“Gödel e os fundamentos da física”, de Newton da Costa

“Gödel e os fundamentos da física”, de Newton da Costa

Traduzido por Gabriel Marculino

Nota Introdutória,

Neste texto, Newton da Costa aborda alguns tópicos fundamentais quanto aos limites e escopo da física e da matemática. Aborda-se nesse artigo algumas implicações dos teoremas da incompletude de Gödel, em específico quanto a possibilidade de se fazer uma "teoria final" na física da qual se possa ter certeza que é de fato tão "final" assim. Na parte final, aplica-se os teoremas de Gödel, em conjunto ao Problema dos Sessenta de Hilbert, a uma questão sobre se é possível fazer uma axiomática que possa se provar consistente e completa na física e as implicações da impossibilidade disso para o trabalho científico.

[Retirado de: “Notas de aula: Lógica e Fundamentos da Ciência”, cap.8, pag 67-73]

Nosso principal objetivo deste paper é analisar alguns aspectos dos teoremas da incompletude de Gödel em conexão com a física. Merece ser mencionado que, de fato, Gödel parece nunca ter escrito qualquer comentário a respeito deste tópico. Por outro lado, poucos especialistas realmente investigaram tal assunto, merecendo destaque, entre eles, Stanley Jaki e Stephen Hawking.

Não apresentaremos aqui um tratamento rigoroso e completo do tema, mas prosseguimos informalmente, dando referências para o leitor, no caso de que ele esteja interessado em um tratamento amplo e rigoroso da questão. 

Boas exposições dos teoremas da incompletude de Gödel podem ser encontradas em Mendelson [87] e Kleene [76]. Uma exposição mais elementar é a de Franzén [55]. Hawking [63] e Jaki [72] são boas partes expositivas, ambos elementares. 

Todos os conceitos sintáticos aos quais fizemos referências neste paper são aritmeticamente definíveis, i.e., podem ser expressados na aritmética de primeira ordem de Peano (Franzen[55])

1. Teoremas da incompletude de Gödel 


Normalmente, as teorias matemáticas são apresentadas de uma maneira intuitiva, informal. Contudo, somos capazes de transformar esse assunto em teorias axiomáticas e, pelo menos em princípio, em partes formalizadas, isto é, em um certo sentido, jogar com símbolos. (veja [55], [73] e [76]). Isso pode ser feito com a aritmética de Peano, teoria dos conjuntos e outras teorias matemáticas, incluindo aquelas da física supostamente rigorosamente sistematizadas. Em outras palavras: as teorias da matemática e física são, em princípio, redutíveis a jogos simbólicos, isto é, formalizáveis. 

Dada uma teoria formalizada, o próximo passo possível é transformar a teoria inicial em parte da aritmética de Peano, isto é, aritmeticiza-la: transformar a teoria inicial em uma porção da aritmética. Assim, torna-se uma teoria aritmética envolvendo somente números naturais, propriedades de números e relações envolvendo números. 

Sumarizando, Gödel mostrou que toda matemática subsistente pode ser mergulhada na aritmética de Peano (de primeira ordem): o todo da matemática se torna apenas aritmética.

Dessa maneira, todos os aspectos recursivos e significantes da aritmética, do nível sintático, são expressáveis na linguagem de primeira ordem da aritmética de Peano. O conceito de enumerabilidade recursiva é de relevância básica para a prova dos teoremas de Gödel; de fato, é possível provar que os teoremas de uma teoria matemática formalizada constitui um conjunto que é recursivamente enumerado, com ou sem repetições, por uma função recursiva geral do conjunto de números naturais no mesmo conjunto. Em palavras técnicas, a classe de teoremas formais é recursivamente enumerável.

Como uma consequência, é possível provar o primeiro teorema de Gödel:

Se uma teoria contendo a aritmética de Peano de primeira ordem é consistente, então ela é sintaticamente incompleta, isto é, há sentenças aritméticas tais que nenhuma delas nem suas negações são prováveis nessa teoria.

O segundo teorema de Gödel é o seguinte:

Se uma teoria que supostamente contém a aritmética de Peano é consistente, então ela é incapaz de provar sua própria consistência (que é expressável por uma fórmula aritmética recursiva de primeira ordem, como mostrado por Gödel).

Incompletude na física​ 

A física é uma área da ciência na qual as considerações gerais anteriores podem ser aplicadas. O Problema dos Sessenta, pertencente à lista de Hilbert [​67​​] é o seguinte:

Para desenvolver uma abordagem axiomática para toda a física. Claramente, tal sistema de axiomas deve ser forte o suficiente para conter pelo menos a aritmética de Peano de primeira ordem; além disso, deve ser consistente, ou seja, não conter contradições (na lógica clássica padrão, uma única contradição implicaria que todas as sentenças da linguagem subjacente da teoria seriam prováveis, caso em que a teoria é chamada de trivial).  Mas levando em conta o primeiro teorema de Gödel, o programa de Hilbert seria impossível, já que a matemática seria trivial.

O segundo teorema da incompletude de Gödel constitui um corolário da prova do primeiro. 

Isso significa que, sob certas condições claras, a consistência de uma teoria física (ou matemática) consistente não pode ser provada dentro dessa teoria.

O primeiro teorema de Gödel mostra que algumas teorias atuais (hipotéticas), como a Teoria de Tudo (TT) e uma teoria completa e consistente das cordas (e também a teoria M) são impossíveis. Analogamente, teorias semelhantes estendidas  a uma teoria completa do Modelo Padrão e da Grande Teoria Unificada (GTU), supostamente consistentes, também são impossíveis. 

Além disso, até mesmo a consistência dessas teorias não pode ser provada dentro de si mesmas se forem consistentes.

Parece que Jaki [72] e​ Hawking [63] foram dois dos​ primeiros autores a chamar seriamente a atenção dos especialistas para as aplicações do primeiro teorema de Gödel à física. 

Os teoremas de Gödel, como apresentados acima, são verdadeiros para a física baseada na lógica clássica. Mas elas permanecem verdadeiras no caso de certas lógicas não clássicas, se essas lógicas forem empregadas como os fundamentos da física correspondente. Assim, os metateoremas são válidos nos casos de alguma versão intuicionista da matemática, bem como em formulações de algumas matemáticas paraconsistentes e suas lógicas. 

Obviamente, os teoremas de Gödel permanecem verdadeiros para outras ciências, como química e astronomia. Um ponto importante é que eles também são aplicáveis a vários campos da tecnologia. 

Da mesma forma, poderíamos submeter o teorema de Tarski sobre a verdade a uma análise análoga à do teorema de Gödel (ver [​1​55​1​] sobre o teorema de Tarski).

Terminamos esta seção reproduzindo algumas considerações feitas por Jaki [73]

Aqui reside o desenrolamento final do teorema de Gödel sobre a física. Isso não significa o fim da física. Significa apenas a sentença de morte nos esforços que visam uma teoria final segundo a qual o mundo físico é o que é e não pode ser outra coisa. Teorema de Gödel não significa que os físicos não podem vir acima com uma teoria de tudo ou TT em suma. Eles podem encontrar uma teoria que, no momento de sua formulação, explicaria todos os fenômenos conhecidos. Em termos do teorema de Gödel, tal teoria não pode ser tomada como algo que é necessariamente verdadeiro. Além do teorema de Gödel, tal teoria não pode ser uma garantia de que no futuro nada essencialmente novo seria descoberto no universo físico, o que exigiria outra teoria final e assim por diante. Regressar ao infinito não é resposta para uma pergunta que continua se gerando a cada resposta. 

Considerações finais

Os teoremas de Gödel e resultados análogos mostram que a atividade científica é uma tarefa aberta e inacabável. Talvez, uma espécie de trabalho de Sísifo.

Além disso, uma vez que efetivamente não sabemos como é a realidade, nossa circunstância ou nosso universo, talvez a física e as outras ciências mudem profundamente no futuro. A longo prazo, a ciência pode mudar drasticamente. Como Hawking coloca ([64])

Não exijo que uma teoria corresponda à realidade porque não sei o que é. A realidade não é uma qualidade que você pode testar com papel de tornassol. Tudo o que me preocupa é que a teoria deve prever os resultados das medições. A teoria quântica faz isso com muito sucesso. 

Outra passagem de Jaki é pertinente aqui [73]: 

O teorema de Gödel significa, entre outras coisas, que os físicos que pretendem ler a mente de Deus não terão sucesso, porque eles não podem ler suas próprias mentes em primeiro lugar — o teorema de Gödel continua sendo uma garantia séria para todos os físicos de que suas mentes serão sempre desafiadas por novos problemas. Com o recurso à lógica, eles também saberiam o que pensar dos esforços para derivar as constantes muito específicas da física de considerações não específicas. Na medida em que a matemática trabalha com números, ela permanecerá mergulhada em especificidades que levantam a questão: por que isso e não outra coisa? É essa questão que mantém a mente desperta, ou melhor, é levantada por mentes não propensas ao sono. 

Em síntese, o esforço científico constitui uma atividade sem fim. Os teoremas de Gödel e outros resultados incompletos não são o ato final da atividade científica, mas sugerem que é uma tarefa eterna. 

Nota complementar

Existem outras maneiras de encontrar limitações na matemática existente e usual, bem como nas ciências em geral (Cf., [43]). Adaptando a conclusão de [​​43​​], à nossa situação atual, poderíamos afirmar: “Provabilidade em matemática é rara, um evento raro”.

Portanto, há uma questão importante a ser tratada aqui: por que nos parece que todas as principais questões matemáticas podem ser resolvidas por nossas principais técnicas de comprovação? 

Não há uma resposta fácil para essa pergunta, mas estamos lentamente descobrindo um deserto de fatos matemáticos que ficam fora do alcance de nossas principais ferramentas matemáticas.

É como se a matemática permanecesse inacessível por si mesma. Para os matemáticos pode ser descrito como o que Dante disse, "como selva selvaggia, como um selvagem e quase intransponível deserto”. 

A passagem acima, acreditamos, é verdadeira para todas as ciências naturais. 

Gödel apresentou seus resultados incompletos apenas em conexão com a matemática. No entanto, em 1996, em seu​ [72] ​livro, Jaki observou que o mesmo é verdade com referência à física. Falando sobre uma reunião em que vários físicos muito conhecidos, incluindo ele, participaram ele escreveu em [​73​​] que:

Após a fala [de Gell-Mann], foi a vez dos outros palestrantes comentarem. Quando chegou a minha vez, lembrei a Gell-Mann que, mesmo que ele tivesse formulado uma teoria tão final, ele nunca poderia ter certeza de que era realmente final. Ele gritou de volta com bastante raiva. "Por que não?" “Por causa do teorema de Gödel”, respondi. “De quem é o teorema?”, ele perguntou novamente. Eu disse, de novo, “Teorema de Gödel”. Então eu tive que soletrar o nome de Gödel que Gell-Mann aparentemente não tinha ouvido antes. 

É óbvio que o teorema de Gödel permanece verdadeiro para quase todas as teorias científicas que não são muito fracas.

Referências

[55] Franzén, T., Godel’s Theorem, Peters, 2005

[87] Mendelson, E., Introduction to Mathematical Logic, second edition, Van Nostrand, 1979.

[76] Kleene, S. C., Introduction to Metamathematics. Van Nostrand, 1952

[72] Jaki, S. L., The Relevance of Physics, Chicago Press, 1966

[63] Hawking S., Gödel and the end of physics, July 20, 2002.www.dampt.ac.uk

[73] Jaki S. L., A late awakening to Gödel in physics, www.sljaki.com/jakigodel.pdf

[67] Hilbert, D., Mathematische Probleme, Archiv. Der Mathematik und Physik, 3dser., vol 1, 44-63 and 213-237 1901.

[72] Jaki, S. L., The Relevance of Physics, Chicago Press, 1966.

[64] Hawking, S. and Penrose, R., The Nature of Space and Time. Princeton University Press, 1996.

[43] da Costa, N. C. A. and Doria, F. A., The Chaitin-Thorp theorem, to appear

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