“Ludwig Von Mises: um estudioso intransigente”, por Fritz Machlup

“Ludwig Von Mises: um estudioso intransigente”, por Fritz Machlup

Nota introdutória, Hélio Sena:

O artigo do Professor Machlup é uma apresentação de um dos maiores eruditos da escola austríaca: Ludwig von Mises. Com a finalidade de expor não só para aqueles que o desconhecem, mas também para seus críticos e para os que já o admiram há muito tempo. Machlup, como um dos alunos do seminário de Mises e fazendo parte da quarta geração de economistas austríacos, demonstra insights cruciais e importantes sobre a vida e o pensamento de seu orientador, com quem manteve uma longa amizade que perdurou por décadas. É justo reconhecer que o Professor Machlup é apto a narrar a jornada de Viena até Nova York de seu mentor, tanto em sua vida intelectual quanto em sua vida pessoal, embora Machlup tenha defendido posições que geraram conflitos com seu mestre, como ele narra ao longo do artigo, e que essas mesmas teses não são muito bem aceitas entre vários estudiosos do Professor Mises. O conteúdo provoca uma reflexão sobre a aceitação inquestionável de alguns estudiosos do professor Mises, que era um grande homem e um gênio de sua época. No entanto, até mesmo grandes homens e mentes geniais não são isentas de erros.

Ludwig Von Mises: um estudioso intransigente

Fritz Machlup

Existem pessoas instruídas, até mesmo estudantes de economia, que sabem pouco ou nada sobre Ludwig von Mises. E há aqueles que têm conhecimento errôneo ou distorcido dele, adquirido por boatos superficiais ou por ensinamentos de críticos hostis; não tem havido escassez de críticos deste oponente erudito, altamente original e intransigente do socialismo e da intervenção governamental em todas as formas. Finalmente, existem admiradores de Mises, discípulos fiéis e propagadores de seus ensinamentos.

Apresentar Mises àqueles que pouco sabem sobre ele e, ao mesmo tempo, àqueles que sabem principalmente mas que não gostam dele é uma tarefa difícil, especialmente se eu também quiser satisfazer os admiradores de Mises que possam estar interessados em ler o que tenho a dizer sobre “o mestre”. Tentando atingir todos esses objetivos, posso falhar em todos os três. Mas vou tentar.

Para aqueles que não o conhecem

Ludwig von Mises nasceu em 1881 em Lemberg (Lvov) e morreu, mais de 92 anos depois, em 1973, em Nova Iorque. Seu pai, Arthur von Mises, Dr. Eng., era funcionário público, trabalhando no departamento de engenharia de construção da ferrovia austríaca e temporariamente estacionado em Lemberg, capital da Galícia, parte da monarquia austro-húngara.[1]

Ludwig von Mises frequentou o Ginásio Acadêmico de Viena. Após a formatura, em 1900, matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Viena para estudar Direito e Economia. Eugen von Böhm-Bawerk e Eugen von Philippovich foram seus principais professores de Economia. O seu primeiro livro, publicado em 1902, foi uma monografia sobre história econômica, que trata do desenvolvimento das relações senhoriais-camponesas na Galiza, de 1772 a 1848. Ele recebeu seu diploma de doutor em Direito (Dr. jur.) em 1906.

A história da vida e carreira de Mises pode ser convenientemente dividida em três períodos: o período vienense de mais de 50 anos, até 1934; o período relativamente curto de Genebra (os “anos mais felizes da sua vida”, segundo a sua viúva), de 1934 a 1940; e o período nova-iorquino, de 33 anos, até sua morte em 1973. Cada um desses períodos pode ser caracterizado pelos cargos acadêmicos que ocupou e pelos alunos que inspirou. As três instituições acadêmicas foram a Universidade de Viena, o Instituto de Estudos Internacionais Avançados de Genebra e a Universidade de Nova York. Em Viena, foi professor “extraordinário” (não assalariado); em Genebra, ocupou a cátedra de relações econômicas internacionais; e em Nova Iorque, foi professor visitante na Escola de Pós-Graduação em Administração de Empresas. Destes três cargos acadêmicos de longa duração, apenas o de Genebra tinha um salário regular; uma explicação deste estranho fato será tentada quando eu apresentar Mises àqueles que não gostam dele.

Trabalhador assíduo e escritor prolífico, Mises publicou 47 livros, dos quais 19 eram primeiras edições e 28 eram segundas edições ou traduções. (Esta contagem não inclui livros que apareceram após sua morte). Não ocuparei o espaço que seria necessário para uma lista de todos os títulos, mas não deixarei de indicar quais de seus escritos considero os mais importantes. Em primeiro lugar está seu Theory of Money and Credit (primeira edição alemã 1912, 2ª edição 1924; tradução inglesa 1934, nova edição inglesa 1953). Sobre este livro, Lord Robbins disse que conhecia “poucas obras que transmitem uma impressão mais profunda da unidade lógica e do poder da análise econômica moderna”. Se este livro tivesse sido amplamente lido e prontamente compreendido, o mundo poderia ter sido poupado dos desastres da hiperinflação e suas consequências sociais e políticas.[2]

Em segundo lugar, há o ensaio sobre “Cálculo Econômico na Comunidade Socialista” (publicado pela primeira vez como um artigo em alemão em 1920; tradução inglesa em um volume coletivo, 1935; republicado em 1963 e 1966). Neste ensaio, Mises argumentou que uma economia planificada centralmente, sem mercados competitivos e preços de mercado, seria incapaz de realizar cálculos econômicos racionais. Este tema ele expandiu e juntou a muitas outras questões de coletivismo e socialismo no livro Socialismo: Uma Análise Econômica e Sociológica (primeira edição alemã em 1922, segunda edição em 1932; tradução inglesa em 1936, republicado em 1951 e 1959 [tradução portuguesa em 2022]).[3] Finalmente, devo citar o Ação Humana: Um tratado de economia (publicado em 1949 e republicado em 1966, quase 900 páginas, expandindo um livro publicado pela primeira vez em alemão em 1940 [Nationalökonomie]), uma obra de alcance e impacto intelectual verdadeiramente impressionantes.

Aqueles que estão familiarizados com a obra de Mises ficarão indignados com a minha omissão de tantos outros bons livros de Mises – por exemplo, “Governo Omnipotente” (1944) ou “Teoria e História: Uma Interpretação da Evolução Social e Econômica” (1957), (republicado em 1969 e 1973). Mas, para aqueles que não conhecem Mises e sua obra são apresentados a ele pela primeira vez, minha pequena lista servirá.

O que deveria ser mostrado, contudo, é a posição de Mises no desenvolvimento da economia. Como austríaco nativo e estudante da Universidade de Viena, ele assumiu o lugar de representante da escola austríaca de economia. A escola, neste contexto, não se refere a uma instituição acadêmica, mas a uma forma de pensar, a uma técnica de análise e a um programa de pesquisa. A escola austríaca de economia foi fundada por Carl Menger, cujas principais obras foram publicadas em 1871 e 1883. A “segunda geração” consistia em Eugen von Böhm-Bawerk, Friedrich von Wieser, Eugen von Philippovich e vários outros cujas obras mais importantes foram publicadas antes da virada do século [XIX ao XX].

Entre os “outros” daquela geração, às vezes são chamados de Rudolf Auspitz e Richard Lieben, mas alguns pesquisadores da literatura os excluem por causa de sua predileção “não austríaca” pela exposição matemática, principalmente geométrica.

Ludwig von Mises foi aluno de Böhm-Bawerk, em cujo seminário se encontrou com vários austríacos da “terceira geração”.

Nem todos os membros austríacos do seminário de Böhm-Bawerk são aceitos como membros da escola austríaca; por exemplo, Joseph Schumpeter é por vezes excluído—injustamente, penso eu—devido à sua admiração pela escola matemática de Lausanne, fundada por Léon Walras, Otto Bauer é excluído porque abraçou o socialismo marxista.

Os economistas austríacos da terceira geração começaram a publicar suas obras durante as primeiras duas décadas deste século [XX]. A quarta geração consiste principalmente em membros do seminário Mises em Viena, dos quais Gottfried von Haberler, Friedrich von Hayek, Fritz Machlup, Oskar Morgenstern e Paul Rostenstein-Rodan são mencionados com mais frequência, embora pelo menos outra dúzia de economistas produtivos e bem-sucedidos pudessem ser nomeados.

Há, portanto, dois aspectos do papel de Mises no desenvolvimento da economia austríaca: os seus livros e os seus alunos.

Após a morte de Böhm-Bawerk em 1914 e de Wieser em 1923, Mises tornou-se manifestamente o líder da escola. Alguns anos depois de sua mudança para os Estados Unidos, outro seminário de Mises começou em Nova York. Os seus membros tornaram-se adeptos da economia austríaca sem serem austríacos de origem ou de residência; deveríamos, talvez, chamá-los de economistas austríacos não-austríacos—em contraste com aqueles austríacos não-austríacos que abraçam as “heresias” propagadas por outras escolas de pensamento.

Vários escritores altamente produtivos e professores eficazes estão entre esses discípulos americanos de Mises e seus alunos. São demasiado numerosos para serem listados aqui, mas quero destacar Israel Kirzner como alguém que fez contribuições especialmente excelentes para a economia austríaca.

Quais são as características distintivas essenciais da economia austríaca? Esta questão não é fácil de responder, principalmente porque os acadêmicos raramente, ou nunca, são unânimes em suas opiniões, e alguns membros de uma escola podem rejeitar um ou mais princípios que a maioria considera fundamentais.

Isso ocorre, em segundo lugar, pelo fato de alguns dos princípios que outrora eram tipicamente austríacos economicamente se tornaram se a economia dominante a nível mundial. Hayek disse uma vez, muito precisamente, que o maior sucesso de uma escola ocorre quando ela deixa de existir, pois isso significa que seus ensinamentos fundamentais se tornaram parte do corpo geral do pensamento comumente aceito.

Ainda assim, tentarei expor os requisitos mais típicos para um verdadeiro adepto da escola austríaca.

(1) Individualismo Metodológico: Na explicação dos fenômenos econômicos, temos de voltar às ações (ou inações) dos indivíduos; grupos ou “coletivos” não podem agir exceto através das ações de membros individuais.

(2) Subjetivismo Metodológico: Na explicação dos fenômenos econômicos, temos de voltar aos juízos e escolhas feitas pelos indivíduos com base em qualquer conhecimento que tenham ou acreditem ter e em quaisquer expectativas que tenham em relação aos desenvolvimentos externos e, especialmente, às consequências das suas próprias ações pretendidas.

(3) Gostos e Preferências: As avaliações subjetivas de bens e serviços determinam a procura dos mesmos, de modo que os seus preços são influenciados pelos consumidores (reais e potenciais).

(4) Custos de oportunidade: Os custos com os quais os produtores e outros agentes econômicos calculam refletem as oportunidades alternativas que devem ser abandonadas; como os serviços produtivos são empregados para um único propósito, todos os usos alternativos têm de ser sacrificados.

(5) Marginalismo: Em todos os desenhos econômicos, os valores, custos, receitas, produtividade, etc., são determinados pela importância da última unidade adicionada ou subtraída do total.

(6) Estrutura temporal de produção e consumo: As decisões de poupar refletem “preferências temporais” em relação ao consumo no futuro imediato, distante ou indefinido, e os investimentos são feitos em vista de maiores resultados que se espera obter se processos de produção mais demorados forem empreendidos.

Receio que estas declarações enigmáticas sejam significativas apenas para aqueles que têm uma formação considerável em teoria econômica. Certamente, este não é o lugar para discorrer sobre a análise econômica, mas devo acrescentar que o sexto princípio—relativo à “teoria austríaca do capital”—foi rejeitado por alguns dos economistas austríacos mais proeminentes, incluindo Carl Menger, o fundador da escola.

Dois princípios importantes defendidos pelo ramo de Mises da economia austríaca devem ser acrescentados à lista:

(7) Soberania do Consumidor: A influência que os consumidores têm na procura efetiva de bens e serviços e, através dos preços que resultam em mercados concorrenciais livres, nos planos de produção dos produtores e investidores, não é apenas um fato concreto, mas também um objetivo importante, alcançável apenas evitando completamente a interferência governamental nos mercados e as restrições à liberdade de vendedores e compradores de seguirem seu próprio julgamento em relação a quantidades, qualidades e preços de produtos e serviços.

(8) Individualismo Político: Só quando for dada aos indivíduos plena liberdade econômica será possível garantir a liberdade política e moral. As restrições à liberdade econômica conduzem, mais cedo ou mais tarde, a uma extensão das atividades coercivas do Estado para o domínio político, minando e, eventualmente, destruindo as liberdades individuais essenciais que as sociedades capitalistas foram capazes de alcançar no século XIX.

Esses dois princípios adicionais são compartilhados e defendidos pela maioria dos alunos de Mises. Nos Estados Unidos, o rótulo “economia austríaca” passou a implicar um compromisso com o programa libertário. Este não foi o caso das gerações anteriores de economistas austríacos, alguns dos quais eram defensores de intervenções e interferências governamentais que seriam descartadas por Mises e por seus discípulos. Se Mises for aqui apresentado como um líder de longa data da economia austríaca, é importante sublinhar que sua missão era, acima de tudo, a obtenção e manutenção da liberdade individual.

Tendo apresentado Ludwig von Mises como um economista de renome, professor eminente e líder reconhecido da escola austríaca de economia, devo acrescentar algumas frases para me prevenir contra uma possível confusão.

Mises tinha opiniões muito fortes sobre a filosofia da ciência; em particular, ele foi um oponente declarado do positivismo lógico. No entanto, houve outro Mises, que foi um grande defensor dos ensinamentos neopositivistas do “Círculo de Viena”: Richard von Mises (1883-1953), professor de matemática aplicada e aerodinâmica, proponente da teoria frequencial da probabilidade; ele era o irmão mais novo de Ludwig von Mises. Os irmãos tinham opiniões diametralmente opostas sobre epistemologia: Richard, o Positivista, e Ludwig, o Antipositivista.

Para aqueles que não gostam dele

Ludwig von Mises não foi um economista popular em nenhum sentido da palavra. Sua escrita não era de estilo popular, e seus pontos de vista eram impopulares entre a maioria das pessoas consideradas intelectuais. Mises lutou contra o intervencionismo, enquanto quase todos eram a favor de algumas ações governamentais contra as consequências "más" do laissez-faire, ou pelo menos a favor de medidas públicas que apoiassem esta ou aquela causa “merecida”.

Mises lutou contra o inflacionismo, enquanto uma grande maioria das pessoas estava convencida de que apenas uma expansão corajosa do dinheiro, do crédito e dos orçamentos governamentais poderia garantir a prosperidade, o pleno emprego e o crescimento econômico.

Mises lutou contra o socialismo em todas as suas formas, enquanto a maioria dos intelectuais considerava o capitalismo um sistema decadente a ser substituído, pacificamente ou pela revolução, pelo socialismo ou pelo comunismo.

Mises lutou contra o igualitarismo coercivo, enquanto todos os cidadãos "nobres" pensavam que a justiça social exigia a redistribuição da riqueza e/ou rendimento.

Mises lutou contra o sindicalismo violento e apoiado pelo governo, enquanto os professores progressistas de ciência política representavam o poder crescente dos sindicatos como um ingrediente essencial da democracia.

Não é de admirar, então, que os intervencionistas, os expansionistas monetários, os socialistas, os igualitários e os trabalhistas não gostassem de Mises, até mesmo o detestassem.

 Esta é apenas uma parte da história. Existem libertários—liberais clássicos—que compartilham as opiniões de Ludwig von Mises sobre todas as questões enumeradas e, ainda assim, não gostam dele ou não gostam da sua forma de expressar as opiniões partilhadas.

Alguns “neoliberais” na Europa consideram o estilo de Mises abrasivo e suas formulações como evidência de um “paleoliberalismo”, uma posição petrificada não apropriada para o século XX.

Outros condenam a sua intransigência e suposta falta de compaixão. Eles acreditam que uma maior disposição para compromissos e uma maior demonstração de compaixão para com as infelizes vítimas das forças do mercado livre tornariam o libertarianismo mais aceitável para a maioria. Eles se ressentem porque Mises torna o libertarianismo mais impopular do que deveria ser.

Os economistas matemáticos e os econometristas constituem outro grupo de antagonistas de Mises. Este antagonismo foi uma resposta natural à rejeição mais explícita de Mises às técnicas matemáticas de análise e exposição em economia. As suas restrições à economia matemática eram demasiado duras para não despertarem animosidade recíproca por parte dos atacados.

Há, além disso, outros oponentes acadêmicos que não gostam de Mises pelos seus ensinamentos epistemológicos. Os adeptos fanáticos de certas posições filosóficas têm pouca tolerância para com os desviantes.

Alguns neopositivistas não conseguem perdoar Mises pelo seu antipositivismo, e alguns empiristas não conseguem ser pacientes com o apriorismo de Mises.

Voltarei mais tarde a este ponto, mas tive que mencioná-lo na minha discussão sobre as razões pelas quais Mises é odiado por muitas pessoas, incluindo muitas pessoas boas.

Friedrich von Hayek, sem dúvida o mais enérgico expoente e defensor das visões econômicas e políticas de Ludwig von Mises, forneceu-nos recentemente uma explicação cuidadosa da reação hostil do mundo acadêmico a Mises e à sua posição.

O fato de um homem a quem Hayek chama “um dos pensadores mais originais nos domínios da ciência econômica e da filosofia social”, que obteve o seu doutoramento em 1906 e a sua cátedra na Universidade de Viena em 1913, não ter recebido nenhuma oferta completa para o cargo de professor durante os próximos vinte anos exige, de fato, uma explicação—embora Sigmund Freud, o criador da psicanálise, tenha sido tratado exatamente da mesma maneira.

Entre as hipóteses que Hayek considera como possíveis explicações no caso de Mises, estão as seguintes: (1) a incapacidade de Mises de esconder o seu desprezo pela mediocridade e pela ignorância grosseira por parte dos seus colegas de profissão; (2) a defesa vigorosa do capitalismo por Mises em uma época em que praticamente todo o establishment acadêmico endossava posições intervencionistas, se não socialistas; (3) a intransigência e a relutância de Mises em fazer concessões em discussões acadêmicas—intelectuais, científicas; (4) a posição de Mises como judeu (não religioso). Quaisquer duas ou três dessas manchas poderiam ser perdoadas, mas a combinação das quatro era demais.

Estas manchas contra Mises podem explicar por que ele nunca obteve um cargo de professor titular em Viena ou em qualquer universidade alemã; mas será que também explicariam por que nenhuma das prestigiadas universidades americanas lhe ofereceu essa posição?

Mises veio para os Estados Unidos no outono de 1940; naquela época, o clima acadêmico nas maiores instituições não era favorável a um homem com as “desqualificações” de Mises. O clima intelectual e moral mudou dramaticamente durante os anos de guerra, especialmente no que diz respeito à aceitação de estudiosos judeus na academia.

Porém, de 1941 a 1945, as universidades não funcionavam em sua capacidade máxima; ficavam felizes em conceder licenças aos seus professores para servir nas forças armadas ou em agências governamentais. Algumas universidades utilizaram seu corpo docente para cursos que faziam parte da formação básica do Exército e da Marinha. Somente em 1946 a demanda por professores acadêmicos tornou-se forte, e velhos preconceitos foram superados na maioria dos departamentos.

No entanto, nessa altura, Mises tinha 65 anos – já não era elegível para uma nomeação “normal”. Não é de admirar, então, que um cargo de professor visitante mal remunerado fosse tudo o que estava disponível para este grande professor.

Para aqueles que o admiram acriticamente

Como aluno de Mises ao longo da vida, como seu professor assistente durante dez anos e como alguém que desfruta de sua amizade há 52 anos (desconsiderando um afastamento temporário que será explicado mais tarde), considero-me um de seus sinceros admiradores.

No entanto, por não ter sido um admirador acrítico, fui, por vezes, acusado de ser “infiel” ao mestre. Seu domínio sobre as mentes de muitos de seus alunos era tão forte que eles me consideravam um herege ou até mesmo um traidor se eu negasse qualquer uma das verdades reveladas pelo mestre.

Lembro-me de uma discussão que tive certa vez com um dos discípulos latino-americanos de Mises sobre “Ação Humana”. Tentei explicar por que a posição metodológica que Mises considerava fundamental para a sua “praxeologia a priori” era difícil de defender à luz do discurso epistemológico atual.

Minha crítica foi prontamente comunicada ao mestre, que demonstrou certa indignação com minha dissidência. Lembro-me de discussões sobre a controversa questão de saber se o postulado político do liberalismo econômico (libertarianismo) poderia ser logicamente derivado de um sistema a priori de ação humana.

A minha insistência de que a posição libertária se baseava firmemente em juízos de valor foi fortemente ressentida pelos fiéis, mesmo depois de lhes ter assegurado que aceitava plenamente os valores subjacentes.

Muitas críticas dos admiradores acríticos foram induzidas pela minha relutância em aceitar, sem reservas, a teoria da soberania do consumidor de Mises. Embora eu tenha defendido os postulados da não-intervenção por vários motivos, os “fundamentalistas” queriam insistir na infalibilidade da teoria da soberania do consumidor por motivos a priori.

O conflito mais sério entre os crentes ortodoxos nos ensinamentos de Mises e a minha rejeição de algumas de suas convicções relacionava-se com a conveniência e viabilidade de uma restauração do padrão-ouro. Foi nesta questão que surgiu o distanciamento temporário entre o mestre e eu.

Margit von Mises, em seu livro “My Years with Ludwig von Mises”, relatou esse distanciamento, e muitos de seus leitores pediram-me que lhes contasse a sua causa.

Embora eu não tenha nenhuma evidência escrita, e embora o próprio Mises nunca tenha discutido comigo por que, durante vários anos, ele se recusou a falar comigo, tenho boas razões para ver a questão do padrão-ouro como a razão para o rompimento temporário em nossas relações amistosas.

Foi numa reunião da Sociedade Mont Pelerin, realizada em Stresa, Itália, em setembro de 1965, que presidi uma sessão de um dia inteiro sobre “O Sistema Monetário Internacional”, com Albert Hahn, Gottfried Haberler, Egon Sohmen, Maurice Allais, Milton Friedman e Michael Heilperin como palestrantes.

Na discussão da tarde, Philip Cortney fez seu apelo habitual para um retorno imediato ao padrão-ouro, com um aumento substancial no preço oficial do ouro. Depois de ouvir as razões que ele apresentou para o aumento do preço do ouro, usei a prerrogativa do presidente para fazer um comentário sobre o assunto.

Eu comparei o apelo dos defensores do aumento do preço do ouro aos apelos dos líderes sindicais que querem que os salários aumentem após um período de queda dos preços, para que a demanda efetiva dos assalariados eleve o nível de preços, e em seguida queiram que as taxas salariais aumentem, e que elas fossem aumentadas também após um período de aumento de preços, para que o poder de compra dos salários não fosse reduzido.

Da mesma forma, o lobby do ouro quer que o preço do ouro suba após um período de queda dos preços das matérias-primas, de modo que a expansão monetária resultante interrompa a deflação dos preços, e quer que o preço do ouro suba também após um período de aumento dos preços das matérias-primas, para que o valor real do ouro não sofra.

Quando a sessão terminou, tentei falar com o professor Mises, mas ele se virou abruptamente e foi embora. O rompimento das relações amistosas durou vários anos. Foi somente graças às súplicas de Margit von Mises que o severo mestre consentiu em me receber novamente. Escusado será dizer que evitei discutir novamente quaisquer questões de política monetária com ele ou na sua presença.

Talvez eu deva explicar que a posição de Mises e a minha sobre a possibilidade prática de regressar ao padrão-ouro não eram realmente diferentes. Ele escreveu com maior veemência, numa nova Parte Quatro da edição de 1953 de seu Theory of Money and Credit, que a restauração do padrão-ouro pressuporia uma mudança fundamental na ideologia, “uma mudança radical nas filosofias econômicas” (p. 456).

Isso é exatamente o que eu mantive e ainda mantenho. Enquanto os governos, os políticos e os eleitores acreditarem que a política monetária deve ser utilizada para garantir mais emprego ou um crescimento mais rápido, não será viável manter taxas de câmbio fixas ou um preço fixo do ouro.

Os seguidores ortodoxos de Mises evidentemente ignoraram o importante pressuposto que o próprio Mises formulou com grande clareza.

Eu tinha, como a Sra. Mises escreveu em seu livro (p. 146), me tornado um “apóstata intelectual”—embora, a meu ver, apenas por aderir estritamente à posição intelectual de Mises.

A admiração por um grande homem e por seu importante trabalho não pressupõe a aceitação acrítica de todos os seus pontos de vista.

O fato de eu poder contestar alguns dos ensinamentos de Mises não me torna um apóstata. Deveria provar, em vez disso, que o grande professor produziu alunos com mentes abertas e críticas.

A admiração deles pelo professor e pelos seus ensinamentos deveria contar mais que a conformidade ortodoxa com a qual os artigos de fé revelados jamais poderiam contar.

NOTAS

[1] Os leitores não familiarizados com a geografia e a história europeias podem ser advertidos contra confundir esta Galiza com o antigo reino e a atual província com o mesmo nome no canto noroeste da Espanha. Aliás, a Galiza, que era uma terra da coroa dos Habsburgos austríacos, desapareceu do mapa em 1918, quando, com Lemberg (Lvov), tornou-se parte da recém-independente Polônia. Em 1945, a Rússia, ou melhor, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, anexou a metade oriental da Polônia, incluindo Lvov. Os antigos residentes foram expulsos: os poloneses para o oeste, os rutênios para o leste; os judeus já haviam sido eliminados pelos nazistas.

[2] A primeira edição alemã deste livro foi resenhada por John Maynard Keynes no Economic Journal, Vol. 24 (setembro de 1914), p. 417. Aqui estão algumas citações desta revisão: “O tratado do Dr. von Mises é obra de uma mente perspicaz e cultivada. Mas é crítico e não construtivo, dialético e não original. [...] O Dr. Mises parece, ao leitor de fora, ser o aluno altamente educado de uma escola que já foi de grande eminência, mas que agora está perdendo sua vitalidade. [...] Fecho o livro [...] com um sentimento de decepção porque um autor tão inteligente, tão sincero e tão amplamente lido deveria, afinal, ajudar alguém a uma compreensão clara e construtiva dos fundamentos de seu assunto. [...] Quando tudo isso foi dito, não se pode negar ao livro méritos consideráveis. Seu lúcido bom senso tem a qualidade, encontrada com muito mais frequência em autores austríacos do que em autores alemães, da melhor escrita francesa.Todo o tratamento é principalmente teórico e sem qualquer esforço de atualização. O livro é "iluminado" no mais alto grau possível.” Em 1930, quando Keynes publicou seu Treatise on Money, ele evidentemente havia esquecido que havia tentado ler o livro de Mises e o revisou em 1914. Pois ele fez a seguinte declaração: “A noção da distinção que fiz entre Poupança e o investimento tem vindo gradualmente a insinuar-se na literatura econômica nos últimos anos. O primeiro autor a introduzi-lo foi, segundo as autoridades alemãs [e Keynes citou Albert Hahn e Joseph Schumpeter], Ludwig Mises na sua Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel [Teoria do Dinheiro e dos meios de circulação] , publicado em 1912”. [Treatise on Money (Londres: Macmillan, 1930), Vol. 1, p. 171 n.] Posteriormente, no mesmo volume, Keynes escreveu o seguinte: “Mais recentemente, uma escola de pensamento tem-se desenvolvido na Alemanha e na Áustria sob a influência destas ideias, que se poderia chamar de escola neo-Wickselliana, cuja teoria das taxas bancárias em relação ao equilíbrio da poupança e do investimento, e a importância deste último para o ciclo de crédito, está bastante próxima da teoria deste tratado. Eu mencionaria particularmente Geldwertstabilisierung und Konjunkturpolitik [Estabilização do valor monetário e política econômica] (1928) de Ludwig Mises.” [Ibidem, pág. 199.] Keynes citou também Hans Neisser e Friedrich Hayek entre os autores que anteciparam suas ideias. Numa nota de rodapé, ele acrescentou o seguinte: “Eu deveria ter feito mais referências à obra desses escritores se seus livros, que só chegaram às minhas mãos à medida que estas páginas foram sendo publicadas, tivessem aparecido quando meu próprio pensamento estava em um momento de crise, em um estágio anterior de desenvolvimento, e se meu conhecimento da língua alemã não fosse tão pobre (em alemão, só consigo entender claramente o que já sei!—de modo que novas ideias podem ser ocultadas de mim por dificuldades de linguagem).” [Ibidem, pág. 199 n.] Não admira que Keynes não tenha reconhecido a originalidade do trabalho de Mises, pois não conseguia ler a linguagem em que foi expresso.

[3] O desafio de Mises deu início ao debate acalorado (e ainda em curso) sobre o cálculo econômico sob o socialismo. Por levantar a questão e por “ter feito com que os socialistas abordassem este problema sistematicamente”, Mises recebeu um elogio socialista: Oskar Lange, propondo um sistema de socialismo de mercado, sugeriu que “como uma expressão de reconhecimento pelo grande serviço prestado por ele e como uma lembrança da importância primordial de uma contabilidade econômica sólida, uma estátua do Professor Mises deveria ocupar um lugar de honra no grande salão do Ministério da Socialização ou do Conselho Central de Planejamento do estado socialista”. [Oskar Lange, “Sobre a Teoria Econômica do Socialismo”, Review of Economic Studies, Vol. 4 (outubro de 1936), p. 53.] Mises tinha pouco respeito pela simulação de Lange do processo de mercado competitivo. Em suas palestras sobre Política Econômica (publicadas postumamente, South Bend, Indiana: Regnery/Gateway, 1979, p. 33), Mises comparou o plano para o socialismo de mercado a um jogo de “brincar de mercado” – como crianças “brincando de escola” sem aprender nada.

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2 comentários

Mises é brabo. Keynes, infelizmente, lunático.

HERTZ

Obrigado por compartilhar o texto! Mas tive dificuldade em ler pois não tem o tema escuro no site de vocês e sofro de sensibilidade nos olhos. Se puderem implementar agradeço!!

Guilherme

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