Nota introdutória, Gabriel Gotthelf
Carlos Heitor Cony foi amigo próximo de Otto Maria Carpeaux. Talvez um dos poucos que pareciam-lhe reais. Aproveitou como pôde essa amizade, conseguindo desfrutar de uma prosa boa e fama como cronista e literato. “O Ato e o Fato”, talvez o seu melhor livro, possui um artigo de Carpeaux no apêndice e um breve comentário na orelha do livro. Após sua morte, publicou “Em torno de Otto Maria Carpeaux”, expondo a si mesmo como um homem de grande coração; amostra disso é o supracitado artigo, claro, mas também os diversos outros comentários que fez e, last but not least, sua ajuda na reedição da obra de Carpeaux, que resultou em 2 volumes, chamados “Ensaios Reunidos”. No texto de hoje, com muita ironia e admiração, temos um relato factual do nosso mestre Otto Maria Carpeaux. Texto esse que prediz a vergonhosa crítica, recente até, publicada em algum jornal da USP, com a afirmação de que Carpeaux plagiou Benjamim. Eis aí a resposta—e fechemos os olhos para a correspondência de Benjamin ao pesquisar “Karpfen”!
Eruditos & eruditos
Correio da Manhã, 28 de Setembro. 1963.
Cultura nacional às vezes é caso de polícia. E há o caso daquele famoso ensaísta que conhecia todos os livros e todos os autores de todos os mundos e épocas. Até um dia, um sujeito chegado das províncias ficou com raiva e inventou obra e autor: “Do comportamento ético dos francos no Pré-Carlovíngio”. Responsável por título tão estapafúrdio, o sujeito fabricou um Perminio Favero, com a indicação: pseudônimo de João, o Ruivo. Pois o erudito nacional citou páginas, fez reparos sobre o capítulo dedicado às guerras contra os lombardos, mas elogiou profusamente a documentação e a conclusão final.
Este episódio é dolorosamente verdadeiro. Hoje, os protagonistas são inimigos, mas estão bem situados no exterior, como embaixador e adido cultural respectivamente, lado a lado, e repartem a mesma casa, o mesmo país, as mesmas honras e as mesmas amantes.
Mas há o reverso da medalha. E este aconteceu agora, anteontem, aqui mesmo, nas minhas barbas. Tenho dois vizinhos de trabalho: à direita, o vulto compacto de Otto Maria Carpeaux; à frente, as costas de tenista em disponibilidade do poeta José Lino Grünewald. Pois Zé Lino é um emérito fuçador de sebos e livrarias raras, todos os dias desencavar um livro surpreendente e importante. E todos os dias não marca tento com Carpeaux. Carpeaux sempre conhece o livro, ao menos de referência ou de citações.
Ontem, Zé Lino fuçou as estantes de uma livraria búlgara, inaugurada recentemente neste Rio de Janeiro. E lá encontrou uma preciosidade: “Páginas Escolhidas”, de Walter Benjamin, um nome pavorosamente ignorado nestas plagas. Na capa do livro, os editores franceses assinalam que é a primeira mostra do crítico alemão em língua latina, “para preencher uma grave lacuna universitária, e para colocar em contato com os franceses, o mais novo e importante ensaísta alemão do pós-guerra”.
Zé Lino folheou o livro e encontrou um precioso ensaio sobre o problema das traduções, e caminhava eufórico pela rua, pensando em recomendar o livro ao Décio Pignatari, aos Fratelli Campos (Haroldus et Augustus) e de repente lembrou-se do Carpeaux.
—Taí. Dessa vez vou pegar o Carpeaux!
Bom, o sujeito era recente demais para ser da intimidade carponiana. E Zé Lino sentiu um gostinho bom de vitória. Abriu a porta, desembrulhou o livro e cheio de mistério foi para as bandas do Otto Maria:
—Carpeaux, aqui está uma raridade. Você conhece Walter Benjamim?
Otto Maria Carpeaux estava escrevendo o comentário internacional, e nem levantou a cabeça.
—Conheço. É meu amigo.
Zé Lino encabulou. E nem ousou perguntar mais. Tão logo ficou livre, Carpeaux veio explicar quem era e o que representava Benjamim.
Para quem conhece os bastidores de nossa vida cultural, sabe que há muito tempo, quando ninguém por aqui falava em Kafka, apareceu um erudito europeu por estas plagas que começou a falar num sujeito que escrevia estranho e bonito.
Isso foi há alguns anos, já uma geração se passou e agora surge outra—a minha e a do Zé Lino, por exemplo—e todos devemos um muito a este homem que tem livros e datas e nomes na cabeça, e no peito um coração de criança cada vez mais doce e imenso.