"Maternalismo na formação brasileira", por Gilberto Freyre

"Maternalismo na formação brasileira", por Gilberto Freyre

Nota introdutória (Alta Linguagem),
Neste texto, Gilberto Freyre trata de discutir sobre o maternalismo na formação das famílias brasileiras: enquanto o patriarcado foi formativo na infraestrutura econômica, política, o maternalismo parece ter sido a forma pela qual o ethos ou o caráter do brasileiro parece ter sido formado. É comum associarem a noção das mães solteiras hoje recorrentes no Brasil à uma formação familiar defeituosa, mas a ocorrência urbana de hoje tão somente repete um padrão encontrado já nos negros da senzala e de mucambo: desconhecendo seus pais biológicos, eram as mães que sozinhas ou em uma segunda união com brancos criavam os filhos. Assim, já na época da abertura dos portos veremos, como bem diz Freyre, as negras quitandeiras, cozinheiras, etc., que faziam tal ofício para garantir o sustendo de si e de sua prole, esta que, ao chegar a idade adulta, bacharelava-se e doutorava-se, tornando-se, assim, de posição social mais elevada que sua mãe. 

Vale notar também que a mãe brasileira parece ter uma influência para além da mãe ocidental em geral, pessoalmente, não se sabe se isso é mera impressão ou realidade. Mas até mesmo, por exemplo, em figuras estrangeiras como o alemão Thomas Mann, filho de mãe brasileira e pai alemão, parece que sua mãe brasileira teve uma influência para além do mero complexo de édipo de Freud--este que parece ter desbravado as profundezas da alma germânica, do demônio Mefistófeles dentro de cada alemão como ninguém antes fez--e que ele erroneamente transpôs a todos os homens.

Agradecimento a Vitor "Baw" Gomes por ter disponibilizado a transcrição do texto.

Maternalismo na formação brasileira

Retirado do jornal Correio Paulistano

O maternalismo foi traço característico da formação social e da formação do caráter ("ethos") do brasileiro. Devemos aqui acentuar: do brasileiro de mucambo ou de senzala e não apenas do de sobrado ou casa-grande, isto é, de zonas socialmente marcadas pelo poder quase absoluto do pai biológico alongado em pai sociológico.

Naquelas outras zonas, (mucambos e senzalas) caracterizadas muitas vezes pelo desconhecimento do pai biológico, a figura dominante como poder familiar e até certo ponto, político foi a do “paI” ou do “tio”, isto é, do tio sociológico, sem que essa expressão patriarcalista prejudicasse o culto da figura materna encarnado na mãe biológica, em alguns casos alongada em substituto de pai, isto é, de provedor das necessidades de alimento, vestuário, educação, etc, do filho ou dos filhos de pai desconhecido ou ausente e de “tio” (sociológico) apenas platônico ou para efeitos, no Brasil, vagos ou difusos, de solidariedade familiar segundo modelo ou inspiração africana.

O historiador Rocha Pombo em sua “História do Brasil” recorda que, entre negros livres de cidades brasileiras, ou negros, na sua maioria, de mucambos, vigorou esse tipo de patriarcado de inspiração ou modelo africano, em que o negro mais velho da comunidade tomava o nome de “pai” e os apenas idosos tomavam os nomes “tios”, sendo os indivíduos da mesma idade, “irmãos” ou “malungos”. L. Couty, no seu “L’esclavage au Brésil [a escravidão no Brasil]”, publicado em Paris em 1881, registra o caráter maternal de famílias que conheceu no Brasil, entre as mesmas camadas de população: filhos que só conheciam a mãe, ignorando os pais. Eram criados pela mãe.

De algumas dessas se sabe que fizeram dos filhos doutores ou bachareis; e o conseguiram vendendo doces ou frutas em tabuleiro, quitandas, cozinhando em casas ou sobrados de ricos, ou, menos puritanamente, aceitando o amor de brancos opulentos que as enchiam de regalos, é que as mais profundamente maternais souberam destinar à criação de filhos, principalmente daqueles mais brancos que elas, mãe, e que Wetherell, na cidade de Salvador, notou serem objeto de orgulho materno das negras.

Tais contradições entre maternalismo--que não deve ser nunca confundida com matriarealismo propriamente dito, (à maneira do que já fez distinto ensaísta e pesquisador brasileiro, o sr. Joaquim Ribeiro) e patriarealismo, foram frequentes na formação social do Brasil, colorida em suas intimidades por mais de uma sobrevivência africana que aqui se comportou como uma espécie de adjetivo sociológico com relação ao substantivo: quase sempre o poder patriarcal, mesmo quando exercido por mulher: mulher-homem ou mulher substituto de homem. Dessexualizada.

Daí os africanismos desse gênero surpreendidos entre nós pelo olhar arguto de um dos maiores africanologistas do nosso tempo, o professor M.J Herskovits, que defende com vigor a tese de sobrevivência africanas em ritos de união de sexos e de organização de família no Brasil (“The Negro in Bahia, Brazil: A Problem in Method”, “American Sociological Review”, VII, 4, 1943, p. 394) contra a de igualmente notável africanologista norte-americano que é o professor F. Frazier (“The Negro Family in Bahia, Brazil”, “American Sociological Review”, VII, 4, 1942, p. 465).

Para o professor frazier aqueles ritos dissolvem-se todos no Brasil nos ritos europeus. No Recife, o jovem africanologista brasileiro René Ribeiro, em pesquisa sobre amasiados (“On the Amaziado Relationship and other aspects of the Family in Recife, Brazil”, “American Sociological Review”, X, I, 1946, p. 44), encontrou elementos favoráveis à tese Herskovits, isto é, a de que o concubinato entre gente de cor constitui, de ordinário família estável, distinguindo-se assim do concubinato europeu.

Tese também apoiada pelo sociólogo francês, já tão familiarizado com assuntos brasileiros, em geral, e afrobrasileiros, em particular, que é o professor Roger Bastide. Para o professor Roger Bastide--e este é o ponto que especialmente nos interessa--o negro livre, isto é, o negro, quase sempre, de mucambo, ao deixar as senzalas rurais, pelas cidades, inclinou-se a refazer a “grande família” de estilo africano, com as classes por idade de indíviduo: “grande família” cuja existência em cidades brasileiras foi recordada, como já vimos e como assinala o próprio professor Roger Bastide, pelo historiador Rocha Pombo. Para o lúcido sociólogo francês o que devemos admitir é que a família afro-brasileira, ao refazer-se nas cidades---isto é, nos mucambos e casas térreas de negros livres, artesãos, operários, quitandeiros, etc--reviveu-os reinterpretados em “termos europeus”. É o que sustenta no seu recente “Dans les Amériques noires”: Afrique ou Europe”.

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