciação—em nossa língua e em literatura.
À literatura brasileira faltam estímulos vindos da tradição medieval e da Europa germânica, talvez a tradição e a Europa mais intimamente de Carpeaux, embora nele predomine, pela cultura e pela inteligência, o pan-europeu. Estímulos—os germânicos—que tanto têm contribuído para libertar a literatura norte-americana, por exemplo, da exclusiva tradição anglo-saxônica e colonial. O fato de defendermos a língua portuguesa como a única língua geral do Brasil, como a língua tradicional e oficial do Brasil inteiro e não apenas das regiões colonizadas predominantemente por portugueses, não significa que sejamos, todos os brasileiros, uns lusistas estreitamente tibeteanos, dados ao culto do purismo, satisfeitos com os exemplos de Vieira e Bernardes e fechados a quanta influência germânica, italiana, espanhola, francesa, inglesa, africana, indígena, possa acrescentar novas vozes à velha língua colonial, novos ritmos, novos modos de expressão; e à literatura brasileira novos motivos de vida ou esquecidas tradições de cultura e de experiência humana, novas zonas de sensibilidade e de inquietação.
Em Otto Maria Carpeaux vejo uma possível fonte de enriquecimento da nossa literatura no sentido de contato maior e mais íntimo com os exemplos, as sugestões, os motivos medievais e germânicos; e—venha ele a escrever poesia ou prosa poética em português—com os próprios ritmos da língua alemã. Quando o escritor austríaco, mais senhor do português, puder enriquecer o idioma do Brasil com vigorosas combinações de formas lusitanas de expressão com as germânicas, teremos nele um operário magnífico da ampliação, que todos desejamos, da língua portuguesa, pela maior absorção de valores das grandes línguas modernas nas quais se exprimem experiências diversas da lusitana. Derrotado o nazismo na guerra atual, o esforço de escritores e poetas da mesma origem e vigor de Carpeaux, no sentido daquelas combinações, abriria caminhos à franca integração no Brasil—na língua e na literatura—de descendentes de alemães do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.
Uma mistura talvez infeliz de política com literatura, a deste fim de artigo. Mas não é do próprio Carpeaux a observação de que dou sempre sentido político aos meus artigos?
Independente, porém, da significação político-cultural que possa ter em nossa vida e em nossa cultura, Otto Maria Carpeaux impõe-se à admiração e ao respeito de todos os que se ocupam de problemas intelectuais pelas suas virtudes de pensador e de crítico; pelas suas qualidades eminentemente artísticas de escritor; pela sua dignidade pessoal. Um autêntico mestre, Otto Maria Carpeaux. Seu primeiro livro em língua portuguesa bem o revela.