"Ludwig von Mises e o Processo de Mercado", de Ludwig Lachmann

"Ludwig von Mises e o Processo de Mercado", de Ludwig Lachmann

Nota Introdutória,

Neste artigo Lachmann aborda o que ele crê ser um dos, se não o, ponto distintivo da abordagem econômica da Escola Austríaca com relação a abordagem da economia neoclássica: a noção de processo de mercado. Essa noção -- que hoje toma outros nomes além de Lachmann como Kirzner, Peter Boettke, Peter Leeson et alia -- é interpretada pelo autor deste artigo como sendo também uma rejeição da noção de "equilíbrio geral" neoclássica, herdada principalmente de Leon Walras. Como abordagem alternativa e, ao ver de Lachmann, mais realista do mundo econômico, é proposto o imponente edifício metodológico e de teoria econômica de Ludwig von Mises.

Ludwig von Mises e o Processo de Mercado[1]

1.

Na espessa escuridão de nossa era, uma era de padrões em declínio, de inflação galopante e de ideologia igualitarista, talvez seja demais esperar que o campo do pensamento  econômico permaneça incólume e que pelo menos esta província da mente humana escape à invasão de nossas loucuras contemporâneas. De fato, o que encontramos hoje é muito mais do que poderia ser esperado. Vemos uns poucos pensadores engajados num valioso, embora desesperado, esforço de defender e fortalecer a grande tradição da qual são herdeiros. A grande maioria dos economistas têm atualmente adotado um formalismo árido como seu estilo de pensamento, uma abordagem que os exige tratar as manifestações da mente humana no gerenciamento doméstico (household) e no mercado como entidades puramente formais, a par dos recursos materiais. De maneira nada surpreendente, os adeptos desse estilo de pensamento vieram a encontrar na linguagem matemática um meio conveniente de expressar suas formas de pensar.

Eles gostam de se referir a si mesmos como economistas “neoclássicos”. Esse rótulo, entretanto, é bastante errôneo. Os economistas clássicos, em seus dias de glória, se preocupavam com a ação humana sob um determinado aspecto, as formas que ela assume em circunstâncias variadas e os resultados que provavelmente produziria. Eles tomaram a economia de mercado de seu tempo como objeto de seus pensamentos e se questionavam por que ela era o que era. Gradualmente eles construíram um aparato formal de pensamento a fim de lidar com esses problemas.

                Os economistas “neoclássicos” de nosso tempo assumiram, desenvolveram e refinaram consideravelmente esse aparato de pensamento. Mas ao fazer isso eles tomaram a sombra do aparato formal como a substância do assunto real. Não nos surpreenderá entender que quando confrontados com problemas reais, tal como a inflação permanente de nosso tempo, os economistas neoclássicos não tem nada a dizer. “Formalismo clássico tardio” nos parece uma designação muito melhor do estilo de pensamento atualmente em voga por essas bandas.

Um economista proeminente dessa escola nos contou recentemente: “Até que os econometristas tenham uma resposta para nós, depositar confiança sobre a teoria econômica neoclássica é uma questão de fé”. E que fé! A economia de maneira alguma se preocupa exclusivamente com o que ocorre, mas também com o que poderia ter ocorrido, com as alternativas de escolha que se apresentaram às mentes dos tomadores de decisão. De fato, é somente em termos dessas alternativas que as decisões podem se tornar inteligíveis, o que é, no fim das contas, o propósito principal de uma ciência social. As estatísticas, como Mises recorrentemente explicou, simplesmente registram o que aconteceu ao longo de um certo período de tempo. Elas não podem nos contar o que poderia ter ocorrido caso as circunstâncias fossem diferentes.

Trinta anos atrás, Mises nos alertou sobre a futilidade do formalismo clássico tardio. Peculiarmente, ele apunhalou o ponto mais fraco de seus oponentes. Ele mostrou a inadequação da principal ferramenta dos formalistas, isto é, a noção de equilíbrio. “Eles simplesmente delineiam uma situação na qual o processo de mercado cessaria de operar. Os economistas matemáticos desconsideram toda a elucidação teórica do processo de mercado e evasivamente se entretém com uma noção auxiliar empregada em seu contexto e desprovida de qualquer sentido quando usada fora de seu contexto.”[2] E ele acrescenta, “Uma analogia superficial é prolongada demais, isso é tudo.”

Ao proferir essas críticas, Mises apontou uma expressão para aquela oposição à obra da escola de Lausanne em geral e seu conceito fundamental, a noção de equilíbrio, em particular, que há muito tem sido um aspecto característico de toda a escola austríaca. Desde as cartas de Menger endereçadas para Walras até a obra de Hans Meyer e Leo Illy, uma sucessão de escritos austríacos têm expressado suas desconfianças quanto à abordagem de Lausanne e criticado a teoria do equilíbrio geral. Schumpeter é obviamente uma exceção, mas no sentido relevante ao nosso problema bem como em vários outros sentidos, pode-se dizer que ele não realmente tem pertencido ao “núcleo interno” da escola Austríaca. Mises, ao contrário, estabeleceu sua reivindicação a este título por sua rejeição do conceito de equilíbrio e portanto mostrou-se firmemente na verdadeira linha de sucessão austríaca. Mas ele não se limita a criticar a obra da escola de Lausanne. Ele deu um importante passo além. Ele substituiu a noção de equilíbrio pelo conceito do Processo de Mercado. Posteriormente falaremos mais sobre esse conceito fundamental e sua significância dentro da estrutura do pensamento de Mises. Mas há outra questão para a qual devemos retornar antes de mais nada.

Nos trinta anos que agora se passaram desde que Mises atacou o formalismo clássico tardio de nossa época juntamente com a noção de equilíbrio, ocorreu uma certa reorientação do pensamento econômico moderno. Escuta-se menos, hoje em dia, sobre aquilo que Mises chamou de “economia de rotação uniforme” (Kreislauf) como a estrutura do conceito de equilíbrio. Em vez disso, a noção de “equilíbrio de crescimento” [growth equilibrium] ou “estado de crescimento estável” [steady state growth] passou a adquirir um lugar de destaque no pensamento contemporâneo. Teremos, portanto, de nos perguntar se, e até onde, essa metamorfose da noção de equilíbrio tem afetado a validade da crítica de Mises feita trinta anos atrás.

Neste ensaio propusemos-nos duas tarefas: em primeiro lugar, examinar a questão de se a nova noção de equilíbrio de crescimento pode ser considerada como isenta da crítica apresentada por Mises. Em segundo lugar, as sugestões de Mises sobre o Processo de Mercado como uma alternativa ao equilíbrio como um conceito fundamental terá de ser elaborada mais plenamente. Teremos de indagar quais são as condições da existência contínua para tal processo. E também teremos de perguntar o que é, dentro da estrutura do processo de mercado como um todo, o status daquelas forças equilibrantes que tendem a produzir ao menos ajustes parciais.

2.

Nesta seção propomos mostrar que a nova noção de “equilíbrio de crescimento” que entrou na moda no último quarto de século é ainda mais inadequada do que era a versão mais antiga que Mises tão incisivamente criticou. Embora a nova variedade tenha adquirido fama e entrado na moda como uma característica do modelo de crescimento econômico de Harrod-Domar, sua origem é encontrada na obra de Cassel na segunda década deste século. Cassel era um crítico da obra de Wicksel, e em particular das últimas tentativas da análise do processo dinâmico em termos de conceitos, tais como a “taxa natural de juros”, a que pode ser dada pouco significado fora de um mundo imutável. Ele percebeu que o processo econômico numa sociedade industrial sujeita a mudanças contínuas não poderiam ser analisados com a ajuda de tais instrumentos de pensamento. Mas permaneceu Walrasiano o suficiente para querer conservar a noção de equilíbrio geral e o método estático. Então ele propôs a “economia uniformemente progressiva”, o modelo de uma economia em que a produção de todos os bens e serviços aumenta numa taxa uniforme por todo o sistema, enquanto os preços relativos e os produtos marginais relativos dos fatores de produção permanecem inalterados. Assim, nosso sistema econômico pode permanecer num estado de equilíbrio geral a todo o momento ao passo que a produção, a população e o estoque de capital crescem constantemente. Agora nós temos o equilíbrio persistindo em um mundo de mudança contínua. O método estático permanece aplicável ao mundo que não é estacionário. Em um certo sentido, poderíamos dizer que aqui nós temos um outro tipo de “economia de rotação uniforme”, só que o sistema econômico como um todo atinge o movimento enquanto está em rotação. Harrod e Domar, quando elaboraram seu modelo, pareceram estar bastante inconscientes da contribuição de Cassel.[3]

É digno de nota que os protagonistas das teorias de crescimento parecem crer que seus modelos têm pelo menos alguma semelhança com a realidade. O Professor Solow questiona: “Quais são os fatos gerais sobre o crescimento das economias industriais avançadas que um modelo apropriado deve ser capaz de reproduzir?” e, seguindo Kaldor, prossegue afirmando seis “fatos estilizados”. O primeiro desses fatos, de acordo com ele: “A produção real por homem (ou por homem-hora) cresce a uma taxa mais ou menos constante durante períodos de tempo bastante longos. Existem flutuações de curto prazo, obviamente, e até mesmo mudanças de um quarto de século para outro. Mas ao menos não há clara tendência sistemática para a taxa de aumento de produtividade no sentido de acelerar ou de retardar. Se, somado a isso, o acréscimo de trabalho […] cresça numa taxa permanente, também crescerá a produção agregada [...] .” O segundo é afirmado como “o estoque real de capital, grosseiramente medido, cresce a uma taxa mais ou menos constante excedendo a taxa de crescimento do acréscimo de trabalho.”[4]

Que alguns jogos fascinantes podem ser jogados com agregados “macroeconômicos”, e o tamanho do estoque de capital em particular, não é uma descoberta nova. Quando Cassel apresentou seu modelo, num momento em que a macroeconomia não tinha sido pensada, ele tinha enfatizado a necessidade de uma taxa uniforme de progresso em todos os setores. Em nossa era essa implicação é convenientemente esquecida juntamente com o Casseliano original.

Se o equilíbrio de uma economia estacionária é uma ferramenta insatisfatória de análise para uma economia industrial, o equilíbrio de crescimento do tipo que descrevemos acima é imediatamente visto como ainda menos satisfatório. Quando as rendas reais per capita aumentam, os beneficiários de renda não as gastam na mesma proporção que antes. Eles começarão a comprar mais produtos que antes estavam completamente além de suas possibilidades, compram mais de alguns outros produtos, embora menos que na proporção de suas maiores rendas, e podem realmente reduzir seus consumos de outros produtos considerados “inferiores” por eles. O padrão de demanda relativa certamente mudará. Para que o padrão de ofertas relativas se ajuste instantaneamente, temos de assumir imediatamente que os produtores previram essa mudança corretamente, bem como o padrão temporal da mudança. Temos também  de assumir que os custos são constantes sobre os escopos relevantes da produção em todas as indústrias afetadas e que as taxas salariais não mudam, do contrário os preços relativos mudarão. Tais hipóteses acerca dos custos e salários constantes quando a produção relativa muda devem ser consideradas prontamente como algo um tanto irrealista. Mas o grau de falta de realismo inerente em tais hipóteses se mostra menos importante quando comparado com aquele da previsão perfeita da parte dos produtores sem a qual nós não podemos ter ajustes instantâneos de oferta à demanda. Com efeito, essa é uma hipótese de previsão perfeita que priva o modelo de equilíbrio de crescimento de qualquer semelhança do processo de mercado do mundo real.

Ainda sim, sem tal previsão, o ajuste da oferta para mudanças na demanda certamente será atrasado, e durante o atraso haverá desequilíbrios nos mercados afetados. Se qualquer transação ocorrer durante o período de desequilíbrio (e, num mercado contínuo, como isso poderia deixar de ocorrer?) as condições de nosso equilíbrio em movimento será mudada pelas exatas mesmas razões pelas quais Edgeworth e Walras tiveram que introduzir o “re-contrato” para salvaguardar o caráter determinado de suas posições finais de equilíbrio. Em nosso conhecimento, no entanto, nenhum dos muitos economistas que têm nos apresentado modelos de equilíbrio de crescimento nos anos recentes têm atribuído a condição de re-contrato para transações durante períodos de desequilíbrio. Todos eles têm, é claro, assumido a existência de equilíbrio contínuo e ininterrupto. É isso que, sem ajustes instantâneos da oferta às mudanças na demanda, é impossível.

Problemas semelhantes surgem em conexão com a composição do estoque de capital. A manutenção de razões capital-produto (seja lá o que essa noção vaga possa significar e implicar) não é, decerto, condição suficiente da manutenção do equilíbrio geral num sistema econômico em crescimento. A composição atual do estoque de capital em termos dos vários recursos de capital devem ser apropriadas à composição da produção total demandada. O estoque de capital não deve conter nenhum único item cujo dono não desejaria substituir por um similar caso ele repentinamente o perdesse por acidente. Do contrário, o estoque não pode estar em equilíbrio. Tais mudanças na demanda por bens de consumo, como discutimos acima, deve, portanto, ser acompanhada de uma só vez por uma mudança correspondente na composição do estoque de capital, de outro modo esse estoque não pode conservar sua composição de equilíbrio e nos deparamos com uma nova fonte de desequilíbrio. Obviamente, na medida em que consideramos todo capital como homogêneo, o problema não vem à tona. Tão logo nos confrontamos com o fato de que a maioria dos bens de capital, ainda que não realmente específicos para os usos pelos quais eles foram originalmente designados, têm ao menos um escopo limitado de versatilidade, a manutenção contínua da composição de equilíbrio do estoque de capital num mundo onde a demanda relativa e a tecnologia estão vinculadas à mudança de uma forma bastante imprevisível, emerge como um problema grave.

É instrutivo olhar para todo o problema do ponto de vista da convergência de expectativas. Uma sociedade em que o progresso econômico ocorre é parte de um mundo incerto. Num mundo estacionário é possível apelar para a constância do “dado” e a contínua recorrência de eventos para justificar a crença de que todos os membros de tal sociedade se tornará, cedo ou tarde, familiarizada com eles e suas expectativas convergirão com os recorrentes padrões de eventos. Num mundo de incertezas isso é impossível. A experiência mostra que pessoas diferentes receberão expectativas amplamente divergentes. Isso ocorrerá não apenas porque alguns homens são, devido ao temperamento, otimistas e alguns outros são pessimistas. As diferenças no conhecimento são aqui frequentemente de fundamental importância. A difusão do novo conhecimento não é uniforme e frequentemente não é um processo contínuo. Algumas fontes de conhecimento são disponíveis apenas para alguns, mas não para outros, enquanto a capacidade de fazer uso de novos conhecimentos é distribuída de forma mais desigual entre os homens.

Por todas essas razões as expectativas num mundo incerto estão fadadas a divergir. Mas as expectativas divergentes não podem ser todas satisfeitas. Algumas estão fadadas a falhar. Os planos baseados nelas irão fracassar. Alguns planos serão ainda mais bem sucedidos do que seus planejadores esperavam. Em ambos os casos os planejadores não estarão em equilíbrio ao longo do tempo. No fim do período eles desejarão que tivessem perseguido planos diferentes, e isso se aplicará àqueles cujos planos fracassaram, da mesma forma que se aplicará aos que tiveram seus planos mais bem sucedidos do que o esperado. Eles irão, dessa forma, ter de revisar seus planos à luz de uma experiência insatisfatória. Mas o equilíbrio contínuo requer contínuo sucesso nos planos. Nós temos de concluir, portanto, que num mundo incerto no qual as expectativas divergem e planos baseados nelas não podem ser consistentes uns com os outros, o tipo particular de equilíbrio dinâmico conhecido como “crescimento de equilíbrio” é impossível.

3.

Mises rejeita a noção de equilíbrio e propõe substituí-la pela do Processo de Mercado. Ao seguí-lo nós nos deparamos com uma série de dificuldades. Nem o menor deles decorre de um fato da história que nenhum de nós pode evitar. A ascendência que a escola de Lausanne ganhou neste século criou uma situação em que, para a maioria de nós, tornou-se difícil até mesmo conceber um mundo sem equilíbrio. Nos dias de hoje isso exige bastante esforço para ser concebido. Muito do que nós temos aprendido e pensado parece depender disso, que sem isso nós parecemos estar perdidamente à deriva num mar desconhecido sem chance de nos orientarmos. Mas a inadequação da noção de equilíbrio geral da escola de Lausanne tem se estabelecido. Nós temos de enfrentar a inconfortável tarefa de substituir essa noção por alguma outra que seja ao mesmo tempo mais próxima da realidade e mais compatível ao pensamento praxiológico.

Felizmente nós temos a obra de Mises para nos guiar nessa tarefa. Ao eliminar de nossas mentes a dominação da noção de equilíbrio, o processo de mercado se apresenta como uma alternativa melhor. Talvez tal concepção veio a ocorrer mais naturalmente a alguém que moldou suas concepções fundamentais na Viena da primeira década deste século [século XX], a década na qual a reputação da escola Austríaca se encontrava em seu auge.[5] Sem dúvida o jovem Mises, assimilando a “atmosfera pura” da escola de Viena, ainda não contaminada por partículas estrangeiras, viu-se capaz de conceitualizar, com pouco esforço, a essência da economia de mercado na forma do processo de mercado. Para nós, como já explicamos, um esforço é requerido aqui. Devemos começar examinando os diferentes significados da noção de equilíbrio.

Antes de mais nada, temos de notar que o que aconteceu com a noção de equilíbrio foi que os economistas da escola de Lausanne [Jevons, Walras] e seus sucessores de hoje em dia expandiram o significado de equilíbrio a tal ponto que uma noção útil e, de fato, indispensável em seu significado original, tem sido aplicada muito além das fronteiras de seu habitat natural.

Os Austríacos estavam concentrados, em primeiro lugar, com o indivíduo no gerenciamento do doméstico e nos negócios. Não há dúvida que equilíbrio, aqui, tenha um significado claro e importância real. O homem realmente tem como objetivo dar consistência às suas várias ações. Aqui, uma tendência orientada ao equilíbrio não é apenas um conceito necessário da praxiologia, mas também um fato da experiência. É parte da lógica inerente à ação humana. Equilíbrio interindividual, tal como ocorre num mercado simples, como o mercado de cavalos de Bohm-Bawerk, já apresenta problemas apesar de ainda fazer sentido. O “equilíbrio de uma indústria” à la Marshall já é mais precário. O “equilíbrio do sistema econômico como um todo”, como Walras e Pareto o concebia, está certamente aberto às críticas de Mises. O "crescimento de equilíbrio” como tentamos mostrar, o equilíbrio de um sistema em movimento, é simplesmente um equívoco.

O vício do formalismo é precisamente esse, que vários fenômenos que não tem substância em comum são espremidos na mesma forma conceitual e então tratados como idênticos. Pelas forças de equilíbrio operarem com sucesso na esfera individual da ação, temos de assumi-las como evidentes, e, do modo como nos dizem os formalistas, elas também o farão fora dessa esfera. De Walras à Samuelson, encontramos a mesma maneira de raciocínio, as mesmas hipóteses arbitrárias, as mesmas conclusões injustificadas.

O que, então, deveríamos fazer? Se, com Mises, adotarmos o Processo de Mercado como nosso Ordnungsbegriff [“conceito ordenador”] fundamental, quanto do equilíbrio podemos incorporar nisso? Sugerimos vislumbrar um mundo onde milhões de indivíduos tentam alcançar seus equilíbrios individuais, mas que um equilíbrio geral que a tudo abarcaria nunca é alcançado. O Processo de Mercado deriva sua justificativa e ocorre em num mundo em que o equilíbrio geral é impossível. Mas negar a importância do equilíbrio geral não é o mesmo que negar a existência de forças equilibrantes. Simplesmente nos é exigido que não devemos perder de vista as forças de desequilíbrio e fazer uma avaliação abrangente de todas as forças em operação à luz de nosso conhecimento geral acerca da formação e disseminação do conhecimento humano.

Se, assim como Mises, rejeitamos a noção de equilíbrio geral, mas, por outro lado, não negamos a operação de forças equilibrantes nos mercados e entre os mercados, nós naturalmente temos que explicar aquelas forças desequilibrantes que impedem que o equilíbrio seja alcançado. Em outras palavras, explicar a natureza contínua do processo de mercado é a mesma coisa que explicar o vigor superior das forças de desequilíbrio.

O processo de mercado se mantém em permanente movimento, e as forças equilibradoras vão sendo verificadas pela ocorrência de mudança inesperada e da consistência dos planos humanos. Sem a recorrência do primeiro, i.e., num mundo estacionário, de fato é provável que os planos gradualmente tornar-se-iam consistentes na medida em que os homens aprendessem cada vez mais sobre o que lhes circunda, incluindo os planos dos outros. Sem a inconsistência de planos fomentada por expectativas divergentes, por outro lado, é ao menos possível que todos os indivíduos responderiam à mudança exógena de tal maneira que o equilíbrio geral pode realmente ser estabelecido. Várias coisas aqui iriam, é claro, depender da velocidade de tais ajustes. Nos locais onde acontece com velocidade, esse ajuste pode ter se completado antes que a próxima mudança inesperada ocorra. O que, entretanto, realmente frustrará as forças equilibrantes é a divergência de expectativas inevitáveis num mundo incerto, e seu corolário, a inconsistência de planos. Tal inconsistência é uma característica permanente de um mundo no qual se espera a recorrência de mudanças inesperadas.

Dentro do panorama geral do processo de mercado, impulsionado pelas duas forças permanentes cujo modus operandi acabamos de tentar descrever, os ajustes equilibrantes nos mercados individuais, a saber, ajustes de preço e quantidade, irão, é claro, acontecer. As forças equilibrantes se estabelecerão e farão seu trabalho. Mas nós nunca podemos ter certeza de que os efeitos colaterais que um ajuste equilibrante que um mercado tem em relação a outros mercados será sempre rumo a uma direção equilibrante. Eles podem muito bem ir na outra direção. O equilíbrio em um mercado pode ser perturbado quando as repercussões dos ajustes equilibradores em outros mercados o alcançam. Não há, portanto, nenhuma razão para que os efeitos de tais repercussões entre mercados devam ser sempre equilibrados. Mas nossa incapacidade de avaliar o resultado líquido dessa interação de forças equilibradoras em diferentes mercados não equivale à descoberta de outra força permanente que mantenha o processo de mercado em movimento. Isso é um processo dentro do processo de mercado.

Nós nunca fomos capazes de entender por que na discussão sobre o chamado "equilíbrio do subemprego” de Keynes alguns economistas, que se opunham ao ensinamento de Keynes, deveriam tê-lo considerado como necessário ou desejável discutir que numa economia de mercado o processo de mercado, somente se deixado desimpedido, “no final” tenderia a acarretar no pleno emprego. À luz das considerações apresentadas acima, tal conclusão parece injustificada. Se o resultado da disputa entre forças equilibrantes e desequilibrantes é no melhor dos casos incerta, por que seria menos incerta no caso dos mercados de trabalho, afetadas como são por uma variedade de fatores os quais muitos são não-econômicos? Se temos bons motivos para não acreditar na generalidade do equilíbrio, por que deveríamos querer afirmar que somente no mercado de trabalho o equilíbrio sempre ocorrerá no final? A causa da economia de mercado não é atendida por tais afirmações que uma compreensão mais profunda do processo de mercado e do complexo jogo de forças sobre o qual ele repousa revelarão falaciosas. Nós temos que aprender a viver com o desemprego bem como os demais tipos de desequilíbrio.

4.

Pode ser útil elucidar a ideia apresentada acima sobre o processo de mercado e equilíbrio ao reafirmá-los em termos da difusão de informação, um tanto da maneira em que Leijonhufvud recentemente interpretou algumas ideias de Keynes.

Comentamos acima que uma boa parte das coisas sempre depende da velocidade dos ajustes que seguem o desequilíbrio. Onde estes se procedem de forma rápida, o equilíbrio pode ser alcançado antes que a próxima mudança inesperada ocorra. A maioria dos economistas concordam que o mercado é um agente pela difusão de informação, mas nós podemos muito bem duvidar se isso pode ser completamente considerado como um processo rápido. A teoria do equilíbrio, a fim de afirmar a existência de uma forte tendência orientada ao equilíbrio, tem de assumir que a informação correta sobre os preços de equilíbrio e quantidades é prontamente apreendida dos acontecimentos de mercado e é disponível para todos os participantes. Do contrário, não pode ocorrer ajuste imediato. Com ajustes lentos, uma boa parte das coisas podem acontecer nesse ínterim antes que o equilíbrio seja alcançado.

Na realidade, obviamente, a informação se espalhará lentamente pelo motivo de nem todos os participantes terem a mesma capacidade de avaliar o significado informativo dos eventos que observam. Porém mesmo além deste fato, que em qualquer caso impede o conhecimento igual por todos os participantes do mercado, devemos observar dois outros fatos que, na realidade, não podem deixar de impedir a difusão de informação.

Primeiro, ninguém pode garantir se um evento que foi observado constitui uma “mudança real” ou uma flutuação aleatória. Ele tem de esperar pela confirmação e isso leva tempo. Segundo, ninguém sabe por quanto tempo a informação fornecida por um evento de mercado permanecerá relevante para seus planos. Num mundo em mudança a informação que é conhecimento relevante hoje pode estar obsoleta amanhã. Esses dois fatos, empurrando o indivíduo em direções opostas, explicam a divergência de expectativas.

Desse modo, temos de concluir que a difusão de informação, de fato, forma uma parte indispensável do processo de mercado e por si mesma constitui uma força equilibrante. Mas na realidade isso está fadado a ser um processo bastante lento, provavelmente dificultado pela divergência de expectativas e ultrapassado por eventos inesperados.

Mises, como um crítico da teoria do equilíbrio e expoente da tradição Austríaca, assumiu um papel de um inovador quando apresentou sua concepção de Processo de Mercado como uma alternativa. É, no entanto, digno de nota o quão gradual e lentamente a escola Austríaca evoluiu esses conceitos fundamentais que servem para unificar a ação econômica na sociedade.

No sistema Walrasiano, a noção de equilíbrio é empregada como um dispositivo formal para unificar a ação econômica nos três níveis de indivíduo, mercado e sistema. Essa unificação é aparentemente realizada de uma só vez em todos os três níveis. Daí a elegância formal e unidade arquitetônica que tanto fascinaram muitos dos nossos contemporâneos. Todavia, como vimos, a pobreza de conteúdo é o preço que se paga aqui pela elegância da forma. Enquanto aprendemos algo útil acerca do que governa e unifica a ação individual, nós simplesmente aprendemos umas poucas meias verdades sobre as forças em operação no sistema como um todo.

A escola Austríaca apresenta um quadro bastante diferente. Aqui a conceitualização e unificação são, com frequência, dolorosamente lentas. Mesmo no nível do indivíduo elas levaram meio século e não foram alcançadas até o Wirtschaftsrechnung de Schönfeld em 1924. No desenvolvimento do pensamento de Mises, como dissemos acima, a ideia do processo de mercado foi provavelmente concebida 60 anos atrás, mas não foi formulada até a década de 1930.

Ainda assim, o lento progresso trouxe agora sua recompensa. Agora somos capazes de obter um insight da natureza complexa das forças em operação, em particular entre os mercados, que nunca foi sonhado nos salões do palácio às margens do Lago de Genebra.

Mises forneceu aos seus discípulos um instrumento de pensamento que promete ser soberbamente poderoso. Nos anos vindouros, caberá a eles provar seu valor, manuseando-o com cuidado e habilidade.

 

Notas

[1] Retirado de: Friedrich A. Hayek, ed., Toward Liberty: Essays in Honor of Ludwig von Mises, 2 vols. (Menlo Park, Calif.: Institute for Humanes Studies, 1971), 2:38-52.

[2] Human Action (New Haven: Yale University Press, 1949), p. 352.

[3] Theoretische Sozialökonomie (Leipzig, 1918), I. Kapitel, para. 6.

[4] R. M. Solow, Growth Theory: An Exposition (Oxford: Oxford University Press, 1970), p. 2.

[5] “Nesses anos, durante o qual Bohm-Bawerk, Wieser e Philippovich estiveram lecionando em Viena, foi o período de maior fama da escola.” F. A.  von Hayek, “Economic Thought: The Austrian School”, em International Encyclopedia of Social Sciences, 4:461.

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