“Felicidade e desgraça na história universal”, por Jacob Burckhardt

“Felicidade e desgraça na história universal”, por Jacob Burckhardt

Nota introdutória (Hélio Sena),

o texto é um recorte de uma conferência que o enigmático historiador da arte suíço, Jacob Burckhardt, palestrou no inverno de 1871 na Universidade de Basileia que acabou fazendo parte de uma coletânea editada e publicada posteriormente com o nome de "Considerações sobre a História Universal". Para o historiador, o homem experimenta a formação da história a partir dos juízos que ele constrói para analisar os eventos passados. Tais eventos podem ser vistos como uma época de boa sorte ou de infortúnios, mas Burckhardt critica esse tipo de discernimento por enxergar a história com um senso baseado nas afeições subjetivas que os homens possuem de determinado fenômeno histórico e por aquilo que eles julgam restritivamente o que é felicidade e o que é desgraça para aplicar-se ao conhecimento do passado. O juízo histórico, para o suíço, deve ser superado caso queiramos que a história seja escrita nem pelos jubilosos, nem pelos miseráveis, e nem pelos vencedores ou pelos derrotados.

Felicidade e desgraça na história universal

(Trechos da última aula de Jacob Burckhardt, na Universidade de Basiléia sobre História Universal, 1871. A aula, assim como o livro inteiro das “Considerações sobre a História Universal” , é um dos maiores exemplos de prosa autenticamente goethiana e o testamento de um homem que foi um grandíssimo erudito e um grande sábio.) 

Estamos habituados a considerar em partes como felicidades e em parte como desgraças os acontecimentos que têm constituído nossa vida; e a julgar, da mesma maneira, o passado histórico. Mas devíamos duvidar desse hábito, porque nosso juízo quanto às nossas próprias causas já muda muito, conforme as idades e as experiências; só a última hora da vida permite julgamento definitivo dos homens e coisas com os quais estávamos em contato; será diferente, esse julgamento conforme a idade em que morremos, com 40 ou 80 anos; e sempre será, só uma verdade subjetiva, com relação a nós mesmos, e nunca objetiva. Cada um de nós fez pelo menos essa experiência; que os desejos mais apaixonados se nos afiguram, mais tarde, como tolices, no entanto, a gente (sobretudo nos tempos modernos) permite-se julgar como episódios do passado e épocas inteiras, considerando como felizes estas e outras como desgraçadas. 

Achamos, por exemplo, que foi boa sorte para a humanidade a derrota dos persas pelos gregos; mas desgraça a derrota de Atenas pelos espartanos; desgraça, a morte de César ante a consolidação do império; desgraça a destruição de tantos tesouros e conquistas do espírito humano pela migração dos bárbaros; boa sorte, que a Europa conseguiu defender-se contra os árabes; desgraça, a divisão da Europa pela reforma; boa sorte, que a Espanha dos Habsburgos e a França de Luís XIV não conseguiram apoderar-se do continente inteiro etc.,etc. 

Mas quanto mais perto de nossa época o respectivo acontecimento, tanto mais divergem as opiniões a respeito, sobre o êxito ou fracasso de certas guerras e revoluções. Mas por isso aqueles julgamentos ainda não estão desmoralizados, porque, dirão ainda nos falta a perspectiva bem o passado imediato. 

Contudo, só por meio de uma ilusão d’ótica se nos afiguram essas épocas como sobremaneira felizes, à maneira da mocidade, da primavera, da aurora. Mais ou menos assim, a fumaça azul que se levanta da chaminé de uma casa longínqua à beira paisagem, ao pôr-de-sol, é capaz de iludir-nos quanto à felicidade que reina entre os habitantes daquele lar. Consideramos como “feliz” a época de Péricles, na qual floresciam o Estado, a arte e a poesia. Mas já não apreciamos mais assim o tempo dos “bons” imperadores romanos. Renan ainda achou que os anos entre 1815 e 1848 teriam sido os mais felizes da França e talvez da humanidade! Reconhece-se a desgraça apenas nos séculos de grandes destruições, e aí com razão: porque a euforia dos vencedores não pesa na balança. 

Mas quem é, afinal, que julga assim? Trata-se de espécie de consenso literário, produto das opiniões mais ou menos justificadas de certo número de historiadores muito lidos. Também divulgam-se essas opiniões não sem propósito: servem de argumentos propagandísticos contra esta ou aquela tendência de nossa própria época. Fazem parte da “opinião pública”. São inimigos mortais da verdade histórica. 

Muitas vezes julgamos assim conforme o “Estado de civilização”. Mas julgar épocas do passado conforme o grau da alfabetização e do conforto no lar significa condená-las, todas elas, para sacrificar ao “progresso”, considerando-se a nossa própria época como infinitamente superior. Mas isso só quer dizer que nós de hoje não teríamos mais bastante força para suportar outras condições do que os presentes; e estas últimas serão, sem dúvida, igualmente condenadas pela vaidade e ignorância do futuro. O espírito já estava perfeito no tempo de Homero, e a investigação do “progresso moral” podemos deixar aos que acreditam ingenuamente nisso. 

Na verdade, julgamos o passado conforme nosso limitado gosto artístico; também conforme simpatias políticas e religiosas, muito subjetivas. Mas sobretudo conforme nosso desejo de segurança. Esta está bem desenvolvida nas cidades policiadas de hoje, de modo que já poderíamos viver em meio dos ladrões heroicos de Homero, Mas quanto à segurança, algumas das mais nobres épocas da História Universal não eram brilhantes. A Atenas de Péricles, com seus impostos demagógicos e com a insegurança completa do indivíduo em face do poder oficial dos delatores, seria para nós outros um inferno, mesmo se pertencessemos à classe pouco numerosa dos cidadãos e não a grande massa dos desgraçados escravos. No entanto, os atenienses de então possuíam privilégios espirituais por cuja perda a segurança policial de hoje não nos recompensa. 

Nosso ridículo egoísmo considera como felizes as épocas mais ou menos semelhantes com a nossa… como se o mundo só existisse por nossa causa. Cada uma das épocas históricas julga-se a mais perfeita de todas; e quando tem motivos para duvidar disso espera pelo menos viver até as coisas mudarem para melhor. Mas todas as coisas, e nós com elas, não existem isoladas e sim ligadas ao passado inteiro e ao futuro inteiro. As pretensões das diversas épocas, povos e etc., a felicidade são de importância muito relativa. A vida da Humanidade é um todo; as oscilações regionais ou temporais significam felicidades ou desgraças de partes isoladas do conjunto; mas são movimentos, na verdade, de uma necessidade superior. 

Nessa grande economia da História Universal, a desgraça e a maldade desempenham papeis definidos. Mas isso não quer dizer que a maldade não seja sempre exemplo perigoso; e a História não nos oferece fatalmente recompensas pelas desgraças. A destruição nem sempre significa rejuvenescimento. As grandes monarquias universais, condições de civilizações universais, nasceram ao preço de sofrimentos e misérias inimagináveis. Contudo, existem certas “Leis de compensação”, por exemplo,  o aumento da população depois de grandes guerras e epidemias. Mas isso não justifica os crimes dos poderosos. 

As queixas mais justas contra o Fado histórico referem-se à destruição de altas obras de arte e de poesia. Não precisamos lamentar o desaparecimento da ciência antiga, das bibliotecas de Pérgamo e Alexandria; as nossas próprias bibliotecas já bastam para sufocar-nos. Mas desapareceram também os poetas insubstituíveis, e a perda de tantas obras historiográficas até transformou em série de fragmentos a continuidade da memória. Mas essa continuidade é interesse essencial da nossa espécie, algo como nosso fundamento metafísico sem o qual, sem a nossa consciência de continuidade, essa continuidade talvez não existisse. 

Mas nossa nostalgia do que pereceu tampouco é sem valor. A força veneradora em nós é tão essencial como o objeto venerado. Talvez fosse preciso que aquelas grandes obras de arte desaparecessem para que a arte moderna pudesse produzir algo de novo. Se no século XV grandes massas de autênticas estátuas e pinturas gregas tivessem surgido do solo, Michelangelo, Leonardo e Rafael não pudessem criar o que criaram. 

O Problema da felicidade e desgraças históricas desemboca, deste modo, no problema da continuidade do Espírito da Humanidade que se apresenta como a vida de um indivíduo. Na vida individual assim como na coletiva, histórica, o fenômeno principal é o desenvolvimento da consciência na história e pela história. Em face desse processo os conceitos “felicidade” e “desgraça” perdem a importância. “Ripeness is all”. A felicidade, como fim, substitui-se o conhecimento a compreensão; e isso não por indiferença quanto a miséria, que nós também atinge em cheio, mas porque reconhecemos como são cegos nossos desejos porque os desejos dos indivíduos, das nações e épocas se contrariam e enfim anulam. Se pudéssemos renunciar à nossa individualidade. Assistindo à história destes tempos e dos futuros com a mesma inquietação e calma com que assistimos na terra firme ao espetáculo de uma tempestade no mar, então a nossa consciência histórica seria completa. 

Numa época em que já desapareceu a ilusão de paz dos tempos da nossa mocidade, anunciando-se séries intermináveis de guerras; em que as maiores nações civilizadas passam por transições perigosas: em que a crise se torna permanente. 

Seria espetáculo maravilhoso (mas não para nós, fracos) acompanhar conscientemente o Espírito da Humanidade que, ligado a tudo isso e no entanto superior, constrói sua nova morada. Quem soubesse realmente disso, esquecer-se-ia de toda felicidade e desgraça para viver só nessa consciência superior.

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