Texto introdutório (Alta Linguagem)
Este texto é fruto de árduo trabalho de tradução de “las theores exposées par Molina dans l’«Concordia»”, parte do verbete Molinisme em Dictionnaire de théologie catholique, ed. Alfred Vacant, Eugène Mangenot, e Émile Amann; Paris: Letouzey et Ané, 1929, continuação do último texto postado neste site antes deste aqui.
Este é o melhor e mais sistêmico resumo da obra magna de Molina, a Concordia, que se encontra em alguma língua neolatina—salvo certos materiais que possam existir em pesquisa acadêmica recente e que seriam inacessíveis por enquanto na internet.
Mesmo assim, o texto é do início do século XX, há uma certa dificuldade com o estilo de escritura do texto original: há vários períodos em que verbos são omitidos depois de seu primeiro uso, assim como também há uso frequente de artigos definidos. Para demérito do tradutor—embora isso tudo não prejudique o sentido das frases, pode tornar difícil a leitura.
Por mais difícil que seja a leitura, todavia, eis neste texto uma exposição ainda assim clara e completa de todos os tópicos abordados na Concordia do gênio jesuíta Luís de Molina e de sua doutrina, o molinismo.
AS TEORIAS EXPOSTAS POR MOLINA NA «CONCORDIA»
As obras polêmicas abundam a favor ou contra Molina. Elas tem pouco sucesso em torná-lo conhecido. As exposições gerais de seu pensamento permanecem raras. Mais raras ainda são aquelas escritas de um ponto de vista puramente objetivo. Não será sem dúvida inútil, em um tema que suscitou tantas paixões, assumir aqui, fora dos apologistas ou detratores, o papel de um informante imparcial. Ler uma obra como a Concordia sem qualquer preconceito, e mesmo refreando, à medida que surgem, as objeções que se apresentam, pode ser um trabalho difícil; mas é, em todo caso, um trabalho necessário.
O pensamento de Molina, longamente meditado, forma um todo. Seria pouco sábio fragmentá-lo e pretender compreender bem um de seus aspectos sem antes estudá-lo em sua totalidade. Assim, o próprio autor, em várias ocasiões (Præf., p. iv; q. xiv, a. 13, disput. XXXVI, in fine, p. 208), pede ao leitor que não precipite seu juízo, mas o suspenda até o término da leitura, para poder comparar as diversas partes do volume e apreender sua coerência. Portanto, ainda que o rigor do bom método não o impusesse, a justiça nos obrigaria a atender a esse pedido.
O objetivo de Molina. — Encarregado por seus superiores de comentar a Prima Pars da Summa Theologica de São Tomás, Molina dedicou-se sobretudo a explicar, à luz da fé, como a liberdade humana se harmoniza com a presciência divina, a providência e a predestinação, temas que ele deveria tratar. Assim, foi levado indiretamente a ocupar-se da graça e de toda a obra da justificação. Sua ambição, nesse difícil campo, seria «contemplar de um ponto de vista único e conectar, remetendo ao seu fundamento, as coisas que Deus mesmo uniu ao prevê-las, realizá-las e promovê-las segundo seus fins» (Præf., p. 111), ou seja, mostrar a harmonia que existe entre, de um lado, o livre-arbítrio, e, de outro, a graça, a presciência, a providência, a predestinação e a reprovação.
Esse objetivo, ademais, é ditado por uma preocupação apologética, como se evidencia no prefacio dirigido ao grande inquisidor de Portugal, o cardeal Alberto da Áustria (p. II). Os certos homens perdidos e infelizes por natureza [perditi quidam atque infeliciter nati homines], contra os quais ele se levanta, são evidentemente os protestantes, cujos erros são expostos (q. xiv, a. 13, disp. I, p. 9-10): Lutero, que, após negar a eficiência da liberdade em nossas boas vontades, chegou a atribuir a Deus todos os nossos atos, incluindo os pecados; e Calvino, que pretendia ter consigo o apoio de Santo Agostinho.
Divisão da obra. — A origem da Concordia explica sua divisão conforme os artigos da Summa que são comentados. Ela compreende quatro partes, de extensão muito desigual, e trata sucessivamente do conhecimento de Deus (q. xiv), da vontade de Deus (q. xix), da providência (q. xxii) e da predestinação (q. xxiii). Ainda assim, nessas questões, Molina faz uma seleção, considerando apenas os artigos que se relacionam mais diretamente com o grande problema que o interessa. Da questão xiv, ele retém apenas os artigos 8 e 13; da questão xix, o art. 6; da questão xxiii, os cinco primeiros artigos; somente a questão xxii é estudada integralmente.
É no contexto dessa divisão por questões que estudaremos o pensamento de Molina sobre o conhecimento divino, sobre a vontade de Deus, sobre a providência e sobre a predestinação. Teremos o cuidado de destacar, ao longo do texto, as principais indicações dadas pelo próprio Molina sobre sua posição ou a que ele acredita ocupar em relação a outros teólogos, em particular Santo Tomás, que permanece para ele «o príncipe da teologia escolástica», scholastica theologiæ solem et principem (Præf., p. 111). Indicaremos, em seguida, o conteúdo da Appendix ad Concordiam. Por fim, uma rápida síntese das teorias de Molina seguirá logicamente essa exposição analítica. Salvo indicação contrária, todas as nossas referências dizem respeito à reimpressão parisiense da edição de Antuérpia (Paris, 1876), que é, de longe, a mais acessível.
O CONHECIMENTO DIVINO. — Dois problemas se colocam a seu respeito: é ele causa das criaturas? Ele abrange os futuros contingentes?
1º O conhecimento divino é causa das criaturas? — São Tomás, q. xiv, a. 8, respondeu: Sim. Deus age por sua inteligência, assim como o artesão; seu conhecimento propõe e dirige seus atos, mas não produz nada e, portanto, não é causa de fato, a menos que sua vontade decida que tal coisa será.
Molina introduz aqui uma distinção primeira e muito importante, que ele diz ser necessário reter e ter sempre «diante dos olhos». O conhecimento divino, considerado em relação às criaturas, pode ser chamado de natural ou livre, dependendo se precede ou segue a determinação da vontade. Se ele se refere ao que Deus pode fazer, seu conhecimento é natural e não livre; se, ao contrário, ele se refere à existência futura de certas criaturas, é livre, pois é porque Deus quis livremente essa existência que Ele a conhece.
Se, portanto, é verdade dizer que o conhecimento natural de Deus é causa das coisas, é falso que seu conhecimento livre, aquele que se refere aos futuros contingentes, o seja. (Ad 8 art., quæst. xiv, p. 1-2).
2º O conhecimento divino abrange os futuros contingentes? (Sum. theol., q. xiv, a. 13).—A presciência divina, a liberdade humana e a contingência das coisas foram objeto de múltiplos erros, desde os dos filósofos e hereges mencionados por Santo Agostinho (De civ. Dei, l. V, c. 1, IV, IX; De hæres. 35, 46, 70, etc.)—como Cícero, Bardesanes, Prisciliano, os maniqueus, os pelagianos—até os de Lutero e Calvino, passando pelos de Abelardo e Wycliff. Para resolver a questão, sempre atual, de sua conciliação, Molina estuda previamente: 1º a natureza, a extensão e a existência do livre-arbítrio; 2º o concurso divino e a existência da contingência.
Dois princípios dominarão todo esse estudo: Dada a existência da presciência divina, da providência e da predestinação, será necessário conceder à liberdade apenas o que não prejudique nenhuma dessas realidades.—É igualmente evidente, pela fé e pela Escritura, que a liberdade humana existe, sem que a presciência, a providência, a predestinação, a reprovação ou a graça impeçam seu exercício (Ad art. 13, q. xiv, disp. 1, p. 3).
A LIBERDADE HUMANA. —1º Sua natureza. — Os luteranos confundem liberdade com espontaneidade; mas a essa libertas a coactione, que convém até mesmo aos atos de dementes, crianças e animais, é necessário opor a libertas a necessitate, faculdade de agir ou não agir quando todas as condições para a ação estão presentes, ou de fazer uma coisa quando se poderia fazer o contrário. Tal faculdade pressupõe uma escolha, razão pela qual é chamada de livre-arbítrio.
O livre-arbítrio pode, portanto, ser definido como vontade na qual está formalmente explicada a liberdade, com prévio juízo da razão [voluntas in qua formaliter sit libertas explicata, prævio judicio rationis]; e o agente livre se distingue do agente natural pelo fato de que este último age necessariamente, quando todas as condições requeridas para a ação estão dadas (Q. xiv, a. 13, disp. II, p. 10-11).
2º Seu domínio.—Para maior clareza na exposição, é preciso considerar os quatro estados em que a natureza humana pode se encontrar: o estado de natureza pura, o estado de inocência, o estado de pecado e o estado de graça.
De fato, o homem nunca esteve nem jamais estará no estado de natureza pura; mas isso, somente a revelação nos ensina. Nesse estado, ele seria dotado de razão e sensibilidade; o que significa que seriam naturais para ele os defeitos que resultam necessariamente da constituição do corpo—fome, sede, fadiga, doenças, morte—, bem como os movimentos sensíveis que solicitam a vontade em oposição à razão.
Deus criou o homem no estado de «inocência». Destinando-o a um fim sobrenatural e querendo que ele alcançasse esse fim por méritos próprios congruentes com o mesmo fim [per propria merita eidem fini congruentia], Deus lhe deu, não apenas os princípios pelos quais ele poderia merecer a vida eterna—as virtudes sobrenaturais—, mas também a justiça original, que livrava seu corpo da fadiga, das doenças, etc., e continha suas potências sensíveis. Assim, o homem podia seguir com prontidão e facilidade os mandamentos e merecer a vida eterna.
O pecado de Adão teve este duplo efeito: despir o homem dos dons sobrenaturais e privar as forças naturais do vigor que possuíam pela justiça original. Ele deixou essas forças no estado em que estariam se o homem tivesse sido criado in puris naturalibus, como ensina São Tomás, Ia, q. xcv, a. 1. Portanto, caso se possa dizer que o pecado feriu o homem in naturalibus, é considerando como naturais a justiça original e o vigor que dela resultava, embora esses fossem dons sobrenaturais.
Consequentemente, não apenas o pecado não destruiu a liberdade, mas, se a atenuou e a inclinou—conforme a expressão do Concílio de Trento, sess. VI, c. 1, Denz., nº 793—, foi em comparação com o estado de «inocência», e não com o estado de natureza pura.
A vontade permanece livre, não apenas em relação aos atos que lhe são conaturais, mas também em relação aos atos sobrenaturais, que pressupõem o auxílio da graça e são acomodados ao fim sobrenatural. Ela pode cooperar ou não com o auxílio divino, ou até mesmo realizar atos que lhe sejam contrários. Os atos sobrenaturais dependem, portanto, tanto da graça quanto do concurso da vontade, como define o Concílio de Trento, sess. VI, can. 4 e seguintes, Denz., nº 814 e seguintes (Q. xiv, a. 13, disp. III, p. 15-19).
3º Seu poder. 1. No estado de inocência, em razão da justiça original, nossos primeiros pais podiam, com concurso geral de Deus somente, evitar todo pecado, até mesmo venial, cumprindo toda a lei natural; essa é a opinião comum dos doutores e de São Tomás, (Ia-IIae, q. cix, a. 2, 3, 4, 8, 10 ad 3um). Eles podiam, da mesma forma, em razão dos dons sobrenaturais de fé, esperança, caridade e da graça, operar sua salvação e merecer a vida eterna, sem outros auxílios especiais e com o único concurso geral de Deus; essa é também a opinião comum. Eles possuíam, portanto, a mais plena liberdade, seja para afastar o que pudesse desviá-los de seu fim natural ou sobrenatural, seja para realizar tudo o que era necessário para alcançar esses fins (Q. xiv, a. 13, disp. IV, p. 19-20).
Fora do estado de inocência, com concurso geral de Deus somente, o homem pode querer e realizar atos morais acomodados ao seu fim natural, que sejam verdadeiramente bons e virtuosos em relação a esse fim, pois foi criado para isso, com sua inteligência e liberdade. (Q. xiv, a. 13, disp. V, p. 24.) Contudo, ele é incapaz de realizar qualquer coisa que conduza ao seu fim sobrenatural, sem um auxílio de ordem sobrenatural. Isso é verdadeiro até mesmo para qualquer ato que, por parte da vontade ou da inteligência, representasse uma preparação remota para a graça, e se explica, em oposição ao erro de Pelágio, pelo fato de que a natureza não tem medida comum com a beatitude eterna e com a ordem sobrenatural (Q. xiv, a. 13, disp. VI, p. 26-27).
Com esses princípios estabelecidos—o primeiro sendo de opinião comum entre os escolásticos, exceto Gregório de Rimini, Capréolo e alguns outros, e o segundo sendo um artigo de fé—, pode-se estudar a cooperação do concurso geral de Deus, da graça e da liberdade nos principais atos sobrenaturais.
a) O ato de fé.—Pode-se considerá-lo, primeiramente, em sua substância, como sendo puramente natural. Sempre pareceu a Molina, assim como a Miranda, Caetano, Scot, etc., que, desse ponto de vista, o ato de fé está ao alcance da vontade livre auxiliada apenas pelo concurso geral de Deus; que, se forem propostas a alguém verdades e se explicasse elas, demonstrando-se que são reveladas e impostas à fé, é possível, unicamente com o concurso geral de Deus, aderir a elas por um ato puramente natural, insuficiente para a justificação. Não seriam fato de experiência? E não admite São Tomás que o herege, errando em um ponto de fé, dá às outras verdades reveladas um assentimento puramente natural? (IIa-IIae, q. v, a. 3). No entanto, embora não seja absolutamente necessário [simpliciter necessarium], o auxílio da graça intervém com frequência aqui, devido às dificuldades da fé natural (Q. xiv, a. 13, disp. VII, p. 30-35).
Quanto ao ato de fé necessário para a justificação, ele pressupõe um auxílio particular da graça preveniente e excitante, dirigindo-se à inteligência e à vontade. Trata-se da vocação interna para a fé. Essas graças de iluminação e moção são seguidas por um ato livre da vontade, que comanda o assentimento intelectual, e por esse próprio assentimento. Diz-se que, por esses dois atos, o adulto chega livremente à fé.
Finalmente, ocorre da parte de Deus a infusão na inteligência de um hábito sobrenatural de fé [habitus fidei supernaturalis], pelo qual o fiel realizará, doravante, à vontade, o ato de fé sobrenatural, com concurso geral de Deus somente. Esse habitus, assim como as outras virtudes sobrenaturais, são também poderosamente auxiliados por iluminações ou moções particulares provenientes dos dons do Espírito Santo, que levam à produção de atos mais fervorosos e importantes. Compreende-se, então, por que o habitus fidei supernaturalis é necessário: não é para facilitar a adesão da inteligência, como disseram Durando (In IIum, dist. XXVIII, q. I) e muitos outros, nem para torná-la mais segura e firme, como quis Soto (II. De natura et gratia, c. VIII), mas porque um auxílio sobrenatural é necessário para o ato salvífico, e é conveniente que aquele que foi conduzido à fé com a ajuda de auxílios especiais possa, doravante, multiplicar facilmente os atos, com o concurso geral de Deus somente (Q. xiv, a. 13, disp. VIII, p. 35-39).
Assim se vê em que medida o próprio início da fé e dos outros atos relativos à justificação provém de Deus. Tudo o que o homem fizer com suas forças naturais para produzir o ato de fé quoad substantiam [isto é, no que diz respeito à substância], para desejar aderir sobrenaturalmente às verdades reveladas, para pedir o auxílio necessário ou para se preparar para recebê-lo, nada disso pode merecer-lhe a graça preveniente, que é totalmente gratuita e unicamente obtida pelos méritos de Jesus Cristo. Santo Agostinho teve razão ao se retratar, após ter professado que o início da fé [initium fidei] depende da vontade livre auxiliada apenas pelo concurso geral de Deus (De præd. sanct., c. III, e Retract., L. I, c. xxiii).
No entanto, o papel da vontade não é nulo; ao conduzir suas criaturas a seu fim sobrenatural, Deus deixou espaço para a liberdade individual e para a ação da Igreja. Ele, ordinariamente, só concede a graça preveniente e excitante àqueles que tiveram conhecimento da fé pela pregação (fides ex auditu); e a experiência demonstra que as conversões dependem muito, por um lado, do talento e do valor moral dos ministros do Evangelho e, por outro, das disposições e da boa vontade dos infiéis ou pecadores (Q. xiv, a. 13, disp. IX, p. 39-43).
É verdade, conforme o conhecido adágio: àquele que faz o que está em si, Deus não nega graça [Facienti quod in se est Deus non denegat gratiam], que Deus sempre concede os auxílios necessários para a fé e a justificação para aquela pessoa que emprega todos os meios ao seu alcance para aderir às verdades da fé e renunciar ao pecado; mas não porque o esforço humano os mereça, mas porque Cristo assim decidiu, em concordância com o Pai eterno. Em virtude dessa convenção, nossa salvação está sempre em nossas mãos; e, assim como o concurso geral de Deus está à nossa disposição para a produção de atos naturais, também um auxílio suficiente da graça está à disposição de nossas forças naturais para a realização de atos salvíficos. Essa doutrina resulta da vontade salvífica universal de Deus, afirmada por São Paulo (I Tim. II, 4), e explica perfeitamente o deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus [Dedit eis potestatem filios Dei fieri], de São João (I, 12). Mas Deus frequentemente faz mais: não apenas está à porta da alma, mas bate, excitando a vontade dormente (Q. xiv, a. 13, disp. X, p. 43-45).
Se, portanto, alguns se convertem e outros não, isso não se deve precisamente ao fato de que os primeiros receberam a graça preveniente e a vocação interna, e os outros, não; pois a graça não é a única causa aqui. O Concílio de Trento definiu que o homem, chamado à fé e prevenido pela graça, permanece livre para não se converter (sess. VI, c. V, can. 4). A fé depende principalmente dos auxílios gratuitos pelos quais o Pai suavemente atrai a alma a Cristo, salvaguardando sua liberdade; e depende, em segundo plano, menos especialmente [minus præcipue], da vontade de crer. Quando, consequentemente, o Pai dá alguém a Cristo, tal ocorre por auxílios da graça que, em sua vontade eterna, Ele decide conceder, prevendo a adesão que, com isso, esse alguém será dado livremente a Cristo; mas, se Ele não previsse a livre cooperação do homem, sua vontade de conferir esses auxílios e sua concessão atual não teriam caráter de dádiva; e, apesar dessa vontade e dessa concessão, está no poder do homem não chegar a Cristo. Em outras palavras, se alguém é dado a Cristo, isso não depende apenas da quantidade ou qualidade dos auxílios que recebe, mas também de sua livre cooperação (Q. XIV, a. 13, disp. XII, p. 51-57).
Em que consiste essa cooperação no ato sobrenatural? Ela não é outra coisa, nem tem outra razão formal, senão o próprio ato. O ato sobrenatural, enquanto emana de nossa vontade livre, é cooperação com a graça; enquanto emana de Deus, é cooperação com a vontade livre. Contudo, na realidade, nenhum efeito ou ação é devida ao livre-arbítrio que não seja, ao mesmo tempo, e principalmente, devida a Deus. Mais ainda, o efeito total provém de Deus e de nossa vontade livre, como duas partes de uma causa integral única.
Assim acontece quando dois agentes de influência desigual movem um objeto, sendo que a energia despendida por cada um deles não seria suficiente sem a cooperação do outro. Todo o movimento provém de cada um dos motores, que são causas parciais, mas com a cooperação do outro; a influência do motor principal não é outra coisa senão o movimento considerado enquanto emanado dele com uma força maior, e a influência do motor secundário não é outra coisa senão o mesmo movimento considerado enquanto emanado dele com uma força menor. Eis por que dizer, com o Concílio de Trento, que nossa vontade consente livremente com a moção divina ou coopera nos atos sobrenaturais, longe de excluir o auxílio divino ou a cooperação divina, o pressupõe. Tal é a explicação da cooperação simultânea à qual Molina deseja que se faça sempre referência quando, posteriormente, ele se vir obrigado, para evitar repetições, a abordá-la com menos nuances (Q. xiv, a. 13, disp. XII, p. 57-59).
b) A esperança.—Depois do que foi dito sobre a fé, admitir-se-á facilmente que, quando a inteligência adere às verdades reveladas, nossa vontade livre pode, com o concurso geral de Deus somente, esperar aquilo que Deus nos prometeu. Contudo, isso não será um ato sobrenatural, como o exigido para a salvação, mas um ato puramente natural. Não será a esperança cristã, mas a substância do ato de esperança (Q. xiv, a. 13, disp. XIII, p. 59-60).
c) A caridade.—Ela está incluída na contrição, declara Molina; por isso, é desnecessário tratá-la separadamente (ibid., p. 60).
d) O ato de contrição e de atrição.—Pode ele ser realizado, em sua substância, por nossa vontade livre auxiliada apenas pelo concurso geral de Deus?
Duas opiniões estão em questão. A maioria dos escolásticos—São Tomás, São Boaventura, Scot, Occam e sua escola, Vitória, Soto, Caetano, etc.—responde afirmativamente, embora vários exagerem o alcance da dor puramente natural pelo pecado, considerando-a como uma disposição suficiente para a infusão da graça, o que contraria a definição do Concílio de Trento (sess. VI, c. v e can. 3, Denz., n. 797 e 813).
Mas, na época de Molina, «não faltam autores» que julgam essa opinião perigosa e até próxima do erro. Isso porque eles distinguem entre resolução eficaz e resolução ineficaz, destacando a dificuldade daquela. No estado de decadência, dizem eles, o homem não pode fazer nada difícil sem um auxílio especial de Deus; portanto, embora o concurso geral seja suficiente para a resolução ineficaz, um auxílio particular é indispensável para a resolução eficaz. Distinção semelhante é encontrada em Bartolomeu de Medina, a propósito da caridade. (In Iam-IIae, q. cix, a. 3). Discutindo a passagem em que São Tomás ensina que o homem, antes do pecado, não precisava de um auxílio particular para amar a Deus acima de todas as coisas, mas que o necessita no estado de decadência: «trata-se aqui», diz ele com razão, «de um amor que inclui a observância de todos os mandamentos relativos à lei natural e ao fim natural, durante toda a vida». Então, julgando estar de acordo com São Tomás, ele distingue dois atos de amor natural a Deus: um, pelo qual se quer agradar-lhe em tudo e acima de tudo, com uma vontade ineficaz e frágil, que ele chama de veleidade; outro, pelo qual se deseja com uma vontade absoluta e eficaz, que, consequentemente, está ligado ao cumprimento real de todos os mandamentos. «O primeiro», diz ele, «não supõe mais do que o concurso geral de Deus; o segundo exige um concurso especial» (Q. XIV, a. 13, disp. XIV, memb. 2, p. 63-66).
Molina quer levar essa análise mais adiante: ele considera necessário admitir, entre o amor absoluto e eficaz a Deus, por um lado, e a veleidade, por outro, um amor absoluto ineficaz. Com efeito, o amor eficaz a Deus não é um ato simples; sua eficácia não depende apenas da decisão tomada de servir a Deus, mas da observância atual dos mandamentos. Ela exige duas condições: que a vontade decidida a observá-los tenha recebido as forças suficientes para isso, e que ela as use livremente. Ora, o homem decaído, mesmo se estiver em estado de graça, já não possui a força para observar por muito tempo toda a lei, natural ou sobrenatural, sem um auxílio especial de Deus. Esse auxílio, que se distribui ao longo da série de seus atos cotidianos, é muito diferente daquele pelo qual ele é justificado; eis por que a perseverança no bem, mesmo na ordem puramente natural, depende da cooperação livre do homem ao auxílio «diário» de Deus. Um único e mesmo ato de amor absoluto pode, portanto, ser eficaz ou não, dependendo da execução ocorrer ou falhar. Essa observação permite interpretar, no sentido da opinião comum dos escolásticos, a passagem de São Tomás estudada por Medina; também permite afirmar que, se no estado atual o homem já não pode, somente com concurso geral de Deus, ter um amor natural que inclua o cumprimento de toda a lei natural, como podia antes do pecado, ele permanece, contudo, capaz, embora com mais dificuldade, de fazer um ato absoluto de amor inclinando a vontade a observar toda a lei natural (Q. XIV, a. 13, disp. XIV, memb. 3, p. 65-71).
Que amor a contrição inclui? É claro que a contrição natural ou mesmo sobrenatural não inclui nem exige o amor eficaz; o amor absoluto basta, seja ele eficaz ou não: quando o Concílio de Trento (sess. VI, can. 22) afirma que o justo não pode perseverar na justiça sem um auxílio especial de Deus, ele pressupõe uma justificação real, e, portanto, uma contrição real, independente da perseverança.
Em definitivo, Molina sustenta que a opinião dos antigos escolásticos sobre o poder da vontade no ato de contrição é provável: 1) porque, na ausência de objetos ou ocasiões de pecado, é fácil ao homem decidir evitar o pecado no futuro, sua natureza o inclinando a escolher o menor de dois males; 2) porque tal decisão é um ato puramente natural e próprio da vontade livre; 3) porque não é menos difícil aderir aos mistérios revelados do que decidir evitar o pecado no futuro; 4) finalmente, porque frequentemente se encontram homens que se confessam com a vontade de evitar todos os pecados mortais, exceto um, e essa resolução, em razão da restrição que inclui, evidentemente não pode ser tomada com o auxílio particular de Deus.
Mas ele não se pronuncia sobre a opinião contrária, comumente adotada nas escolas de todos os países, devendo retornar a ela ao tratar das tentações (Q. XIV, a. 13, disp. XIV, memb. 4, p. 71-74). Ele apenas se preocupa em mostrar que ela não se impõe, pelo fato do Concílio de Trento (sess. XIV, c. IV) ter definido que a atrição é um dom de Deus e um movimento produzido pelo Espírito Santo (Q. XIV, a. 13, disp. XIV, memb. 5, p. 74-79).
A conclusão de tudo isso é que: 1) na produção de todos os atos sobrenaturais necessários à justificação, somos livres, e isto depende de nós; 2) após a justificação, somos livres para realizar, com a ajuda das virtudes sobrenaturais recebidas e de outros auxílios divinos, atos que nos merecerão um aumento de graça e de glória, e podemos livremente, ou perseverar na justificação, ou perdê-la pelo pecado mortal (Q. XIV, a. 13, disp. XV, p. 84-85).
e) Poder da vontade livre em relação ao cumprimento da lei.—O Concílio de Trento definiu ( VI, c. XI, can. 23) que pessoa nenhuma, mesmo em estado de graça e com os auxílios que tiveram os santos, pode, sem um privilégio especial, como aquele que Maria teve, evitar durante toda a vida todo o pecado venial. A opinião comum, no entanto, admite que o homem pode evitar cada pecado venial em particular, já que só há pecado se houver liberdade (Q. XIV, a. 13, disp. XVI, p. 85-86).
Quanto à lei que obriga sob grave obrigação [sub gravi], a fé ensina que o homem em estado de graça pode observá-la por longo tempo e até mesmo por toda a sua vida, com os auxílios cotidianos que Deus está sempre disposto a lhe dar (C. Trid., sess. VI, c. XI), mas que uma longa perseverança no cumprimento de toda a lei não é possível sem um auxílio especial de Deus (ibid., c. X e can. 22). Deve-se acrescentar que um auxílio especial pode se tornar necessário em razão da frequência ou de uma dificuldade notável da obrigação. As mesmas conclusões se impõem, a fortiori, para o homem privado da graça habitual (Q. XIV, a. 13, disp. XVII, p. 87-91).
A questão do poder da vontade livre, auxiliada apenas pelo concurso geral de Deus, frente às tentações graves e às dificuldades, às vezes consideráveis, apresentadas pelo cumprimento da lei natural, é mais obscura e merece exame. André de Vega (De justificatione et gratia, q. XI, sq.) resolve-a de forma negativa: «no estado de natureza decaída», diz ele, «a vontade livre é incapaz, somente com o concurso geral de Deus, de superar fortes tentações e até mesmo de realizar um ato moralmente bom que seja difícil, como professar a vida religiosa ou dar uma esmola muito generosa». Essa foi também, ao que parece, a opinião de Medina (In IIa-IIae, q. cix, a. 3) e talvez de Gregório de Rimini (In Ia, dist. I, q. III, a. 2, ad 3um); mas, segundo a mente de Molina, ela não possui outros partidários, embora Vega a declare comum e a atribua a Pedro Lombardo, Santo Tomás, Durando, Scot e Biel (Q. XIV, a. 13, disp. XIX, memb. 1, p. 93-96).
Ao contrário, Santo Tomás, Caetano, Santo Anselmo, Durando, Scot e Biel estão essencialmente de acordo com Soto (De natura et gratia, l. I, c. XXII, conclus. 2) e Ruard Tapper (Art. de libero arbitrio, fol. 316), que afirmam expressamente que não há boa obra puramente natural que o homem não possa realizar somente com o concurso geral de Deus (Disp. cit., memb. 2, p. 96-101).
Após desenvolver os argumentos apresentados por ambas as partes (disp. cit., memb. 3, 4, 5, p. 101-109), Molina se recusa a concluir: a segunda opinião lhe parece provável e manifesta suas preferências íntimas; ele considera, no entanto, que é necessário, provisoriamente e por razões de conveniência, não se afastar da primeira, «porque ela é tida como comum nas escolas de diversas regiões, e porque parece pouco seguro afirmar que o homem pode, sem o auxílio especial de Deus, vencer toda tentação, realizar bons atos naturais bastante difíceis ou realizar, quanto à substância, o ato de contrição ou de atrição, que são atos difíceis». (Disp. cit., memb. 6, p. 109.)
Um último problema surge a propósito do poder da vontade: como esse poder de evitar cada pecado, mortal ou venial, se concilia com a incapacidade de evitar todos? Os doutores respondem geralmente que o doente não pode fazer tudo o que o homem sadio faz; essa comparação, porém, não agrada a Molina. O doente não pode fazer tudo o que o homem sadio faz porque a ação exaure suas forças mais rapidamente; o homem decaído, por outro lado, não pode fazer tudo o que faria no estado de natureza íntegra, não porque a ação o exaure (ela, ao contrário, fortalece sua virtude), mas porque a natureza humana é tão fraca, o bem tão difícil e as tentações tão fortes que é impossível não sucumbir vez ou outra, embora ele possa evitar cada queda, se assim quiser.
A comparação adequada é aquela que Aristóteles apresenta (De Cœlo, II, XII) para explicar nossa incapacidade de agir sempre bem segundo a razão: a dificuldade de lançar uma flecha no alvo não varia, mas é tanto mais difícil acertar sempre o alvo quanto maior for o número de tiros (Q. XIV, a. 13, disp. XX, p. 113-119).
4° Existência da liberdade.—Ela é um fato da experiência, postulado, aliás, pela existência do pecado, e confirmado pelos testemunhos do Evangelho, dos Padres e pelas decisões conciliares. Molina a demonstra longamente, devido às negações de Lutero, enquanto destaca a contradição dos luteranos que se queixam daqueles que se recusam a abraçar seus erros (Q. XIV, a. 13, disp. XIX, p. 125-144).
Sem negar completamente a liberdade, Guilherme de Ockham, Gabriel Biel e outros «nominalistas» sustentaram que ela não existe no momento mesmo da volição ou da nolição, porque seria contraditório que a vontade não quisesse, no instante em que ela quer. Erro perigoso, pois, se a liberdade só existisse antes ou depois da volição ou da nolição, onde estaria a liberdade do ato criador, desejado desde toda a eternidade, e onde estaria a malícia da decisão contrária à lei de Deus? Scot percebeu bem isso (In Ium Sent., dist. XXXIX): a vontade, em qualquer momento que se considere, é anterior ao seu ato, assim como toda causa é anterior ao seu efeito; sendo livre por natureza, ela pode, portanto, a qualquer momento querer ou não querer. Quanto ao argumento de Ockham, ele se baseia numa confusão entre sentido composto e sentido dividido: é verdade que a vontade, no momento em que quer alguma coisa, não pode simultaneamente não querer (sentido composto); não é verdade que, por isso, sua volição não seja livre (sentido dividido) Q. XIV, a. 13, disp. XXIV, p. 144-147.
[Sentido composto e sentido dividido foram pela primeira vez distinguidos em Aristóteles, em seu Refutações Sofísticas, diz respeito a forma pela qual se analisar proposições e argumentos: em um se considera a totalidade das coisas em suas relações entre si, o contexto inteiro, todas as esferas das realidade em conjunto, já o sentido dividido analisa cada parte separadamente, cada esfera da realidade em si e de si mesma, assim, é verdade que ao se considerar todo o processo da volição e o que lhe compete, a liberdade não exista no exato momento em que se quer algo, já que seria contraditório agir e não agir ao mesmo tempo, mas no sentido dividido, abstraíndo cada elemento que compõe o processo da volição, a liberdade está sim na volição--do Editor].
O CONCURSO DIVINO.—Deve-se considerar separadamente o concurso geral, pelo qual Deus concorre com todas as causas segundas, incluindo a vontade livre, e o concurso particular, pelo qual Ele auxilia a vontade no cumprimento das obras sobrenaturais, pois esses dois tipos de concurso são muito diferentes e se relacionam de maneira distinta com nossa vontade livre.
1º O concurso geral de Deus.—Será estudado sucessivamente em seu relacionamento com as causas segundas, quaisquer que elas sejam, e em seu relacionamento com a liberdade de agir na ordem natural.
Concurso divino com as causas segundas, quaisquer que sejam.—Este é um dos pontos essenciais sobre os quais Molina tem uma teoria própria. Para compreender bem a teoria de Molina sobre esse ponto, é importante situá-la em relação às teorias de Biel, Durand e de São Tomás de Aquino.
Gabriel Biel (In IVum Sent., dist. I, q. 1, a. 1 e 3, dub. II e III), seguindo Pierre d’Ailly e certos teólogos mencionados por São Tomás (Sum. theol., Iª, q. cv, a. 5; In IIum Sent., dist. I, q. 1x, a. 4; De pot., q. III, a. 7; Cont. Gent., l. III, c. LXIX), insiste tanto na onipotência divina, que a atribui de forma própria e total a todos os efeitos. Tomando ao pé da letra os textos de São Paulo, I Cor., XII, «Que opera tudo em todos» [Qui operatur omnia in omnibus] e II Cor., III, «não que sejamos suficientes para pensarmos de algo como se de nós viesse, mas que nossa suficiência vem de Deus» [Non quod sufficientes simus cogitare aliquid a nobis quasi ex nobis, sed sufficientia nostra ex Deo est], afirma que o fogo não aquece e o sol não ilumina, mas que Deus aquece e ilumina neles e em sua presença. Portanto, a causa primeira é a única eficiente; as outras não são mais do que causas sine quibus non, no sentido de que Deus decidiu produzir, somente em sua presença, os efeitos que lhes atribuímos.
No extremo oposto, Durand declara (In IIum Sent., dist. I, q. v) que as causas segundas agem e produzem seus efeitos, sem que Deus concorra de outra forma, senão pela conservação de suas naturezas e das forças que Ele lhes deu. O fogo aquece por sua própria virtude específica; mas só pode fazer isso porque Deus o conserva e mantém seu poder calorífico. A ação da causa segunda sobre o efeito é imediata, enquanto a de Deus é apenas mediata.
Dessas duas teorias, a primeira, abandonada no tempo de Molina, é rejeitada por ele como contrária à evidência, e tola, segundo a expressão de São Tomás; a segunda, considerada errônea pela maioria de seus contemporâneos, é qualificada por ele como «pouco segura». São Paulo, Atos, xvii, não insinua que Deus coopera imediatamente em todos os nossos atos, quando diz «Nele nos movemos» [in ipso movemur]? E se o concurso divino é necessário para a conservação dos seres, não o é, a fortiori, para a produção dos efeitos? Dizer que Deus não coopera imediatamente na produção e conservação dos efeitos, implicaria também uma grave derrogação à sua onipotência, já que Deus não poderia mais suprimir as ações sem suprimir as substâncias (Q. XIV, a. 13, disp. XXV, p. 147-152).
Resta a solução mais detalhada de São Tomás (Ia, q. cv, a. 5), segundo a qual Deus coopera de duas formas com as causas segundas: Ele lhes dá e conserva o poder de agir, como dizia Durand; além disso, Ele as move, aplicando, por assim dizer, suas formas e virtudes à ação, como o trabalhador utiliza o machado para cortar. Deus e a causa segunda são dois agentes coordenados entre si; assim, como ocorre sempre nesses casos, o segundo age pela virtude do primeiro, no sentido de que é movido por Ele a agir.
Nessa doutrina, Molina vê uma dupla dificuldade: 1. Ele admite ingenuamente não compreender muito bem o que pode ser, nas causas segundas, o movimento e a aplicação à ação que seriam obra de Deus. O exemplo do machado é enganoso, diz ele, pois há instrumentos que possuem o «poder integral de agir», como a semente, ou que são esse mesmo poder, como o calor do fogo. Instrumentos desse tipo não precisam ser movidos e aplicados por causas principais; eles produzem seus efeitos por si mesmos; 2. Ele considera que, segundo essa doutrina, Deus não concorre, na realidade, senão de forma apenas mediata aos atos e efeitos das causas segundas, já que o termo de sua ação conservadora ou motora está nessas mesmas causas.
Molina sustenta, ao contrário, que Deus concorre imediatamente, immediate suppositio, com as causas segundas para produzir suas ações e seus efeitos. «Da mesma forma», diz ele, «que a causa segunda produz imediatamente sua operação e realiza por ela seu efeito, da mesma forma Deus, por seu concurso geral, influi imediatamente com essa causa sobre a mesma operação e produz por ela seu efeito». Isso é o que se chama concurso simultâneo, em oposição à premoção.
Que nem a influência de Deus, nem a da causa segunda sejam supérfluas, entende-se caso se considere que Deus age como uma causa universal e indiferente, determinada pelo concurso particular que resulta da natureza ou da livre escolha da causa segunda. Assim, o sol e tal semente geram tal planta. Sem seu duplo influxo, o efeito não seria produzido. Esses dois influxos, portanto, não existem na realidade um sem o outro. Mais ainda, não há duas ações, mas uma só, por exemplo, a queima do fogo, que é dita concurso geral de Deus, na medida em que emana de Deus, e concurso particular da causa segunda, na medida em que emana do fogo.
Para compreender bem o concurso geral de Deus, é necessário relacioná-lo, como seu princípio imediato, com a vontade divina eterna. É dela que, sem causar qualquer mudança em Deus, deriva toda a ação divina ad extra [para fora]. Livremente, Deus decidiu que, sob sua influência, diversos seres seriam criados no tempo e dotados de forças variadas para agir; mas vendo que não poderiam absolutamente fazer nada se Ele não influísse com eles sobre suas operações e efeitos, Ele quis suprir a fraqueza deles, respeitando a causalidade própria. Assim, Ele decidiu desde toda a eternidade que seu concurso geral estaria à disposição das causas segundas e que, sempre que elas se exercitassem naturalmente ou livremente, Ele cooperaria com elas como se seu concurso fosse uma lei natural.
De tudo isso resulta que, em relação ao efeito produzido, a causa primeira e a causa segunda são causas parciais ou causas integrais conforme o ponto de vista que se adote. Se entendermos por causa integral aquela que compreende tudo o que é necessário para produzir o efeito, Deus e as causas segundas formam uma única causa integral, composta de duas causas parciais. Não se deve, no entanto, dizer que cada uma produza apenas uma parte do efeito: o efeito todo é de cada uma, como de uma causa parcial que exige o concurso simultâneo da outra. Assim, quando dois motores puxam um navio que cada um seria incapaz de mover sozinho, cada um é causa parcial do movimento inteiro. Se, ao contrário, entendermos por causa integral aquela que é única em seu grau, Deus é causa integral, porque é a única causa universal; e as causas segundas também podem ser integrais, cada uma em seu grau.
Outra consequência dessas explicações: a subordinação, mesmo essencial, das causas segundo seu grau de universalidade, não implica necessariamente na ação da superior sobre a inferior: basta, para que dependam uma da outra na produção do efeito, que cada uma influencie imediatamente o efeito. (Q. xiv, a. 13, disp. XXVI, p. 152-158.)
2.O concurso divino com a vontade livre na produção dos atos naturais.—Que a ação da causa segunda seja imanente, como a da inteligência ou da vontade, ou que seja transitiva, como a do fogo, o concurso geral de Deus se exerce da mesma forma: não na causa [in causam], mas com a causa [cum causa]. Muitas vezes se esquece de notar que o concurso geral para a produção dos atos naturais é bem diferente do concurso particular para a produção dos atos sobrenaturais, já que este é um movimento na própria causa [in ipsam causam], para tornar a vontade capaz de fazer obras salvíficas (Q. xiv, a. 13, disp. XXIX, p. 171-172).
Deve-se, portanto, rejeitar, a propósito do concurso geral, o exemplo frequentemente proposto do instrutor que pega a mão do aluno e escreve com a colaboração deste. O influxo de Deus não é anterior no tempo ao influxo da vontade, porque não se exerce sobre ela, mas com ela imediatamente sobre o ato a ser produzido; ele tem sobre ela apenas uma anterioridade de natureza, no sentido de que, da existência do ato voluntário, pode-se concluir a existência do concurso divino (Q. xiv, a. 13, disp. XXX, p. 175-178).
Explica-se, assim, o porquê da vontade ser a única causa do pecado, embora o ato mau seja totalmente de Deus e totalmente da vontade livre.
A maioria dos antigos teólogos acredita resolver a dificuldade dizendo que o pecado, consistindo formalmente em uma falta de conformidade com a lei, tem apenas uma causa deficiente, e acrescentando que o ato, na medida em que vem de Deus, é sempre bom, pois recebe de Deus seu ser, de modo a falta de conformidade do ato com a regra, isto é, sua malícia, vem da liberdade. Mas é necessário explicar por que não é contrário à lei eterna, e portanto não mau em si, que Deus concorra imediatamente com a causa segunda no ato pecaminoso, enquanto seria mau em si que Ele o prescrevesse ou o movesse.
Os teólogos de Salamanca, Soto (De natura et gratia, l. I, c. xvi) e Cano (De locis theologicis, c. IV, ad 8um), argumentam que Deus coopera da maneira de uma causa natural e de alguma forma necessariamente, para concluir que os maus atos devem ser atribuídos a Ele quanto ao seu ser natural, não quanto à sua malícia. Mas Deus não estabeleceu livremente a lei de sua cooperação? A verdade é que o concurso divino, não se exercendo sobre a causa segunda e sendo por si mesmo indiferente, não determina a ação dessa causa, mas é determinado por ela quanto à espécie da ação [ad speciem actionis]. Se os atos livres são tais ou tais, e, por conseguinte, bons ou maus, não o devem a Deus, mas à vontade livre. Ninguém responsabiliza pelo crime o artesão que fabricou a espada com a qual o assassino cometeu o homicídio (Q. xiv, a. 13, disp. XXXII, p. 182-188).
Assim, nossos maus atos estão fora da finalidade para a qual Deus nos deu a liberdade e seu concurso geral. Ele não os quer, nem como autor da natureza, nem como legislador, pois os condena e busca desviar-nos deles; Ele gostaria que não existissem, se nós mesmos assim o quiséssemos, mas os permite em vista de um bem maior: o exercício normal de nossa vontade livre. Quanto às nossas boas obras, Ele as quer primeiro de uma vontade condicional, se nós as quisermos livremente: assim Ele quer a salvação de todos os homens; mas prevendo aquelas ações que emanam de nossa vontade livre, Ele as aprova e as quer a partir de uma vontade absoluta.
Em resumo, a bondade natural, que pertence a todo ato como tal, deve ser atribuída ao autor da natureza e causa primeira; a moralidade, ente de razão, que resulta de uma relação do ato com a lei divina, deve ser atribuída à vontade, como sua causa particular e livre (Q. xiv, a. 13, disp. XXXIII, p. 188-197).
Fonte da contingência das coisas.—Scot busca isso unicamente na liberdade divina (In Ium Sent., dist. II, q. ii; dist. VIII, q. v; dist. XXXIX; e In IIum, dist. I, q. II): «Se a ação de Deus fosse necessária, diz ele, tudo aconteceria necessariamente e não haveria efeito contingente».
Essa teoria, incompatível com a existência e o exercício da liberdade humana, parece repousar sobre uma falsa concepção do concurso divino, que faz com que ele se exerça sobre a causa segunda. Como esse concurso age com a causa segunda, diz Molina, e que basta que uma parte de sua causa integral seja livre para que o efeito também o seja, é preciso admitir que, se o concurso geral de Deus fosse necessário, ele não eliminaria por isso a contingência das coisas; assim como a graça preveniente ou cooperante, se fosse dada necessariamente em vez de livremente, não suprimira a nossa liberdade (Q. xiv, a. 13, disp. XXXV, p. 203-206).
2° O concurso particular de Deus com a vontade livre na produção dos atos sobrenaturais.— Além do concurso geral, Deus dá ao homem auxílios particulares ou «cotidianos», que podem ser chamados todos de graça, no sentido de que são gratuitos. São, por exemplo, pregações, exortações, leituras, inspirações piedosas por parte dos anjos, etc. Mas costuma-se reservar o nome de «auxilia gratiæ» àqueles que conferem aos atos um caráter sobrenatural, e que se relacionam com a salvação, pois dispõem à graça santificante e ao mérito. É nesse sentido que eles são entendidos aqui (Q. xiv, a. 13, disp. XXXVI, p. 206-208).
1.Natureza desse concurso.— Como vimos, quando Deus toca e excita a alma pela graça preveniente, esta permanece livre para consentir ou não, e, portanto, para fazer ou não fazer o ato de fé, de esperança ou de contrição. É evidente, por conseguinte, que a graça preveniente e a liberdade são duas partes de uma causa integral única, e que esses atos salvíficos dependem do influxo de cada uma delas. Eles têm da vontade livre sua substância, e da graça seu caráter sobrenatural e salutífero; podem ser chamados totalmente a partir da vontade e totalmente a partir da graça preveniente ou de Deus agindo por ela, e ainda assim são de cada uma delas apenas como uma parte de sua causa integral.
Por isso, não se deve confundir a graça preveniente com os atos aos quais ela leva a vontade.
Finalmente, o livre arbítrio e a graça preveniente são causas segundas dos atos salvíficos. Eles não são suficientes para a produção desses atos, pois uma causa segunda, mesmo sobrenatural, só pode agir por meio de um concurso simultâneo e imediato de Deus sobre o efeito. O ato salutífero, portanto, emana totalmente, embora de maneira diversa, de três partes de uma causa integral única: o concurso geral de Deus, a vontade livre, a graça preveniente. Esta última, aliás, não é absolutamente necessária, no sentido de que Deus teria o poder absoluto, porque isso não implica contradição, de compensar o influxo da graça preveniente com um influxo imediato e simultâneo, análogo ao do concurso geral, mas muito mais poderoso, que torna os atos como seriam se a graça preveniente os precedesse (Q. xiv, a. 13, disp. XXXVII, p. 208-210).
Domingo de Soto (De natura et gratia, l. I, c. xvi) e André de Vega (In concit. Trid., l. VI, c. vi-xi) exigem, além da graça preveniente, um outro auxílio particular, pelo qual Deus concorre imediatamente com a vontade livre para movê-la ao ato salutífero. Eles chegam a fazer depender da intensidade dessa graça «coadjuvante» o grau de fervor do ato, pois «mover e ser movido são correlativos». Molina tem muitas razões para não compartilhar sua opinião: ele não vê a necessidade desse outro auxílio particular; protesta contra o nome que lhe é dado, pois, na linguagem dos Padres e do Concílio de Trento (sess. vi, c. v e can. 4), a graça preveniente torna-se cooperante pelo fato da vontade consentir nela; afirma que a intensidade do ato não depende exclusivamente do auxílio de Deus, mas do influxo da vontade livre, pois o auxilio igual corresponde a atos desiguais (Conc. Trid., sess. vi, can. 7).
Talvez Soto e Vega tenham simplesmente pensado que, para os atos sobrenaturais, seja necessário um concurso de outra espécie do que para os atos puramente naturais. Tal não é o parecer de Molina. Sempre que ele vê ao lado de uma causa segunda natural uma causa segunda apta a produzir um efeito sobrenatural, ele atribui a ela o caráter sobrenatural do ato, e não acredita que o influxo imediato de Deus com ela seja de uma espécie diferente do influxo que Ele concorre na ação das causas naturais para produzir efeitos naturais. Assim, a vontade livre, uma vez dotada dos habitus sobrenaturais de fé, esperança, etc., pode, com o concurso geral de Deus, produzir atos sobrenaturais de fé, esperança, etc. Da mesma forma, a inteligência, quando penetra pela luz da glória, pode, com o concurso geral de Deus, produzir a visão beatífica. Do mesmo modo, a vontade livre ajudada pela graça preveniente pode, com o concurso geral de Deus, produzir um efeito sobrenatural (Q. xiv a. 13, disp. XXXIX, p. 222-226).
De tudo isso resultam claramente duas diferenças entre o concurso geral para os atos naturais e o auxílio da graça preveniente para os atos sobrenaturais: 1. O concurso geral não se exerce sobre o livre arbítrio como causa dos atos naturais, mas com o livre arbítrio sobre esses mesmos atos.—graça preveniente move o livre arbítrio e o torna capaz de produzir com ela atos sobrenaturais. 2. Como consequência, o concurso geral não precede, nem no tempo, nem por natureza, a ação do livre arbítrio: os dois influxos que dependem um do outro são simultâneos, unidos para produzir o efeito único. A graça preveniente, ao contrário, precede, de modo geral, no tempo ou por natureza, o influxo da vontade livre e pode não levar a efeito quando a vontade se recusa a cooperar com ela.
Mas a graça preveniente é chamada graça cooperante quando a vontade livre age com ela. Por esse título, seu influxo não precede, nem no tempo, nem por natureza, o da vontade. Além disso, esses dois influxos são simultâneos com o concurso geral e dependem um do outro. Todos os três constituem a causa integral única do ato sobrenatural.
As mesmas conclusões se aplicam aos habitus sobrenaturais de fé, esperança, caridade e aos dons do Espírito Santo, que têm razão de graça preveniente e cooperante em relação aos atos que deles emanam (Q. xiv, a. 13, disp. XL, p. 239-241).
Resta perguntar como surgem os movimentos da graça preveniente e se nossas faculdades: inteligência e vontade, concorrem eficazmente a isso. Vega considera mais provável que sua única causa eficiente seja Deus, e que nossas faculdades as recebam passivamente (In Concit. Trid., l. VI, c. viii). Soto pensa, ao contrário, que esses movimentos são produzidos simultaneamente com Deus pela inteligência e pela vontade (De natura et gratia, l. I, c. xvi). Molina não tem dúvidas de que essa última opinião é a verdadeira. A iluminação sobrenatural da inteligência não consiste, segundo ele, na infusão de novas «espécies», mas na concessão de um auxílio para ajudar a compreender de outra forma pensamentos propostos ou sugeridos por outros. Da mesma forma, a moção sobrenatural da vontade não é uma nova impulsão, mas um auxílio para dar valor sobrenatural a movimentos consequentes ao conhecimento. Pensamento e tendência sendo ações vitais, é necessário que em parte elas emanem da inteligência e da vontade.
Assim, pela graça, Deus não substitui, mas aperfeiçoa a natureza para que seus atos sejam salvíficos. Daí este corolário muito importante para discernir os movimentos da graça e explicá-los: é preciso levar em conta a ordem que a natureza ou as faculdades seguiriam, se sozinhas, em sua substância, produzissem os atos salutíferos.
Seu papel na justificação.—Eis como se deve descrever a série das graças que conduzem à justificação.
A fé.—Enquanto o homem, instruído pela pregação ou de outra forma sobre as verdades reveladas, reflete sobre elas, Deus o ajuda a compreendê-las melhor ou eleva o seu pensamento aos limites do conhecimento sobrenatural. Esse influxo divino é um movimento de graça preveniente, uma iluminação; e o conhecimento assim tornado sobrenatural é uma graça preveniente de fé da parte do intelecto [ex parte intellectus].
Quando o homem considera quão dignas de assentimento são as verdades assim conhecidas, nasce naturalmente um movimento em sua vontade, que, de certo modo, a convida a ordenar o assentimento da inteligência. Deus insere, por assim dizer, o seu auxílio nesse movimento, para torná-lo tanto mais urgente quanto sobrenatural. Esse influxo divino é novamente um auxílio de graça preveniente; e o movimento assim tornado sobrenatural é uma graça preveniente de fé da parte da vontade [ex parte voluntatis]. Essa dupla graça constitui a vocação à fé. Ela deixa ao homem a liberdade de crer ou não crer. Se ele quer crer, sua vontade, ajudada pelo movimento da graça preveniente, ordena o assentimento e, ao mesmo tempo, sua inteligência, movida por esse comando e ajudada pela iluminação divina, produz o ato sobrenatural de adesão às verdades reveladas.
Finalmente, o homem bem disposto por esses atos sobrenaturais de inteligência e vontade recebe o habitus fidei, que lhe é infundido por Deus somente, e graças a isso ele pode, então, produzir atos sobrenaturais de fé. Esse habitus compreende duas partes, das quais uma reside na vontade para mover o intelecto, e a outra no intelecto para produzir os atos ordenados pela vontade. A última, apenas, é propriamente chamada habitus fidei supernaturalis.
A esperança.—Quando o intelecto, iluminado pela fé, pensa na excelência da bem-aventurança e na bondade de Deus, um movimento espontâneo da vontade o leva a amar a bem-aventurança, com um amor intenso, e a esperá-la de Deus. Deus, de certo modo, se insere nesse movimento para intensificá-lo e torná-lo sobrenatural. Essa é a graça preveniente, que excita a vontade a esperar. Se, com a ajuda dessa graça, ela faz livremente o primeiro ato sobrenatural de esperança, ela recebe de Deus o habitus spei supernaturalis, que lhe permitirá multiplicar à sua vontade os atos semelhantes.
A contrição.—Quando, possuindo a fé e a esperança, o homem considera a perfeição de Deus e seus benefícios, é naturalmente levado a amá-lo. Nesse movimento também, Deus insere um auxílio de graça que o excita e o torna sobrenatural; na medida em que vem de Deus, esse movimento é chamado de graça preveniente de caridade. Prevenida por ela, a vontade pode fazer o ato sobrenatural de contrição, que é a última disposição para a graça santificante.
Se o pensamento do pecado evocasse o da beatitude perdida ou da condenação merecida, ele geraria naturalmente na vontade um movimento de temor de Deus que, também, seria ordinariamente excitado e sobrenaturalizado por um influxo divino. A vontade então poderia, sob o império desse temor sobrenatural, fazer um ato de atrição que, com o sacramento do batismo ou da penitência, seria suficiente para obter a graça da justificação (Q. xiv, a. 13, disp. XLVI, p. 253-259).
A justificação.—São Tomás (Ia-IIae, q. cxiii, a. 7, ad 4um; a. 8, ad 2um), Caetano, Medina, Soto, Cano pensam que a última disposição do adulto para a graça santificante é produzida pela própria graça, no momento em que ela é infundida. Molina admite não ter jamais compreendido como a graça santificante pode concorrer em um ato livre, que é a última disposição necessária para essa graça. Essa é a ocasião em que ele se explica sobre a natureza da justificação, que se define como translação do estado de culpa letal ao estado de glória e adoção como filhos de Deus, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador [translatio ab statu lethalis culpæ in statum gloriæ et adoptionis filiorum Dei per Jesum Christum Salvatorem nostrum]. A palavra justificatio, observa Molina, pode significar, seja o ato pelo qual Deus justifica a alma—a infusão da caridade e da graça habitual, seja a transformação que disso resulta—a expulsão do pecado e a transição para o estado de justiça. Nesse sentido, diz-se que a graça e a caridade justificam e que Deus justifica por elas, como sua causa formal, embora Ele seja a causa eficiente da sua infusão na alma. Mas é importante não confundir a justificação com os atos que preparam aquele que coopera com Deus, pois ele sempre se prepara para ser justificado, não se justifica a si mesmo (Q. xiv, a. 13, disp. XLVI, p. 259-273).
3º A presciência de Deus.—Molina mostrou que há contingência tanto nas obras da natureza quanto nas obras da graça. Ele retorna agora ao texto de São Tomás para discutir a fonte dessa contingência; depois, poderá mostrar como Deus conhece os futuros contingentes e como a presciência divina se concilia, seja com a liberdade da nossa vontade, seja com a contingência das coisas.
Raiz da contingência.—Como se disse, contra Scot, a contingência não provém apenas da liberdade de Deus. Qual é, então, sua fonte? A resposta a essa questão não pode ser simples, pois é necessário distinguir entre as coisas: 1° aquelas cuja produção e conservação dependem tanto de Deus que nenhum agente natural pode destruí-las, como, por exemplo, os anjos, o céu, a alma humana, a matéria prima; 2° aquelas cuja conservação não depende apenas de Deus; 3° aquelas que se referem à ordem da natureza; 4° aquelas que se referem à ordem da graça.
A raiz da contingência de todas as criaturas está unicamente na liberdade divina; pois, em relação a Deus, nada é necessário. Mas, uma vez que o mundo está estabelecido, supondo que Deus não faça nada que saia do concurso comum e da ordem natural, a contingência desaparecerá de todos os efeitos das causas segundas, caso se suprima a liberdade nas criaturas. A raiz distante da contingência desses efeitos é, portanto, a vontade de Deus, que criou os anjos e os homens livres, e dotou os animais do apetite sensível, uma espécie de vestígio de liberdade; mas sua raiz próxima e imediata é essa liberdade mesma. Finalmente, para os efeitos que se referem à ordem da graça, a raiz próxima e imediata de sua contingência é a vontade divina ou a vontade humana, conforme emanem apenas da vontade de Deus, como por exemplo, a encarnação, ou de uma vontade criada, auxiliada por um auxílio especial de Deus (Q. xiv, a. 13, disp. XLVII, p. 274-280).
Como Deus conhece os futuros contingentes. — a) Em sua própria existência.—São Tomás admite que todos os seres que foram, são ou serão presentes no tempo, estão presentes a Deus desde toda a eternidade, e segundo sua própria existência. A eternidade é uma espécie de duração indivisível que contém em sua unidade toda a extensão da duração, e que corresponde tanto ao tempo todo quanto a cada uma de suas partes, como a alma humana está toda inteira no corpo e em cada uma de suas partes. Tal é, ao menos, a interpretação de Caetano, Capréolo, Silvestre de Ferrara, etc. São Tomás explica, por essa presença em Deus segundo sua existência, o conhecimento divino dos futuros contingentes; e a presciência se concilia, acredita ele, com a contingência, porque o futuro, presente ao olhar divino, não deixa de ser contingente em relação às suas causas.
Mas, observa Molina: 1° Deus conhece futuros contingentes que nunca foram e nunca serão realizados, que, portanto, não existem também na eternidade; 2° Ele conhece naturalmente a si mesmo, e conhece nele tudo o que Ele contém eminentemente; portanto, antes de qualquer determinação de sua vontade, devido a seu conhecimento natural, Ele sabe o que a vontade livre de cada criatura fará livremente em tais e tais circunstâncias, se Ele a criar; 3° Ele não recebe das coisas o conhecimento que tem delas; sua existência, seja no tempo, seja na eternidade, não tem nenhum efeito em seu conhecimento certo do que será e do que não será; 4° a providência e a predestinação pressupõem uma presciência certa, anterior à existência de qualquer coisa.
Por todas essas razões, deve-se admitir que Deus não conhece apenas com certeza os futuros contingentes, porque as coisas existem fora de suas causas na eternidade, mas que antes de ter realizado qualquer coisa (antes, segundo a nossa maneira de falar), Ele conhece em si mesmo todos os futuros que todas as causas segundas realizariam, livremente ou não, com seu concurso, se Ele estabelecesse tal ordem de coisas e circunstâncias. Assim, pelo próprio fato de ter decidido criar o mundo como o fez, Ele soube em si mesmo e por seu decreto tudo o que será ou não será realizado pelas causas segundas.
Por outro lado: 1° como o conhecimento que Deus tem das coisas não depende de sua existência, é inútil pensar que as coisas existem na eternidade antes de se sucederem no tempo, o que parece dificilmente conciliável com a contingência e a liberdade; 2° já que os futuros contingentes não estão na eternidade senão pelo ser que terão no tempo, deve-se admitir que são contingentes na eternidade, até que se realizem no tempo. A eternidade é para o tempo o que o centro é para a circunferência; mas a linha do tempo está inacabada, ela para no presente, e a relação do centro com a parte não traçada é contingente; 3° se todos os futuros estivessem presentes a Deus segundo sua existência própria, haveria nele, neste momento, uma infinidade de coisas realizadas, o que parece absurdo e contraditório.
Essas observações permitem afirmar que a presença de todas as coisas em Deus não é suficiente nem para explicar a certeza da presciência dos futuros contingentes, nem para conciliar a contingência com a presciência. Em definitivo, o conhecimento que Deus tem dos futuros contingentes não é um conhecimento de visão, na medida em que não existirem realmente no tempo, mas é apenas um conhecimento de simples inteligência; se pode chamá-lo de conhecimento de visão, é porque ele é eterno e haverá um momento em que coexistirá com os futuros realizados no tempo (Q. xiv, a. 13, disp. XLIX, p. 286-296).
b) Pelas ideias.—São Boaventura in Ium (dist. XXXIX, a. 2, q. iii) afirma que Deus conhece com certeza os futuros contingentes pelas ideias de todas as coisas que Ele tem em si; opinião que Caetano e outros também atribuem a São Tomás. Scot, por outro lado, sustenta que Deus só pode conhecer nas ideias o que é possível, e que os futuros contingentes só são conhecidos com certeza por Ele na livre determinação de sua vontade; teoria mais que perigosa, que suprime a liberdade, e que um discípulo de São Tomás atribuiu a seu mestre.
Segundo Molina, antes de qualquer determinação de sua vontade, Deus conhece pelas suas ideias ou sua essência todas as naturezas contingentes, não somente como possíveis, mas também como futuras, embora esse último conhecimento seja condicional, pois está ligado à hipótese da criação de tal ou tal ordem de coisas e causas, em tais ou tais circunstâncias. Quando surge a determinação de sua vontade, seu conhecimento dos futuros se torna absoluto. Mas essa determinação voluntária não é, como para Scot, aquela pela qual Ele inclinaria e determinaria a vontade criada a agir de tal ou tal maneira, é aquela pela qual Ele decide criar a vontade livre em tal ou tal ordem de coisas e circunstâncias. A vontade criada agirá livremente; mas Deus a conhece tão bem, que sabe com certeza o que ela fará nas circunstâncias nas quais Ele vê que ela se encontrará. Nesse sentido, as ideias ou a essência divina são o objeto primário no qual Deus conhece com certeza os futuros contingentes. Ele também os conhece secundariamente em suas causas segundas (Q. xiv, a. 13, disp. L, p. 297-304).
Conciliar a liberdade e a contingência com a presciência.—A maioria dos teólogos—Guilherme de Auxerre, Gilbert de la Porrée, São Boaventura, Scot, Ockham, etc.—baseiam-se no fato de que a realização dos futuros contingentes depende da vontade livre, para afirmar que a concórdia entre a liberdade e a presciência provém do fato de que o conhecimento divino se modela, por assim dizer, nas decisões futuras da vontade livre. Deus, dizem eles, sabe com conhecimento necessário o que acontecerá necessariamente, e com conhecimento livre o que acontecerá livremente. As proposições: «o que Deus prevê se realizará», «o que acontecerá, Deus o previu como acontecerá», são necessárias no sentido composto, não no sentido dividido; como a proposição «aquele que correrá estará necessariamente em movimento». Seus dois termos estão necessariamente ligados, mas a contingência de um traz a de outro. A presciência divina se concilia com os futuros contingentes porque, o que quer que a vontade livre faça, Deus fará com que nada tenha sido previsto de outra forma.
Esses teólogos pretendem conciliar também a liberdade com a predestinação e a reprovação. É verdade, no sentido composto, dizem eles, que «o predestinado será necessariamente salvo» e que «o reprovado será necessariamente condenado»; mas, apesar disso, no sentido dividido, o predestinado pode ser condenado e o reprovado pode ser salvo, porque, se, como são livres para fazê-lo, o predestinado se recusasse a tomar os meios necessários para ser salvo e o reprovado tomasse os meios necessários para obter a vida eterna, Deus faria com que o primeiro não tivesse sido predestinado nem o segundo reprovado.
Para justificar essa explicação, alguns atribuem a Deus um poder atual sobre o passado, até mesmo em relação aos efeitos já realizados no tempo. Outros, com Ockham, Biel, Antônio de Córdoba e os «nominalistas», colocam esse poder sobre o passado no ato eterno de Deus, ou seja, no conhecimento e vontade divinas, na medida em que elas têm por objeto os futuros contingentes como objetos conhecidos, queridos ou permitidos. Não é, dizem eles, porque Deus prevê esses futuros que eles acontecerão; mas é porque serão livremente realizados pelas criaturas que Ele os prevê. São Boaventura e Scot, seguidos por muitos outros, alegam uma ideia totalmente diferente e que parece mais provável: o ato da livre vontade divina, dizem eles, e, consequentemente, o conhecimento livre de Deus em relação aos futuros contingentes, não recai sobre o passado; ele se realiza no presente indivisível da eternidade, que corresponde inteiramente ao conjunto do tempo, passado, presente e futuro. Assim é que o conhecimento e a vontade imutáveis e eternos de Deus atingem indiferentemente tudo o que se realiza livremente no tempo, a qualquer momento que seja.
Soluções desesperadas, pensa Molina, e que repugnam à perfeição do conhecimento divino, pois removem toda certeza ao torná-lo dependente do curso incerto dos eventos. É verdade que a escolha livre da criatura não depende da presciência divina; é verdade também que Deus previu desde toda a eternidade essa escolha; mas, se Ele a previu, não foi em razão dessa escolha em si, tal qual se realiza no tempo. O conhecimento que Deus tem dos futuros contingentes é desde já certo e imutável, como diz São Tomás, Iª, q. xiv, a. 13, ad 1um: ele não provém, portanto, do objeto, que permanece contingente até sua realização, mas do fato de que sua inteligência perfeita, conhecendo a fundo as causas segundas, sabe o que elas se decidirão livremente (Q. xiv, a. 13, disp. LI, p. 304-315).
Conclusões.—1. O triplo conhecimento de Deus.—Há, portanto, em Deus, um conhecimento pela qual Ele vê, na essência, o que as causas segundas fariam livremente em todas as circunstâncias em que poderiam ser colocadas. Esse conhecimento não é puramente livre, como aquele que segue a livre determinação de sua vontade; também não é puramente natural, como aquele que é coextensivo à sua potência; deve-se chamá-lo de misto ou médio. Ele se aproxima, de fato, do conhecimento natural, na medida em que precede o ato livre da vontade divina, e do conhecimento livre, na medida em que se refere ao que faria a vontade livre, se Deus criasse tal ou tal ordem de coisas.
Essa afirmação, postulada pela existência da liberdade, que é de fé assim como a presciência e a predestinação, pode parecer perturbadora à primeira vista. No entanto, será admitida, estima Molina, se nos lembrarmos do perfeito acordo e da coesão das seguintes verdades: nada está no poder das criaturas que não esteja também no poder de Deus: Deus, por sua onipotência, pode inclinar o livre arbítrio para onde quiser, exceto para o pecado; tudo o que Deus fizer por intermédio de uma causa segunda, Ele pode fazer por Si mesmo, a menos que esteja implicado no efeito que emana de uma causa segunda; Deus pode permitir o pecado, mas não ordená-lo, excitá-lo ou incliná-lo; que um ser livre se oriente de tal ou tal forma, se colocado em tal ou tal ordem de coisas e circunstâncias, não provém do fato de que Deus o prevê, nem do fato de que Ele o quer, mas do fato de que esse ser o quer livremente.
Segue-se manifestamente de tudo isso que o conhecimento pelo qual Deus, antes de decidir a criação desse ser, prevê o que ele faria na hipótese de ser colocado em tal ordem de coisas, depende do que esse ser faria livremente; enquanto que o conhecimento pelo qual Deus sabe absolutamente o que a criatura livre fará de fato, é sempre livre em Deus e depende da determinação voluntária, pelo qual Ele decidiu livremente criar tal ser livre na ordem das coisas.
Como Deus é causa das coisas.—a) Unicamente por seu conhecimento puramente natural, ao qual se junta o seu ato de vontade livre, Deus é causa de tudo o que decorre d’Ele imediatamente ou por intermédio das causas segundas necessárias, agindo independentemente de qualquer liberdade criada.
b) Por seu conhecimento puramente natural e por seu conhecimento médio, Ele é causa remota de tudo o que emana ou depende de algum grau de uma vontade livre criada; Ele é causa próxima dessas mesmas coisas pela determinação de sua vontade.
c) O conhecimento livre de Deus não é causa das coisas, pois segue a determinação de sua vontade.
Como Deus conhece os futuros contingentes.—Embora o conhecimento de Deus não seja, de nenhuma forma, tirado das coisas, não é porque Deus conhece um futuro que ele existirá, mas, ao contrário, é porque esse futuro será produzido que Deus sabe que ele o será. Com efeito:
a) Ele conhece os futuros dos quais é causa total e imediata, na determinação de sua vontade criadora. b) Ele conhece os futuros que serão produzidos pelas causas segundas necessárias, na determinação de Sua vontade que decide criar essas causas. c) Finalmente, Ele conhece os futuros que emanam das causas segundas livres, na determinação de sua vontade de as criar tais e em tais circunstâncias.
Harmonia entre a liberdade e a presciência.—Visto que os futuros contingentes não dependem da presciência, mas ao contrário; visto que as causas segundas produzem seus efeitos naturalmente ou livremente como se a presciência não existisse, é claro que esta não prejudica a liberdade e a contingência das coisas. Essa conclusão geral se aplica tanto à ordem sobrenatural quanto à ordem natural. Resulta daí que o homem deve trabalhar para sua salvação, assim como o agricultor para sua colheita, o doente para sua cura e o soldado para sua vitória, sem se inquietar com a presciência divina (Q. XIV, a. 13, disp. LII, p. 315-333).
A VONTADE DIVINA. — A vontade divina se realiza sempre? Para responder a essa questão, é necessário distinguir, em Deus, com São João Damasceno, De fide orthod., 1. Il, c. xxix, a vontade absoluta e a vontade condicional.
1° Tudo o que Deus quer com vontade absoluta se realiza sempre. A vontade divina pode ser absoluta de duas maneiras: conforme ela se refere a um objeto independente de qualquer liberdade criada; ou conforme se refere a um bem que depende dessa liberdade; pois Deus quer com uma vontade absoluta todos os bens que produziremos livremente. No primeiro caso, sua vontade se realiza sem que qualquer criatura possa resistir-lhe; essa é propriamente a vontade eficaz. No segundo caso, também se realiza sempre, porque segue a presciência, que é infalível.
2° Aquilo que Deus quer com uma vontade condicional não se realiza sempre, porque a realização dessa vontade depende da livre ação da atividade criada. Assim, Deus quer que todos os homens sejam salvos, mas nem todos o são; quer que se observem Seus preceitos e conselhos, mas nem todos são observados. No entanto, o pecador que se afasta da vontade de Deus não escapa dela de outro modo, pois a vontade absoluta pela qual Deus quer punir aqueles que Ele prevê que morrerão em estado de pecado se realiza sempre.
3° Pode-se perguntar se Deus não quer absolutamente tudo o que acontece, pois Ele é causa de todo ser, e Ele o é por sua vontade. Contudo, é necessário fazer distinções aqui. Deus não quer absolutamente a existência dos atos pecaminosos realizados pela vontade criada; mas Ele tem a vontade absoluta de permitir esses atos e de concorrer, por Seu influxo geral, para sua produção. Ele não os quer absolutamente, isso é de fé; mas quer absolutamente permiti-los e concorrer para que sejam produzidos, caso contrário, não seriam produzidos (Q. xix, a. 6, disp. 11, p. 392-395).
III. A PROVIDÊNCIA.
1° O que ela é.—A providência divina é a ideia da ordenação das coisas em relação aos seus fins, tal como Deus a conhece e se propõe a realizá-la, por si mesmo ou por intermédio das causas segundas. Ela é um ato da inteligência prática, complementado por um ato de vontade (Q. xxi, a. 1, disp. I, p. 403-404).
Para que haja providência, não é necessário, ao contrário do que pensava Caetano, que os fins providenciais sejam sempre atingidos. Apesar da simplicidade do decreto providencial, pode-se, de fato, distinguir nele uma intenção absoluta e uma intenção condicional, uma intenção primária e uma intenção secundária. A providência dirige os anjos e os homens para seu fim, no sentido de que ela quer realizar uma ordem de meios pelos quais eles atingirão esse fim, se assim o quiserem. Esta providência não inclui uma vontade absoluta, mas condicional; por isso a ordem providencial é muitas vezes frustrada.
No entanto, se o pecado é oposto aos fins providenciais, ele, no entanto, entra no plano da providência de ser permitido, visto que a liberdade é diretamente desejada por Deus; a providência pode até ter a intenção secundária de usar o pecado em benefício do culpado ou de terceiros, ou de tomar, por assim dizer, a ocasião para manifestar mais sua bondade, sua potência ou sua justiça, pela encarnação, redenção ou castigo.
2° Providência e presciência.—Para ser perfeita, a providência implica o conhecimento prévio do que resultará dos meios estabelecidos por ela.
Em razão dessa presciência, diz-se que a providência de Deus é infalível, porque o que ela prevê se realiza sempre. A presciência, porém, não é essencial à providência; pois outra coisa é a ordem das coisas, das causas e dos meios estabelecidos por Deus, outra coisa é o conhecimento do que, dado essa ordem, as criaturas farão livremente. Com isso, entende-se facilmente que a providência não está necessariamente ligada aos eventos, enquanto há uma ligação necessária entre a presciência e eles: a providência sendo o que é, os efeitos poderiam ser o contrário do que serão; enquanto que, se eles devessem ser diferentes, a presciência não seria o que é (Q. xxii, a. 1, disp. II, p. 405-414).
3° Sua universalidade.—Embora a ordem providencial nem sempre seja observada, tudo está submetido à providência, pois tudo acontece por sua vontade ou permissão. Ela alcança o pecado, seja impedindo-o de ser cometido, seja cooperando por meio do concurso geral com o exercício da vontade livre que o comete, embora o ato pecaminoso, como tal, deva ser atribuído apenas à sua causa particular. Ela atinge os efeitos chamados «fortuitos», os quais todos lhe são submetidos, como diz Santo Tomás (q. XXII, a. 2, ad Ium), embora essa «submissão» possa consistir apenas em uma simples permissão. Ela atinge os efeitos naturalmente necessários, pois Deus é o autor da natureza.
Além dessa providência geral, há também uma providência especial à qual se referem os auxílios que orientam o homem para seu fim sobrenatural, e as graças de escolha das quais Deus cerca certos justos (Q. xxii, a. 2, p. 414-416).
4° A conciliação da providência e da liberdade.—Caetano se esforça muito para conciliar a providência e a liberdade. Ele não aceita a opinião comum segundo a qual, se alguns efeitos das causas segundas são contingentes e outros necessários em relação às suas causas, todos são inevitáveis, porque todos se realizarão segundo os desígnios eternos da providência. «Deus», diz ele, «supera todas as causas necessárias ou contingentes, das quais Ele possui eminente em si os efeitos; é por isso que todos os efeitos são livremente produzidos por Ele, embora todos sejam necessários ou contingentes em relação às suas causas. Da mesma forma, sua providência não implica para os eventos nem que eles sejam evitáveis, nem que sejam inevitáveis; ela dirige os dois de uma maneira mais elevada, que escapa à nossa inteligência».
Essas explicações são, para Molina, a oportunidade de tornar precisa suas próprias ideias sobre a questão. Ele recusa, antes de tudo, admitir absolutamente que todos os eventos tenham sido desejados por Deus com uma vontade eficaz ou absoluta; que Deus tenha preparado e disposto as causas para que se produzam como o fazem—os abusos da liberdade, os pecados, como vimos, não são desejados nem preparados por Deus, mas apenas permitidos para fins superiores. Ele nega que a providência implique a realização dos fins para os quais ela dispôs os meios; a vontade salvífica universal não se realiza perfeitamente, embora Deus providencie a salvação de todos. Ele denuncia, finalmente, a confusão frequente entre a certeza e o caráter inevitável [isto é, a necessidade] dos eventos: um efeito é dito inevitável [necessário] em relação à sua causa; ele é dito com certeza em relação ao intelecto; de que um efeito é infalivelmente previsto por Deus, pode-se concluir que ele acontecerá, não que será produzido inevitavelmente [necessariamente].
Em suma, conclui ele, não é mais difícil conciliar a liberdade e o caráter evitável [contingente] dos eventos com a providência, do que conciliá-los com a presciência divina; o problema é o mesmo; a solução também. Não é porque Deus prevê os efeitos contingentes e providencia para que eles aconteçam, que eles ocorrerão, mas é porque serão livremente produzidos que Ele os prevê e providencia. Se eles deveriam ter sido outros, como poderiam ter sido, Deus teria previsto o contrário e providenciado (Q. xxii, a. 4, p. 416-423).
A PREDESTINAÇÃO E A REPROVAÇÃO.—Após uma análise geral, estudar-se-á sucessivamente a causa da predestinação e a causa da reprovação.
ANÁLISE GERAL.—1° A predestinação.—1. Sua noção.—A predestinação entra, em parte, no domínio geral da providência; ela é a ordem ou o conjunto dos meios pelos quais Deus prevê que a criatura racional deve ser conduzida à vida eterna, propondo-se a realizá-la. Portanto, ela está formalmente em Deus e, consequentemente, é eterna; mas sua execução ou seus efeitos, como a vocação, a justificação, os milagres, etc., são temporais e se realizam nos predestinados ou em outras criaturas (Q. XXIII, a. 1 e 2, disp. I, p. 424-427).
2.Onde consiste.—A predestinação divina necessita de um ato do intelecto, pelo qual Deus prevê os meios que permitem ao predestinado alcançar a vida eterna, e um ato de vontade, pelo qual Ele escolhe e decide concedê-los; todos os doutores concordam com isso. Eles se dividem quando se trata de dizer se a predestinação significa esses dois atos ou um só, e, no primeiro caso, qual ato ela significa principalmente. Scot afirma que a palavra predestinação significa somente o ato de vontade (In Ium, dist. XL) e São Boaventura, que ela significa principalmente o ato de vontade (In Ium, dist. XL, a. 1, q. 11). Molina, ao contrário, declara que ela significa ambos os atos, porque sua definição implica ambos; e principalmente o ato de inteligência, porque ela tira seu nome de um ato de intelecto (prædestinare, præordinare) e está relacionada com a providência, que se refere principalmente ao intelecto.
Vários admitem que, antes desse ato de inteligência e do ato de vontade que o completa, Deus, por um ato de vontade absoluta, escolheu aqueles que Ele queria salvar; é aí que Ele os teria predestinado, no sentido em que entendemos esta palavra, pois ele quer o fim antes de prever e querer os meios. Molina rejeita sem hesitação essa eleição anterior à predestinação: ele já mostrou que a previsão dos meios de salvação para cada um, na hipótese de ser colocado em tal ou tal ordem de coisas, não pertence ao conhecimento livre, mas ao conhecimento médio que precede todo ato de vontade livre; ele conclui que a ordem dos meios que conduzirão cada predestinado ao seu fim não é posterior à eleição, que, da parte de Deus, é totalmente livre. Na realidade, Deus escolheu os predestinados pelo fato de Ele se ter agradado com os meios e o fim que Ele previu para eles. Defender a necessidade de uma escolha anterior é transportar em Deus uma imperfeição de nossa inteligência, para a qual a escolha dos meios só é possível em vista de um fim previamente querido.
Outros afirmam que o ato do intelecto incluído na predestinação não é uma visão ou juízoz, mas uma ordem análoga a uma lei ou preceito. Tal ordem, declara Molina, é perfeitamente inútil; basta que o intelecto conheça os meios, para que a vontade escolha entre eles e os mova à operação (Q. XXIII, a. 1 e 2, disp. II, p. 427-431).
3.Seus efeitos.—São compreendidos entre os efeitos da predestinação, primeiro, a vida eterna e tudo o que diz respeito à ordem da graça, e, em geral, tudo o que contribui de alguma forma para a vida eterna ou seu aumento, como, por exemplo, o temperamento, a boa educação, as orações do próximo, a morte ocorrendo em determinado momento e não em outro. Mas para que algo seja efeito da predestinação, duas condições são necessárias: 1. que venha de Deus; 2. que se relacione com a beatitude.
Vê-se assim que o pecado não pode ser efeito da predestinação, mas que sua permissão pode ser, e que um benefício de Deus, como a graça santificante, pode ser apenas um efeito da providência, se aquele que a recebe não alcançar a vida eterna (Q. XXIII, a. 1 e 2, disp. III, p. 431-432).
2º A reprovação.—1. Noção.—A reprovação é diretamente oposta, não à predestinação, mas à aprovação, que é um ato do intelecto. Pode-se defini-la como: «Um juízo eterno pelo qual Deus julga a criatura racional indigna da vida eterna e digna do castigo, acompanhado da intenção de excluí-la para sempre do reino celestial e puni-la de acordo com seus pecados». Do nosso ponto de vista, a aprovação é posterior à predestinação, pois a predestinação não supõe que o predestinado seja digno da salvação; ao contrário, é por ela que Deus decide dar-lhe os meios para se tornar digno da vida eterna. Pelo fato de Ele predestiná-lo assim, Deus prevê absolutamente que o predestinado será digno da salvação e o aprova como tal, isto é, Ele o julga eternamente digno da vida eterna e, por essa razão, propõe-se absolutamente a recompensá-lo. Assim, há que se considerar em Deus uma dupla eleição: 1. Ele nos elegeu antes da criação para que sejamos santos, esta é a predestinação em Cristo; 2. Ele nos elege porque somos santos, esta é a aprovação que será expressa no dia do julgamento. À aprovação se opõe a reprovação; mas à predestinação nenhum ato se opõe, porque, se Deus é causa da salvação pelos meios que Ele dá para alcançá-la, Ele não é causa da condenação, que depende exclusivamente da vontade do pecador.
2.Efeitos.—Primeiramente, a exclusão atual do reino celestial, efeito comum a todos os reprovados, e depois as penas dos sentidos, punição dos pecados atuais; mas os pecados pelos quais se é reprovado não são efeitos da reprovação, pois não têm Deus como causa.
É verdade que o pecado não é produzido e que o pecador não se endurece sem a permissão de Deus; mas isso não é razão para afirmar, com São Tomás (q. XXIII, a. 3) e Driedo (Concordia, c. i), que a reprovação inclui a vontade de permitir o pecado e o endurecimento, como a predestinação inclui a de dar a vida eterna e os meios para alcançá-la; a reprovação, como vimos, não se opõe à predestinação, mas à aprovação, ela significa um julgamento que exclui o indigno da recompensa proposta, e é evidente que nenhuma indignidade precede, no homem em estado de graça, a permissão do primeiro pecado. Portanto, a vontade eterna de permitir os pecados que levarão à reprovação não faz parte dela; ela é apenas uma condição sine qua non. Talvez São Tomás não tenha querido dizer outra coisa.
A permissão do pecado é ela mesma um efeito da reprovação? Sim, em certo sentido, porque faz parte de um plano geral de manifestação da justiça divina; mas ela tem outros fins, e mais importantes: o respeito pela liberdade criada, e a possibilidade do mérito, como diz São Tomás; a ocasião fornecida para a encarnação e a redenção; as lutas e as vitórias dos justos; todas as coisas nas quais se manifestam magnificamente a bondade, o poder, a sabedoria, a justiça de Deus. Exceto no sentido indicado acima, a permissão do pecado, o endurecimento e a condenação são, portanto, simplesmente efeitos da providência, e não da reprovação. Deus não criou ninguém para a condenação; Ele não a quer senão por uma vontade consequente; não é por ela que Ele permite o pecado e o endurecimento.
Por isso, também é preciso rejeitar a opinião daqueles que imaginam Deus como tendo decidido, por assim dizer, primeiro criar todos os homens e anjos, depois dar a beatitude a uns (os eleitos) e não a outros (os reprovados) e, por fim, fornecer aos primeiros os meios de salvação (predestinação) e permitir aos outros o pecado e o endurecimento. A reprovação não é esse ato arbitrário, anterior a toda consideração de mérito e demérito: muitos homens são excluídos da vida eterna e punidos por seus pecados; Deus assim decidiu, não no tempo, mas na eternidade; eis em que sentido há, da parte de Deus, uma reprovação eterna (Q. XXI, a. 3, p. 433-439).
CAUSA DA PREDESTINAÇÃO.—A esse respeito, devemos nos questionar sobre o seguinte: 1. A predestinação tem uma causa nos predestinados? 2. O Cristo foi, pelos seus méritos, causa de nossa predestinação?.
1° A predestinação tem uma causa nos predestinados?—Em si mesma, a predestinação não tem outra causa senão a vontade divina; mas pode-se perguntar por que Deus predestina este e não aquele, e se o predestinado tem algum papel nas graças das quais é objeto.
Respostas rejeitadas por Molina. Deve-se evidentemente afastar os erros de Lutero, que nega a liberdade e o mérito, de Pelágio, que atribui ao mérito exclusivo do homem todo o efeito da predestinação, e de Santo Agostinho, que acreditava antes de seu episcopado na possibilidade de um ato de fé salvífico, sem a graça. Encontramo-nos então diante de várias opiniões entre os católicos (Q. XXIII, a. 1 e 5, disp. I, memb. 1 e 2, p. 439-412).
Em seu opúsculo sobre a predestinação, dirigido ao Concílio de Trento, o único que Molina leu, Ambrósio Catharin sustenta que Deus, ao dar a todos os homens os meios para se salvarem, caso o queiram, escolheu alguns, os predestinados, aos quais amou com um amor de predileção e aos quais, sem suprimir sua liberdade, deu tantas graças que é quase impossível que não sejam salvos. Esta opinião desagrada a Molina, porque ela não inclui entre os predestinados todos os que serão eleitos, e porque aqueles que ele chama de predestinados não serão com certeza salvos (Ibid., memb. 3, p. 442-444).
Outros afirmam que a razão da predestinação é a previsão do bom uso da liberdade que precede, ao menos por natureza, a primeira graça justificante. Essa é, apesar de divergências por vezes profundas, a opinião comum de Henrique de Gand, de São Boaventura, de Alexandre de Hales, de Gabriel Biel, de Javellus, de Tomás de Estrasburgo, de Alberto Pighius, de Bartolomeu Camerarius. Sem chegar, com Soto, a taxá-la de pelagianismo, Molina a considera falsa e pouco segura, caso a compreenda no sentido de que Deus regulasse eternamente a distribuição de seus dons com base na previsão do uso que a vontade livre faria deles; pois, nesse caso, esta seria, de fato, a fonte da predestinação (Ibid., memb. 4, p. 446-453).
A mesma razão é suficiente para rejeitar a opinião, sinalizada por Santo Tomás, segundo a qual os predestinados o são porque Deus prevê que farão bom uso da primeira graça recebida (Ibid., memb. 5, p. 453-455).
A opinião de Santo Tomás, a mais comum entre os escolásticos, resume-se em duas proposições: 1. Nada impede que os efeitos particulares da predestinação se comandem uns aos outros como causas finais ou meritórias. Dizemos, por exemplo, que Deus previu que daria a alguém a glória em razão de seus méritos (as disposições do homem são causa meritória da glória), e que ele lhe daria a graça para que merecesse a glória (a glória é causa final dos méritos e da graça); 2. A predestinação, em seu efeito integral, não tem causa no predestinado, mas somente em Deus. Desde toda a eternidade, Deus elegeu e predestinou uns para manifestar sua bondade, e reprovou os outros para manifestar sua misericórdia. Mas, se Ele predestina ou reprova precisamente tais ou tais indivíduos, não há razão para isso, senão que o quis livremente e que Ele é o senhor de seus dons.
Tudo isso, Molina admite, embora rejeite várias explicações que se procurou dar. 1. Alguns distinguem um duplo auxílio divino, um eficaz, o outro suficiente, mas ineficaz, atribuindo à vontade divina somente esse caráter de eficácia ou ineficácia. Deus, dizem, quis predestinar certos indivíduos, porque quis dar-lhes graças eficazes de vocação e de perseverança, enquanto a outros ele deu graças suficientes, mas ineficazes. O que se torna da liberdade e da responsabilidade nesse caso? Pergunta Molina (Ibid., memb. 6, p. 455-469). 2. Vários fazem preceder a predestinação e a reprovação da previsão do pecado, ou ao menos do pecado original. Deus, dizem, com Santo Agostinho, vendo toda a humanidade infestada pelo pecado original e destinada em conjunto à perdição, quis desde toda a eternidade dar a certos indivíduos, por Cristo, meios eficazes de salvação. Ele o fez gratuitamente, sem que houvesse qualquer razão da parte dos homens. Quanto aos outros, não quis usar dos mesmos benefícios, mas os deixou na massa de perdição e, por isso, quis puni-los. Solução insuficiente, afirma Molina, pois Deus não quis apenas a salvação de todos no estado de inocência; ele quer salvar, por Cristo, todos os homens caídos.
Princípios de solução.—A questão da relação necessária entre a presciência e a predestinação também merece exame. São Tomás (IIIa, q. 1, a. 3, ad 4um) afirma que a predestinação pressupõe em Deus o conhecimento dos futuros. Esta proposição, se aplicada a todos os futuros e no sentido de uma presciência absoluta, não hipotética, é evidentemente falsa; por isso, Caetano a entende apenas dos futuros contingentes da ordem sobrenatural. Na realidade, antes da predestinação dos homens e de Cristo como homem, isto é, antes de decidir a encarnação, Deus conheceu todos os futuros contingentes, não como absolutos, mas como hipotéticos: Ele soube, em parte por seu conhecimento puramente natural, em parte por seu conhecimento médio, o que ocorreria se quisesse estabelecer a ordem das coisas natural e sobrenatural que Ele de fato estabeleceu, e o que os anjos e os homens fariam livremente, em todas as ordens possíveis. Deve-se, portanto, representar, antes de qualquer ato de sua vontade livre, prevendo que, sem Cristo, alguns anjos e toda a humanidade se perderiam, e que Ele poderia dar ao homem um Cristo redentor. Então, de um único ato de vontade, Ele escolheu a ordem das coisas que foi e será realizada, e que compreende a natureza, a graça e a união hipostática.
Esta escolha (electio) implicava a intenção de criar os anjos e os homens no estado de inocência, para que, por sua vontade auxiliada pela graça, chegassem à beatitude; também a intenção de dar a todos essa beatitude, se não colocassem obstáculos. A escolha desta ordem de coisas era, portanto, predestinação, para os anjos que Deus previa que chegariam à vida eterna. Para os outros anjos e para os homens, era apenas providência, unida à vontade de permitir o pecado. Tornou-se reprovação para os primeiros, devido à previsão de sua queda, e à vontade de excluí-los do reino celestial. Quanto aos homens, dos quais Deus previa a queda geral devido ao pecado original, essa mesma escolha implicava a vontade de lhes dar um redentor e de lhes providenciar a todos os meios de salvação. Sob esse ponto de vista, esse ato único de vontade divina foi ao mesmo tempo eleição e predestinação de Cristo, e providência para todos os homens, unida à vontade de permitir o pecado atual. Devido à previsão de salvação, foi também eleição em Cristo e por Cristo de todos aqueles que, pela graça e pelos méritos de Cristo, chegariam à vida eterna (Q. xxiii, a. 4 e 5, disp. 1, memb. 8, p. 477-490).
Em que medida o efeito integral da predestinação depende da vontade livre? Deixemos de lado as crianças que morrem antes de ter o uso da razão; sua predestinação está ligada unicamente à recepção de dons gratuitos, isto é, ao batismo. Os adultos, obviamente, não são predestinados por causa de seus méritos; eles o são, no entanto, por seus méritos. Sua salvação depende, de fato, do livre uso que fazem dos dons de Deus; e o bom uso de sua vontade livre, seja na disposição para a fé, esperança, caridade e a primeira graça habitual, ou nas obras sobrenaturais às quais são prometidos aumento de graça e vida eterna, ou ainda da abstinência do pecado, resistência às tentações, vitória sobre as dificuldades, depende de ambas as causas livres: Deus e a vontade, agindo cada uma como parte de uma causa integral única. Se, portanto, consideramos o bom uso da vontade livre como obra de Deus, ele está incluído no efeito integral da predestinação do adulto, como uma de suas partes. Se, ao contrário, consideramos-lo como obra da vontade livre, ele é o que Deus exige para cooperar na salvação e o que torna o homem digno de recompensa eterna por seus próprios méritos, que também são dons de Deus.
Da mesma forma que, no lançamento de uma flecha para o alvo, deve-se distinguir a flecha que é lançada e o movimento imprimido pelo arqueiro que a destina ao alvo; da mesma forma, na destinação de um adulto à vida eterna, deve-se distinguir o adulto dotado de liberdade e responsabilidade, e os meios pelos quais Deus o destina e decide auxiliá-lo a alcançar livremente a vida eterna. No bom uso da liberdade, que leva ao alvo, nada vem de Deus que não venha ao mesmo tempo da vontade criada, e vice-versa; todo o efeito é de cada uma dessas causas parciais que em conjunto constituem a causa integral. O bom uso da liberdade é efeito da predestinação apenas em relação a Deus, devido à predestinação eterna; no entanto, depende da vontade livre que o efeito integral da predestinação seja realizado, e, por consequência, que ele seja um efeito da predestinação (Q. xxiii, a. 4 e 5, disp. 1, memb. 9, p. 494-501).
Conclusões de Molina sobre a predestinação eterna.
a)—O que ela é.—A predestinação de uma criatura é «a razão (a ideia) da ordem e dos meios pelos quais Deus previu, por seu conhecimento natural e seu conhecimento médio, que essa criatura chegaria à vida eterna, unida ao desígnio ou à determinação da vontade divina de realizá-la por sua parte».
b) Fonte de sua certeza.—O adulto assim predestinado obterá certamente a vida eterna, mas essa certeza resulta da presciência divina, não dos meios ou efeitos da predestinação. Em si mesma, a livre cooperação do predestinado com os auxílios divinos para produzir o efeito total da predestinação é incerta; mas Deus, da altura de seu intelecto e antes de qualquer ato de sua vontade, conhece de maneira certa o que esse homem fará livremente ao ser colocado nessas condições. O ato da vontade divina decidindo atualizar essas condições conclui a predestinação.
Entende-se, então, que no sentido dividido, o adulto predestinado possa não obter a vida eterna, visto que nem a predestinação antecedente, nem os dons ou a cooperação de Deus o impedem de agir livremente, de maneira a incorrer na danação, como se não tivesse sido predestinado; mas entende-se também que no sentido composto, ele não possa deixar de ser salvo, porque a predestinação e a perda da vida eterna são incompatíveis de fato, e que, se esse homem fosse abusar de sua liberdade para perder a vida eterna, Deus não teria previsto que ele chegaria lá pelos meios que lhe destinava, e não teria tido a vontade de conduzi-lo por eles à salvação.
Vê-se, finalmente, como a predestinação de alguém se concilia com a liberdade que ele tem de se salvar ou se condenar, já que a certeza inerente à predestinação não é outra senão a da presciência divina, da qual se explicou mais acima a conciliação com a liberdade e a contingência. Da mesma forma, as crianças predestinadas serão salvas, se nascerem, forem batizadas e morrerem antes de atingir a idade da razão. Em si, nada disso é certo. Mas Deus prevê que isso ocorrerá pelo jogo das causas naturais ou livres; daí a certeza da salvação dessas crianças.
c) Causa de seu efeito integral.—A predestinação do adulto, considerada em seu efeito integral, isto é, não apenas em seus efeitos sobrenaturais, mas em tudo o que é meio em relação à vida eterna: vocação externa, tempo e lugar de nascimento, temperamento, etc., não tem causa por parte do predestinado; deve-se unicamente à vontade misericordiosa de Deus. Nada, de fato, no predestinado, precede esse resultado integral; o uso da vontade livre, ao qual se poderia pensar, é posterior a uma série de circunstâncias que entram no efeito integral da predestinação; mais ainda, ele faz parte dele próprio. Nada que o acompanhe, pois Deus distribui suas graças e seus auxílios onde, quando e como quer. Nada o segue, pois o bom uso da vontade livre não é causa das decisões divinas relativas à criação, à concessão dos dons naturais ou sobrenaturais, à predestinação.
Esta conclusão permanece verdadeira, caso se entenda por efeitos da predestinação aqueles que se referem à ordem sobrenatural; seu conjunto depende da vontade de Deus somente. Se tivesse uma causa por parte do predestinado, seria a previsão do bom uso da liberdade; mas os auxílios da graça preveniente e excitante precedem o uso que será feito dela, e a importância das graças posteriores não depende de sua utilização: vide os justos acabarem sendo condenados, e um ladrão ser salvo.
Tudo isso não impede, no entanto, que a vontade livre seja uma parte da causa livre da qual depende uma parte do efeito total da predestinação; pois, como foi dito mais acima, se essa realidade é efeito da predestinação, não o é na medida em que emana da vontade criada, mas na medida em que emana de Deus pela predestinação eterna.
A fortiori, a predestinação das crianças, considerada em seu efeito integral, não tem causa ou razão por parte delas, mas somente pela vontade de Deus.
Dada, em Deus, a ideia de diversas ordens possíveis de coisas, de auxílios e de circunstâncias, e a previsão do que as criaturas fariam livremente em cada uma delas, na hipótese em que Ele desejasse escolher tal ordem de coisas em vez de outra, a escolha, por parte de Deus, de tal ordem de coisas em vez de outra ordem de coisas e a decisão de atualizá-la no que lhe diz respeito; a eleição em Cristo, para a vida eterna, de tais ou tais homens; a decisão de lhes dar, por meio de Cristo, os meios pelos quais Ele prevê que eles alcançarão livremente a vida eterna; tudo isso não tem causa, razão ou condição, nem mesmo condição sine qua non, no uso previsto da liberdade por parte dos predestinados ou de terceiros. Deus não decidiu dar a tais homens os meios que lhes dá e pelos quais os predestina por ter previsto sua livre cooperação; Ele o fez porque lhe agradou querer isso: pro suo beneplacito id illa voluit.
d) Papel da presciência.—Contudo, enquanto essa vontade não tem razão ou condição por parte do predestinado, a presciência tem uma, o que muitos não notam. A realização efetiva da predestinação do adulto depende, não apenas de Deus, mas da cooperação livre do predestinado; e não é porque Deus previu que o predestinado dará essa cooperação, mas ao contrário, é porque ele a dará que Deus a previu. Se, como pode, o predestinado fizesse o contrário, Deus teria previsto o contrário.
Uma vez que a livre cooperação do adulto é condição sine qua non para a presciência, segue-se que tudo o que inclui sua predestinação toma o caráter de predestinação, ou mantém apenas o de providência, conforme essa cooperação se dê ou não. Compreende-se, assim, que, a providência oferecendo a cada um ao menos meios suficientes de salvação, o destino de todos, predestinados ou reprovados, está em suas mãos, se fizerem bom uso de sua liberdade e chegarem à salvação; Deus o previu e sua vontade de lhes dar a vida eterna é predestinação; se, ao contrário, como Judas, não cooperarem com os auxílios providenciais, Deus previu que não alcançarão a vida eterna e sua vontade de a lhes dar não é predestinação. Assim, o decreto eterno de Deus em relação a cada indivíduo, seja no caso dos anjos, de Adão, do homem após a queda, é um decreto de providência; mas a presciência do bom uso que alguns farão de sua liberdade assistida pelos auxílios providenciais transforma esse bom uso em um decreto de predestinação para eles.
Isso não quer dizer que a predestinação dependa do indivíduo, uma vez que ela consiste na escolha feita por Deus de uma ordem de coisas na qual Ele prevê que esse indivíduo alcançará a salvação. Esse é precisamente o ponto delicado, «o abismo insondável dos desígnios de Deus». Deus conhecia uma infinidade de ordens providenciais nas quais os não predestinados chegariam livremente à vida eterna e, portanto, seriam predestinados; Ele conhecia igualmente uma infinidade de ordens providenciais nas quais os predestinados livremente perderiam a beatitude e seriam reprovados; e, no entanto, escolheu para uns e para os outros a ordem de providência na qual Ele previa que uns seriam salvos e outros não. Ele o fez por sua única vontade e sem levar em conta seus atos, mas sem injustiça, pois providenciou a todos os meios para chegar à vida eterna.
Notemos por fim que, se, no conhecimento médio, anterior ao ato livre da vontade divina, a certeza de que o predestinado chegará à vida eterna é hipotética, pois está subordinada à vontade de Deus de conceder tais meios e de tal maneira; em seu conhecimento livre, ao contrário, pelo qual, após o ato de sua vontade, Ele prevê simplesmente que o predestinado chegará à vida eterna, a certeza é absoluta e sem hipótese. No que diz respeito às crianças, depende de todas as causas livres que intervêm em seu nascimento, sua conservação, seu batismo, que a ordem de providência que as concerne e a vontade de Deus de lhes dar os meios de salvação prevaleçam sobre a predestinação (Q. xxiii, a. 4 e 5, disp. I, memb. 11, p. 505-523 e 528).
e) Concórdia entre a predestinação e a presciência.—A predestinação se fez segundo a presciência? Não, no sentido de que Deus teria decidido distribuir de tal ou tal maneira seus auxílios ou predestinar tais ou tais em razão ou por causa do uso que Ele previu que seria feito deles (cf. supra, memb. 4). Sim, no sentido de que dependia do livre uso que o adulto faria do auxílio divino que ele chegasse ou não à vida eterna; e dependia da presciência desse uso que esses auxílios tivessem razão de predestinação ou apenas de providência. Nesse segundo sentido, os Padres e os escolásticos pouco falaram; é dele (presciência média), no entanto, que depende a legítima conciliação da presciência, da providência e da predestinação com nossa vontade livre, bem como a legítima compreensão dos textos sagrados. Rom. VIII, I Ped., I; II Petr., I, etc.
Deus, ademais, embora não estando ligado pelo uso da vontade livre e pelas outras circunstâncias que Ele previu por parte do adulto, podia, entretanto, levar isso em conta, e era conveniente e perfeitamente razoável que o fizesse. Existem muitos exemplos disso na Bíblia. Os auxílios e os dons que Deus concede assim, no tempo, em consequência de algum bom uso da liberdade, os pecados que Ele permite ou as outras penas que Ele inflige em consequência de algum mau uso da liberdade, Ele decidiu de toda a eternidade concedê-los, permiti-los ou infligi-los em razão (propter) desse bom ou mau uso que Ele previu que existiria, na hipótese de que quisesse criar tal ou tal ordem de coisas. Molina considera até muito plausível, para a louvor e honra de Cristo e de sua santa mãe, que não apenas Deus tenha decretado dar a suas almas dons mais excelentes, mas que Ele previu que elas usariam melhor do que as outras sua liberdade, e que foi essa a razão pela qual foram escolhidas, em preferência a outras, para tamanha dignidade.
De acordo com essas explicações, compreende-se tanto a enorme diferença quanto a semelhança que existem entre a predestinação de Cristo para ser Filho de Deus pela união hipostática, e a dos outros homens em Cristo e por Cristo. Elas diferem no fato de que, na predestinação de Cristo como homem para ser ao mesmo tempo Filho de Deus, não se levou em conta o uso previsto de sua liberdade, uma vez que a natureza humana não deveria ser conduzida à união hipostática por esse uso; enquanto, na predestinação dos adultos em Cristo e por Cristo, tal uso deveria ser levado em conta, no sentido explicado acima, já que os homens foram predestinados à vida eterna para alcançá-la, se assim quisessem, por sua vontade sustentada pela graça, pelos auxílios e pelos méritos de Cristo. Elas se assemelham no fato de que, como a de Cristo, a predestinação dos outros homens, quanto ao seu efeito integral, foi puramente gratuita, uma vez que os auxílios e todos os meios sobrenaturais pelos quais Deus os predestinou derivam, como de sua fonte, da predestinação e dos méritos de Cristo. (Ibid., p. 523-528).
f) Concórdia entre a predestinação e a liberdade.—Em resumo, Deus, antes de qualquer ato livre de sua vontade, previa, com a ajuda de seu conhecimento puramente natural e de seu conhecimento médio, pela compreensão de sua essência, tudo o que estava ao seu alcance, entre outras coisas: as inúmeras criaturas racionais que Ele poderia criar, assim como as inúmeras ordens de coisas, auxílios e circunstâncias nas quais Ele poderia colocar todas essas criaturas e aquelas que decidiu criar; Ele previa também o que, nessas diversas ordens de coisas, aconteceria pela vontade de cada criatura racional, na hipótese de Ele querer estabelecer tal ou tal ordem de coisas, com tais ou tais auxílios de sua parte e tais ou tais circunstâncias.
Por um ato único e simples de sua vontade, Ele estabeleceu toda a ordem de coisas e seres que se desenrolaria desde a criação até o fim dos tempos, com os auxílios e os dons que decidiu conceder aos anjos e aos homens, de modo que cada um fosse livre para alcançar a vida eterna ou se afastar dela.
Por esse ato da vontade divina e da escolha de uma ordem de coisas e auxílios em vez de outro, os anjos e os homens que Deus previu que morreriam em estado de graça foram predestinados; os outros não o foram, embora, por esse mesmo ato, Deus tenha provido suficientemente para que chegassem à vida eterna, e que sua providência tenha sido mais ampla para alguns deles do que para muitos predestinados.
Se Deus escolheu uma ordem de coisas, de circunstâncias e de auxílios na qual apenas alguns foram predestinados; se, portanto, Ele quis dar a estes auxílios pelos quais previu que seriam salvos, enquanto aos outros Ele não quis dar senão auxílios pelos quais poderiam se salvar, embora prevendo que, por sua culpa ou pela de nossos primeiros pais, morreriam em estado de pecado, não há nenhuma causa ou razão por parte dos predestinados ou dos não predestinados. Tudo isso é devido à livre vontade de Deus e permanece incompreensível para nós. Sob esse ponto de vista, as Escrituras estão certas ao dizer que Deus escolheu aqueles que quis para predestiná-los, e que os eleitos e os predestinados o foram, de certa forma, por acaso.
Não obstante, é verdade que, dada a escolha eterna de tal ordem de coisas em vez de outra, se uns foram predestinados por essa escolha e pela providência, enquanto outros não foram, a razão ou a condição para isso foi que nem todos utilizariam essa ordem de coisas para morrer em estado de graça, e que Deus, da altura de sua inteligência, previu que estes o fariam e aqueles não.
Se, por impossível, Deus, ao escolher tal ordem de coisas e de auxílios, não tivesse tido o conhecimento médio pela qual penetrava a determinação do livre-arbítrio criado e as realidades contingentes que dele dependem, essa escolha teria tido razão de providência, mas não de predestinação, pois a incerteza inerente ao uso futuro do livre-arbítrio não teria sido resolvida para Deus. Portanto, não é à escolha da ordem de coisas e à providência divina que se deve atribuir a predestinação e a certeza da salvação do predestinado, mas à presciência somente.
Vê-se, portanto, como o nosso livre-arbítrio e o dos anjos se conciliam com a predestinação divina, como cada anjo pôde e cada adulto ainda pode alcançar ou não a vida eterna, como se a eleição da ordem de coisas que Deus escolheu desde toda a eternidade não tivesse tido razão de predestinação. Sem o conhecimento médio, de fato, essa eleição, que é apenas providência, deixa a atitude futura do livre-arbítrio na incerteza para Deus, assim como ela está em si mesma. Por outro lado, o conhecimento que a predestinação adiciona a essa eleição e à providência não retira absolutamente nada da liberdade, pois não chegamos à vida eterna porque Deus a previu, mas, ao contrário, Deus previu o que faríamos livremente e teria previsto o contrário se, como podemos, fizéssemos. Sem dúvida, é impossível que sejamos predestinados e não cheguemos à vida eterna, ou que Deus preveja nossa cooperação e nós não a demos; mas não deixa de ser verdade que, se não cooperássemos para nossa salvação, a predestinação e a presciência dessa salvação não teriam existido em Deus. Portanto, no sentido composto, é absolutamente necessário que o predestinado chegue à vida eterna; mas, no sentido dividido, permanecemos livres, e é possível que a predestinação não tenha existido.
Molina, portanto, não representa a predestinação como uma escolha puramente arbitrária pela qual Deus, sem levar em conta a liberdade de cada um e para ter a oportunidade de manifestar tanto sua misericórdia quanto sua justiça, teria decidido conduzir uns à vida eterna e afastar os outros por causa dos pecados dos quais sabia que seriam culpados, pelo próprio fato de não serem predestinados. Ele se recusa a representar Deus, de algum modo, enganando o livre-arbítrio de todos, para realizar seu desígnio, a fim de que, em todo caso, os predestinados cheguem à vida eterna e os outros acabem sendo condenados. Ele não pensa que o bom uso do livre-arbítrio dependa apenas da predestinação e de seus efeitos, de modo que o predestinado e o reprovado não possam se orientar em outro sentido, como se o primeiro não fosse predestinado e o segundo o fosse. Tudo isso lhe parece indigno da majestade e da bondade de Deus, contrário à Escritura e perigoso, senão totalmente errado.
Ele acredita, ao contrário, que Deus, prevendo todos os futuros, escolheu de uma só vez, em sua sabedoria, bondade, misericórdia e justiça, a ordem de coisas que se desenrolou desde a criação e se desenrolará até o fim dos tempos, como se a tivesse escolhido por partes, de acordo com os acontecimentos, sem ter a presciência do que fariam as criaturas livres. Ele acredita, consequentemente, que Deus decidiu eternamente criar e criou realmente os anjos e os homens no estado de inocência, como se não tivesse previsto a queda de alguns anjos e de nossos primeiros pais. Isso resulta dos dons e auxílios com os quais os criou e dos quais os proviu para que chegassem facilmente à vida eterna por seus próprios méritos, e está de acordo com a verdade e a bondade divinas, assim como com os testemunhos explícitos da Escritura.
Ele não pensa que Deus tenha tido em vista desde a eternidade a perda dos anjos e dos homens, para ter alguém a punir justamente, ou que tenha se alegrado com isso. A queda ocorreu fora da intenção de Deus e, por assim dizer, contra sua «veleidade», pois Ele tinha em vista o contrário e a esperava; mas, porque queria ver suas criaturas adquirir a beatitude livremente e por seus próprios méritos, a providência deveria permitir o pecado e tirar dele, por sua sabedoria, sua justiça, sua bondade e sua misericórdia, maiores bens, punindo eternamente os pecadores para fazer brilhar sua justiça vindicativa, e fazendo misericórdia a alguns por seu Filho, ao mesmo tempo em que salvaguardava a rigidez de sua justiça.
Deus, portanto, prevendo desde toda a eternidade a queda de alguns anjos e da humanidade, na hipótese de que Ele estabelecesse os anjos e os homens no estado de inocência, escolheu, com a ordem de coisas anterior à queda, a reintegração da humanidade pela vinda e pelos méritos de Cristo, e toda a ordem de coisas que se seguiria até o fim dos tempos, exatamente como se tivesse ignorado o futuro e escolhido a restauração da humanidade após a queda original.
Já que, por outro lado, todos os pecados derivam da queda original como sua fonte, deve-se acrescentar que eles também não se produzem pela intenção e vontade de Deus, mas acontecem mais contra sua «veleidade ». Por isso, é verdade que, para sua parte, Deus quer a salvação de todos sem exceção e não quer a morte do pecador, mas antes que ele se converta e viva. A escolha da ordem de coisas que se desenrolará até o fim dos tempos visa a realização dessa vontade salvífica universal.
Mas, nessa ordem de coisas, Deus deixou cada um dos adultos senhor de seus atos e de seu destino, como se Ele não tivesse a presciência do que fariam e se tornariam: portanto, como se não houvesse nele predestinação, mas apenas uma providência decidida a prover a salvação dos homens depois de ter tomado conhecimento de suas obras.
Em uma palavra: 1. Deus escolheu livremente a ordem de coisas e de auxílios, na qual Ele previu que certos adultos ou crianças chegariam à vida eterna e outros não, ao invés de outra ordem de coisas na qual os eleitos e os reprovados seriam diferentes; não houve causa nem razão para essa escolha por parte dos predestinados. 2. Mas se a escolha dessa ordem de coisas teve razão de predestinação para estes e não para aqueles, a razão ou condição foi, por parte dos adultos, que uns cooperariam livremente, outros não, e que Deus o previu pela altura de sua inteligência. 3. Por fim, embora Deus não tenha estado vinculado, em sua escolha de tal ordem de coisas, pelo uso que Ele previu que seria feito da liberdade, Ele pôde, no entanto, levar isso em consideração em muitos casos; convinha até que o fizesse, e Ele o fez de fato, como foi mostrado acima (Q. xxiii, a. 4 e 5, disp. 1, memb. 13, p. 539-515).
4.Como, à luz dessas conclusões, deve-se explicar certos textos dos Padres e das Escrituras.—Duas coisas, como vimos, são necessárias para que o adulto chegue à vida eterna e seja predestinado por Deus: que Deus tenha decidido lhe dar os auxílios com os quais previu que esse adulto cooperaria; que, de fato, esse adulto coopere livremente de modo a morrer em estado de graça. A primeira condição depende de Deus, a segunda do homem.
Os Padres anteriores a Pelágio e a Santo Agostinho, considerando esta última, quase todos afirmaram que a predestinação estava conforme à presciência do uso do livre-arbítrio, e se esforçaram para interpretar as Escrituras nesse sentido. Diante da heresia pelagiana que negava a necessidade da graça, Santo Agostinho mostrou, com base nas Escrituras, que o começo da salvação vem de Deus, pela graça preveniente e excitante, e que os auxílios da graça são dados segundo o bom prazer de Deus, não conforme o valor do uso do livre-arbítrio. Mas ele acreditou dever concluir daí que a predestinação eterna depende apenas da eleição e do bom prazer de Deus, e que não está conforme os méritos e o uso previsto da liberdade. Por isso, ele entendeu o Quer que todos os homens sejam salvos [Vult omnes homines salvos fieri], I Tim. II, não como se se referisse a todos os homens, mas somente aos predestinados. Doutrina perturbadora, que deu origem, por reação, ao semi-pelagianismo, mas que foi seguida, entretanto, por Santo Tomás e pela maioria dos escolásticos.
Os antigos Padres sempre admitiram sem controvérsia, na medida em que as Escrituras afirmam claramente, que somos dotados de livre-arbítrio; que ninguém pode alcançar a vida eterna se a graça não lhe for concedida pelos méritos de Cristo; que nenhum adulto pode ser justificado, merecer a vida eterna e nela chegar por suas próprias forças, sem o auxílio da graça sobrenatural; que há em Deus a presciência de todos os futuros e a predestinação dos bons para a vida eterna pela graça, pelos dons e pelos auxílios sobrenaturais; finalmente, que tudo isso não suprime nem impede o livre-arbítrio, mas se concilia com ele. Eles todos admitem igualmente que o que depende da criatura livre não acontece porque Deus o previu, mas que Deus o previu porque isso acontecerá. Quanto a questão de saber se o começo da salvação, se o primeiro ato salvífico de fé, esperança, contrição ou caridade emana da vontade do adulto somente, ou se supõe a graça preveniente ou excitante, ela foi discutida e decidida somente por ocasião da heresia pelagiana.
Apesar desse acordo unânime, Santo Agostinho e os outros sempre julgaram extremamente difícil encontrar uma explicação plenamente satisfatória da concórdia do livre-arbítrio com a graça, a presciência e a predestinação, que faça entender como o adulto opera ou não sua salvação e obtém ou não a vida eterna segundo sua própria vontade. Refutaram bem os hereges que quiseram prejudicar a graça ou a liberdade,«mas não sei», declara Molina, «se as explicações dadas abriram aos hereges o caminho de volta à unidade da Igreja, e puseram fim, tanto quanto teria sido necessário, às discussões que nasceram entre os católicos há mil anos» (p. 547).
Uns, considerando a cooperação humana, disseram que a predestinação foi feita conforme a presciência dos atos livres e os méritos de cada um; outros, considerando os auxílios gratuitos de Deus, disseram que a predestinação foi feita conforme a vontade e o bom prazer de Deus. Nem uns, nem outros notaram que uma coisa é a predestinação segundo a presciência (secundum præscientiam), no sentido de que Deus teria decidido dar seus auxílios conforme a qualidade dos atos livres ou por causa deles; e outra coisa é a predestinação com a presciência (non sine præscientia), no sentido de que Deus levou em conta o uso que Ele previu que seria feito da liberdade. Molina estima ter posicionado alguns princípios que poderiam ter sido de natureza a impedir o surgimento das heresias pelagiana e luterana, a facilmente pôr fim ao semi-pelagianismo, a apaziguar as discussões entre católicos.
O princípio fundamental é a maneira como Deus influi, por seu concurso geral, nos atos livres, e por seus auxílios particulares, os atos sobrenaturais; o segundo é a explicação do dom de perseverança, que requer, além de um auxílio especial de Deus, a livre cooperação do homem, sem a qual a vontade de dar esse auxílio não teria sido a vontade de conferir o dom de perseverança. Esses dois princípios foram suficientes para conciliar nosso livre-arbítrio com a graça.
Um terceiro princípio, o do conhecimento intermediário ou médio (scientia media), entre o conhecimento livre e o conhecimento puramente natural, trouxe à luz a concórdia do livre-arbítrio criado com a presciência.
O quarto princípio é que, se Deus quis criar tal ordem de coisas em vez de outra, não houve causa nem razão disso por parte dos predestinados ou dos reprovados; mas que, se essa ordem teve razão de predestinação para uns e não para outros, isso se deve à previsão do uso que cada um faria de sua liberdade. Esse princípio permitiu reduzir a dificuldade de conciliar a liberdade com a predestinação à questão de conciliá-la com a presciência, e fazer, a respeito da «predestinação segundo a presciência», uma distinção fecunda. A presciência não é causa da predestinação, mas não lhe é estranha.
Assim se esclarecem e se harmonizam a maioria dos textos patrísticos que parecem se contradizer. Aqueles que negam a predestinação segundo a presciência devem ser entendidos, tanto quanto possível, no primeiro sentido: querem dizer que os méritos individuais não são causa da predestinação. Este é o caso dos textos de Santo Agostinho e de seus discípulos. Aqueles, ao contrário, que afirmam a predestinação segundo a presciência devem ser entendidos, tanto quanto possível, no segundo sentido: querem dizer que Deus predestinou livremente os homens, levando em conta o bom uso que fariam de sua liberdade. Este é o caso dos textos de Orígenes, de Santo Atanásio, de Santo João Crisóstomo, de Santo Ambrósio, etc., sobre Rom., IX. Molina não duvida de que essa nova opinião sobre a concórdia do livre-arbítrio e da predestinação («a nemine quem viderim, hucusque tradita», por ninguém, que eu saiba, transmitida até agora) teria sido aprovada unanimemente por Santo Agostinho e pelos outros Padres, se a tivessem conhecido (Q. xxi, art. 4 e 5, disp. I, memb. ult., p. 545-550).
2º O Cristo foi, por seus méritos, causa de nossa predestinação?—1. O Cristo não foi causa de nossa predestinação quanto ao seu efeito integral. Ele nos mereceu os dons sobrenaturais que nos conduzem à vida eterna, não os dons puramente naturais que fazem parte, como auxiliares, do efeito integral da predestinação, como o temperamento que leva à virtude, o nascimento em país cristão, etc. Esses dons resultam da disposição do universo conforme Deus a estabeleceu antes da queda, e são independentes da ordem da graça. Tal é a opinião de Driedo, De redemptione et captivitate generis humani, t. II, c. 11, p. 3, art. 4.
2.No entanto, certos efeitos naturais têm sua origem nos méritos do Cristo: são todos aqueles que são obtidos pela oração, cuja eficácia se deve aos méritos do Cristo. Assim, a fecundidade de Rebeca, o nascimento de Samuel e de João Batista.
3.O Cristo não foi causa de nossa predestinação quanto ao seu efeito sobrenatural integral; pois ele não foi causa da encarnação, nem de seus méritos (cf. Santo Agostinho, De prædestin. sanct., c. XV), que estão no primeiro plano dos efeitos sobrenaturais de nossa predestinação.
4.No entanto, Ele foi causa, não apenas da primeira graça justificante e dos auxílios sobrenaturais que a seguem, mas também da fé e de todas as disposições sobrenaturais que preparam para a primeira graça, assim como dos milagres e de todas as favores sobrenaturais que nos ajudam. Foi assim que Ele foi causa meritória das orações de Santo Estêvão e de Santa Mônica, que trouxeram a conversão de São Paulo e de Santo Agostinho.
Aqui, Molina se posiciona contra Driedo (loc. cit.), Ruard Tapper (t. 1, art. 6, De satisfactione, fol. 242) e Capreolus (In IIIum, dist. XVII, q. a, ad Ium), segundo os quais o Cristo teria sido causa meritória da primeira graça e dos dons subsequentes, mas não da fé e das disposições que a precedem. Estas, segundo eles, seriam efeitos da predestinação eterna emanando unicamente da livre volição de Deus, e a primeira graça seria concedida apenas àqueles que estivessem assim preparados para receber a aplicação dos méritos do Cristo.
5.Em definitivo, deve-se afirmar simplesmente que o Cristo é causa de nossa predestinação, porque Ele é causa de seus méritos, de seus milagres e de tudo o que deles decorre para nós com vistas à vida eterna, e que Nele se encontram o fim e o modelo de nossa salvação. Subentende-se, evidentemente, que Ele não é causa de si mesmo.
Sem dúvida, São Paulo declara que fomos predestinados segundo a vontade de Deus (Efésios, I), e que a predestinação foi gratuita (Romanos, III); mas isso não impede que Deus nos tenha predestinados no Cristo, pelo Cristo, decidindo nos conceder gratuitamente o fruto dos méritos do Cristo; os dons sobrenaturais que conduzem à vida eterna (Q. xxi, a. 4 e 5, disp. II, p. 551-557.)
III. CAUSA DA REPROVAÇÃO.—A reprovação tem uma causa no reprovado?—Questão delicada à qual São Paulo (Romanos, IX) parece responder de forma clara pela negativa: Deus amou e predestinou Jacó, odiou e reprovou Esaú antes mesmo de nascerem, não pelas suas obras, mas por sua simples escolha; Ele tem misericórdia de quem quer e endurece a quem quer, como prova o exemplo de Faraó; da mesma massa de perdição, Ele tira, como o oleiro da argila, vasos de honra ou vasos de ignomínia, para manifestar seu poder ou sua misericórdia.
Parece, portanto, que a reprovação depende unicamente da boa vontade divina, sem que a previsão dos pecados tenha qualquer influência nisso.
1° Princípios da solução.—Isso não parece tão simples para Molina. O que é, de fato, a reprovação? Se a considerarmos do ponto de vista humano, podemos distinguir nela um triplo ato de vontade divina: a vontade de permitir os pecados que levarão à condenação; a vontade de endurecer o pecador, isto é, de não lhe conceder os auxílios com os quais ele poderia se recuperar; a vontade de excluí-lo do céu e enviá-lo para o inferno por causa dos pecados nos quais morrerá. Ora, esses três atos, que produzem de certa forma, no tempo, uma permissão, um endurecimento e finalmente a danação, têm em comum o fato de que todos pressupõem a previsão dos pecados a que se referem.
A vontade de permitir os pecados pressupõe uma previsão não simpliciter, mas ex hypothesi, uma previsão de que o adulto os cometerá na hipótese de Deus não o impedir com auxílios mais eficazes. Ela não é, aliás, nada mais do que a vontade de não os impedir, uma vez que Deus prevê que, se não o fizer, o homem os cometerá livremente.
A vontade de endurecer o pecador pressupõe a previsão de que o pecador cometerá, de fato, os pecados que Deus permite, e que, na hipótese de Deus lhe conceder depois certos auxílios com os quais ele poderia se recuperar, e não outros auxílios de que ele não necessita, ele não se recuperará, por sua culpa. Ela não é, aliás, nada mais do que a vontade de não lhe dar outros auxílios, mais amplos ou diferentes, com os quais Deus prevê que ele se recuperaria. Acontece que Deus vá mais longe e «abandone», como se diz, o pecador; ele faz isso quando, como punição, diminui seus auxílios e permite tentações ou ocasiões de pecado mais graves, o que torna a conversão mais difícil. Mas, em nenhum caso, esse «abandono» chega a tirar do pecador a possibilidade de conversão.
A vontade de excluir o pecador do reino celestial como indigno e de enviá-lo ao fogo eterno pressupõe a previsão dos pecados que o reprovado cometerá e de sua persistência culpável até a morte.
Assim, esses três atos de vontade divina pressupõem como raiz a previsão dos pecados que serão livremente cometidos pelo adulto. Eles, no entanto, se diferenciam entre si e nos seus efeitos, pois a vontade de permitir o pecado e essa permissão em si mesma podem emanar unicamente da liberdade divina, sem caráter penal, de modo que a vontade de endurecer o pecador pode ser uma punição, e a vontade de excluí-lo do céu e enviá-lo ao inferno é sempre um castigo.
Essas observações permitem responder à questão proposta.
2° Conclusões.—1. A reprovação tem, no reprovado, uma causa meritória: o estado de pecado no qual Deus prevê que ele morrerá. É verdade que a reprovação exige como condição sine qua non a vontade divina de permitir o pecado e de endurecer o pecador até a morte; mas viu-se que ela não consiste nesses dois atos: ela é apenas a vontade de excluir tal pecador da vida eterna, como indigno, ou de enviá-lo ao suplício eterno, se Deus prevê que ele morrerá no pecado.
2.Se, como diz Santo Tomás, a reprovação incluísse a vontade de permitir o pecado que levará à condenação, e de endurecer o pecador até o fim de sua vida, o efeito integral da reprovação não teria causa no reprovado. Ele teria, no entanto, uma condição, pois, se o reprovado não morresse no pecado, ele não teria sido previamente reprovado por Deus.
3.Pois que a vontade divina, seja de permitir o pecado de Adão e as outras faltas dos reprovados, seja de endurecer o adulto até a morte, depende da presciência que Deus tem de seu conhecimento médio, resulta que essa permissão, esse endurecimento e todos os efeitos da reprovação divina não têm outra certeza senão a dessa presciência, e que a dificuldade de conciliar a liberdade humana com a reprovação eterna de Deus não difere daquela de conciliar a liberdade com a presciência ou com a predestinação.
Compreende-se facilmente, então, dada a presciência, que o decreto divino sobre a ordem das coisas e dos auxílios que se desenrolariam até o fim dos tempos tenha tido, por exemplo, em relação a Judas, razão de providência, na medida em que foi uma vontade de criar Judas para a bem-aventurança e de lhe dar os meios para alcançá-la; razão de permissão do pecado, na medida em que foi uma vontade de não lhe dar outros auxílios além daqueles pelos quais ele se perderia; razão de endurecimento, na medida em que foi uma vontade de puni-lo pela sua traição por meio de uma supressão de auxílios que ele teria obtido sem isso e uma permissão das tentações mais graves, após as quais ele não se recuperaria; razão de reprovação, por fim, na medida em que foi uma justa decisão de excluí-lo do reino celestial e de puni-lo com penas eternas, por causa dos pecados nos quais Deus previu que ele morreria (Q. xxiii, a. 4 e 5, disp. IV, p. 561-573).
COMPLEMENTOS DADOS POR MOLINA NO «APPENDIX AD CONCORDIAM». Mal fora publicada a Concordia e ela foi atacada por adversários, cujo nome Molina declara ignorar. Lembra-se que Báñez estava à frente deles. Eles alegaram extrair, por via de consequência, uma dezena de proposições que recaíam sob proibição de ensino, imposta anteriormente pelo tribunal da Inquisição de Castela.
Molina se defendeu tão bem que, após um exame profundo, o senado supremo declarou não haver razão para impedir a circulação do livro. Como suas respostas desenvolviam e reforçavam utilmente algumas de suas afirmações, e, por outro lado, ele temia a difusão sem contraposição das críticas das quais havia sido alvo, Molina julgou prudente publicar sua defesa. Esta constitui a primeira parte do Appendix. A segunda parte é formada por réplicas curtas a 17 «observações» contidas, segundo Molina, «em outro documento», no qual o autor isolou do contexto diversos trechos da Concordia.
1ª parte.—As acusações contra Molina apresentadas à Inquisição se resumem a três objeções que se referem ao objeto da providência, à fonte da presciência e ao efeito dos auxílios divinos.
1.Objeto da providência. Molina foi acusado de ensinar equivalentemente as seguintes proposições: Deus não providenciou singularmente todos os atos bons morais, nem predestinou que se realizassem aqui e agora; mas apenas providenciou que eles fossem determinados pelo livre arbítrio da criatura [Deus non omnes actus bonos morales providit in singulari, nec prædefinivit, ut fierent hic et nunc; sed solum providit Deus illos determinandos a libero arbitrio creaturæ].—Certos bens foram realizados por nós no tempo, que não são providos por Deus.—Deus não providenciou, nem determinou o número de todas as coisas singulares, por exemplo, bois e formigas [Atiqua bona fiunt in tempore a nobis, quæ non sunt provisa a Deo.—Deus non providit, nec determinavit numerum omnium rerum singularium, v. g., boum et formicaruni].
Ele insistiu, pelo contrário, na universalidade da providência, que atinge, em particular, todos os atos ou efeitos bons ou maus; mas ele distinguiu na providência o plano divino, a razão da ordem das coisas para seus fins [ratio ordinis rerum in suos fines], que a constitui como tal, e a execução desse plano, que se refere ao governo do mundo e deixa espaço para a ação das causas segundas. Deus quer o bem e dispõe todas as coisas para que ele seja realizado; Ele não quer o mal, que Ele prevê e permite, e não preparou suas causas para que elas o realizem (p. 575-578).
2.Fonte da presciência. — Alegou-se resumir a doutrina da Concordia sobre as fontes da presciência na seguinte fórmula: Deus previu que eu falaria, não porque Ele predefiniu que eu falasse; mas porque eu falaria, por isso previu que eu falaria [Deus præscivit me locuturum, non quia prædefinit ut ego loquerer; sed quia ego eram locutus, ideo præscivit me locuturum]; e acusaram o autor de excluir a providência de todos os atos morais ou livres.
Molina começa lembrando a longa série de autoridades que ele alegou em seu texto (q. xiv, a. 13, disp. LII, p. 325 sq.) em favor de sua doutrina: os Padres são unânimes, de São Justino a Santo Agostinho, passando por Orígenes, João Damasceno, São João Crisóstomo, São Jerônimo, em ensinar que os futuros não acontecerão porque Deus os sabe de antemão, mas inversamente. Ele apela, então, à experiência que temos de nossa liberdade, ao poder e à sabedoria de Deus; rejeitar esta doutrina é suprimir o pecado, o mérito e renunciar a qualquer meio de conciliar a presciência divina com a contingência das coisas. «Além disso», prossegue ele, «a proposição citada não expressa meu pensamento: afirmo que uma predeterminação ou pré-definição livre da vontade divina é necessária para cada uma das ações das causas segundas, não apenas sobrenaturais, mas também naturais, e que ela é realmente a causa, de uma maneira que explicarei».
O ato de falar, para retomar o exemplo citado, pode ser ou moralmente bom ou indiferente, ou pecaminoso, ou sobrenatural e meritório. No primeiro caso, ele entra nos fins para os quais a vontade livre e os instrumentos da linguagem foram estabelecidos; Deus o previu por seu conhecimento natural e mediato, e decidiu, em sua eternidade, dar-lhe seu concurso geral; mas deixa o homem livre para não realizá-lo. No segundo caso, Deus coopera no ato como causa universal e decidiu permiti-lo para fins excelentes; mas não determinou a vontade e não quis que fosse realizado: é o homem que, abusando de sua liberdade e do concurso geral de Deus, determina-se para o pecado. No terceiro caso, Deus decretou eternamente chamar e ajudar o homem por graças prevenientes e cooperantes, tudo deixando-o livre; mas desde toda a eternidade lhe agradou que o homem cooperasse com suas graças, ele previu essa cooperação e a teve em vista, assim como o efeito total, por sua providência.
Além disso, quando se diz que Deus conheceu nossas ações futuras porque nós as faríamos livremente, esse «porque» (ideo, quia) não denota uma causa, mas uma condição sine qua non por parte do objeto. Sustentar que Deus conhece os futuros livres independentemente de nossa cooperação seria afirmar com os hereges que eles são inevitáveis, a menos que se pretenda, com Caetano, que, da presciência e da providência, decorre algo superior ao evitável e ao inevitável. Portanto, conclui Molina, eu não nego que Deus seja causa de nossas operações, mas apenas que Ele seja causa total. A providência determina a vontade humana a agir? Afirmar isso, caso se trate dos pecados, seria uma heresia. Para os atos bons, se «determinar» significa cooperar para a sua determinação por diversos auxílios, a providência os determina; mas se «determinar» significa produzir sem que a vontade se determine livremente, isso é um erro condenado pelo Concílio de Trento (sess. VI, c. v e can. 4) (p. 578-592).
3.Efeitos dos auxílios divinos. — Diz-se que Molina sustenta que, de dois homens não justos que recebem o mesmo auxílio de Deus, um se converte, o outro permanece no pecado; que o auxílio chamado suficiente às vezes se torna eficaz porque o homem coopera com ele para produzir seu efeito, e, por conseguinte, pode acontecer que, dois homens recebendo a mesma graça preveniente, um não coopere porque não quer, enquanto o outro coopere, de modo que sua cooperação equivale a uma graça.
Há, responde Molina, uma graça preveniente e uma graça cooperante. São graças realmente distintas ou é uma graça única que tem efeitos realmente distintos? A questão é deixada livre pelo Santo Ofício de Castela; mas o Concílio de Trento sustenta praticamente a unidade (sess. VI, c. v e can. 4), assim como Santo Tomás (Ia-IIae, q. XI, a. 2 e 3). Além disso, as virtudes sobrenaturais de fé, esperança e caridade não desempenham sucessivamente o papel de graças prevenientes e de graças adjuvantes? Em todo caso, a graça preveniente, como tal, independentemente de sua intensidade, deixa livre o pecador para consentir ou não; um pode, portanto, converter-se, enquanto o outro, com um auxílio igual ou até maior, não se converte (Conc. Trid., sess. VI, c. v e can. 4). A eficácia da graça preveniente depende, portanto, do livre consentimento do homem.
Isso quer dizer que nossa cooperação fornece força e eficiência à graça preveniente? De modo algum; mas Deus, que não quer nos salvar sem nós, estabeleceu que a graça preveniente não produziria seu efeito de conversão sem o nosso consentimento. Uma vez dado esse consentimento, a graça não é mais simplesmente preveniente, ela se torna cooperante e proporciona a conversão. Vê-se, portanto, que a distinção entre graça eficaz e graça ineficaz se aplica apenas à graça preveniente; a graça tal como necessária para a conversão é sempre eficaz (p. 592-599).
2ª parte.—Respostas de Molina a algumas observações.—Elas se limitam a destacar que seu adversário fez citações truncadas, a manter as afirmações levantadas por ele ou a explicá-las brevemente segundo as distinções já feitas acima (p. 599-606). Não nos deteremos mais sobre isso.
SÍNTESE DAS TEORIAS DE MOLINA.—Após esta longa análise, não será inútil sintetizar brevemente as teorias de Molina. Faremos isso aqui, destacando sua oposição ao que se costuma chamar de «tomismo», a fim de preparar o leitor para a compreensão das controvérsias cujas histórias serão esboçadas mais adiante.
Diante dos erros protestantes, Molina quis destacar e tornar preciso o papel da liberdade na conduta do homem. Para isso, estabeleceu como princípio que todos os atos sobrenaturais, de alguma forma, estão relacionados ao livre arbítrio; e então, afastando qualquer explicação que lhe parecesse minimizar ou até destruir a influência deste, expôs suas visões pessoais sobre a relação entre liberdade, graça, presciência, providência, predestinação e reprovação.
Todo o seu pensamento gravita em torno desses dois polos: o concurso simultâneo e o conhecimento médio.
1º Concurso simultâneo. Na ordem natural, declara Molina, o concurso divino necessário para a produção de qualquer ato não se exerce sobre o livre arbítrio; não consiste em um impulso prévio que leva a vontade a agir (premoção física dos tomistas). Pelo contrário, ele se exerce simultaneamente, com a vontade, sobre os atos que dela emanam (concurso simultâneo). Assim, a vontade não age como um instrumento nas mãos de Deus, causa principal, segundo a concepção dos tomistas; ela produz, por si mesma, uma parte do efeito realizado com o concurso divino, da mesma forma que um homem que puxa com outro uma mesma corda contribui com sua parte para mover o barco ao qual essa corda está atada. Deus e a vontade não são duas causas totais, das quais a segunda seria subordinada à primeira; mas duas causas parciais de um efeito total único.
Na ordem sobrenatural, pensa Molina, as coisas não acontecem de forma diferente. Sem dúvida, é necessário adicionar aqui, ao concurso geral de Deus, um influxo especial de graça, que eleva e excita previamente a vontade livre, tornando-a capaz de produzir atos sobrenaturais. Mas a vontade assim sobrenaturalizada não precisa, para agir na ordem sobrenatural, de um novo movimento divino, que se exerce sobre ela e a determina (premoção ou predeterminação física dos tomistas): desde que o auxílio prévio se mantenha, ela realiza livremente, com a graça e o concurso geral de Deus, o ato sobrenatural, que passa a ter assim três causas parciais (concurso simultâneo).
Dessa forma, decorrem duas consequências importantes:
1.Torna-se inútil estabelecer, entre graças prevenientes e graças cooperantes ou adjuvantes, uma distinção objetiva, como querem os tomistas; uma única e mesma graça é preveniente, na medida em que torna a vontade capaz de agir na ordem sobrenatural (in actu primo), e cooperante, na medida em que, com a vontade, ela realiza o ato sobrenatural (in actu secundo).
2.Não há necessidade também de sustentar, com os tomistas, uma distinção objetiva entre graças suficientes e graças eficazes: uma única e mesma graça é suficiente ou eficaz, conforme a vontade livre lhe dê ou não seu assentimento. A eficácia, portanto, não é um caráter intrínseco e específico: não há graças eficazes por si mesmas.
Assim, Molina quer dar um espaço maior à liberdade, nas duas ordens natural e sobrenatural; e, embora mantendo a plena transcendência do sobrenatural em relação à criatura, explicar como, com Deus querendo salvar todos os homens, a salvação de cada um está em suas próprias mãos.
2º O conhecimento médio. — Essa maneira de conciliar a graça e a liberdade pela teoria do concurso simultâneo não deixava de levantar sérias dificuldades do lado de Deus. Os tomistas explicavam a presciência divina, a providência, a predestinação e a reprovação por meio da premoção física e das graças eficazes. A rejeição da premoção física e das graças eficazes obrigava Molina, desse modo, a procurar outro meio de explicar como Deus conhece infalivelmente o futuro e dirige, com certeza, suas criaturas para o fim que lhes destinou. É aqui que ele recorre ao conhecimento médio.
Distinguiam em Deus um duplo conhecimento: o do possível e o do real. O primeiro chamava-se scientia naturalis, o segunda scientia libera. Entre o possível e o real, Molina distingue uma terceira categoria de objetos de conhecimento, o futurível, que seria realizado se certas condições o fossem. Ele faz disso o objeto de um terceiro conhecimento: a scientia media, que não se pode negar ao Deus onisciente. Desse «conhecimento médio» Molina não é o inventor, embora tenha dado a ele o nome; mas foi o primeiro a perceber a utilidade que se poderia tirar dele para tentar trazer uma nova solução aos problemas que o interessava.
Deus, diziam os tomistas, realiza infalivelmente no mundo seus decretos eternos, por meio de premoções físicas e de graças eficazes por si mesmas; ele prevê, nesses mesmos decretos, os atos livres da criatura. Molina explica a presciência infalível de Deus sem se apoiar em decretos predeterminantes que considera incompatíveis com a liberdade, mas apenas com a ajuda do conhecimento médio e da vontade divina. Sabendo, pelo conhecimento médio, o que cada vontade livre faria em todas as circunstâncias em que poderia se encontrar; sabendo, por seu conhecimento livre, em quais circunstâncias cada uma se encontrará de fato, devido à escolha divina de tal ordem de coisas determinada, Deus pode prever com certeza o sucesso das graças que destina a cada um. Sua presciência não repousa mais sobre os decretos de sua vontade, mas sobre a eminente compreensão que ele tem das vontades criadas.
Assim, explica-se também pelo conhecimento médio e pela livre vontade de Deus, a providência, a predestinação, a reprovação, e sua concórdia com a liberdade. De fato, a providência não é, segundo Molina, um ato de vontade absoluta, conduzindo infalivelmente os seres para o fim que Deus lhes destina; é um ato de inteligência prática: um plano, complementado por um ato de vontade absoluta sobre a ordem das coisas a ser realizada, e por um ato de vontade condicional sobre a conduta dos seres livres. A infalibilidade da providência, portanto, não resulta, segundo ele, de um movimento que ela imprime às vontades, mas do conhecimento médio.
A predestinação não é, como queriam os semi-pelagianos, consequente à previsão dos méritos do homem; ela também não se deve ao fato de que Deus, antes de qualquer previsão sobre o que fará sua criatura, decreta dar-lhe graças eficazes por si mesmas, como querem os tomistas; ela consiste, segundo Molina, simplesmente no fato de que, em sua misericórdia, Deus decide dar a alguns graças com as quais ele prevê infalivelmente, por seu conhecimento médio, que colaborarão livremente.
Da mesma forma, a reprovação não consiste na recusa de dar graças eficazes por si mesmas, mas em um castigo fundamentado na previsão do pecado; e na medida em que implica, da parte de Deus, a vontade de permitir o pecado e de deixar o pecador morrer na impenitência, ela repousa, também, sobre o conhecimento médio.
Resumindo, enquanto os tomistas explicam a infalibilidade da presciência, da predestinação e da reprovação pelos decretos divinos, Molina a explica pelo conhecimento médio; enquanto os tomistas fazem depender da predestinação e da reprovação a presciência divina, Molina, invertendo os termos, faz depender da presciência a predestinação e a reprovação. A esse preço, Molina considera ter libertado a vontade livre, que agora se exerce sem impedimentos, sob o duplo influxo divino, natural e sobrenatural. Segundo o que ela escolhe, ela põe em prática ou não o concurso divino, recebe ou não a graça eficaz, realiza ou não o plano providencial, salva-se ou se condena, sem que isso implique qualquer mudança, nem no conhecimento, nem na vontade, nem na ação de Deus, pois Deus soubera desde toda a eternidade o que ela faria na ordem das coisas que Ele escolheu realizar.
Sob esse ponto de vista, o esforço de Molina para salvar a liberdade aparece também como um esforço de simplificação na concepção da ação divina. A razão da diversidade dos efeitos—atos bons, atos maus; graça preveniente, graça cooperante; graça suficiente, graça eficaz; predestinação, reprovação—não é mais procurada em Deus, mas no livre jogo da vontade. E, ao mesmo tempo, as dificuldades comumente extraídas do governo divino do mundo e das almas, contra a bondade de Deus, ficam notavelmente atenuadas.
Conclusão.—O autor da Concordia, consciente da originalidade de suas ideias, acredita ter tão bem «conciliado» o livre-arbítrio com a graça, a presciência, a providência, a predestinação e a reprovação que, se seu sistema tivesse sido conhecido, as heresias sobre a graça não teriam surgido, ou teriam sido facilmente abafadas. Reconhecer-se-á ao menos que ele teve algum mérito ao explorar, por novos caminhos, uma das regiões mais misteriosas da teologia, e que o fez com um objetivo apologético, sempre atento às precisões dogmáticas trazidas pelo Concílio de Trento. Trabalho laborioso, onde ele teve mais frequentemente a oportunidade de mostrar sutileza do que profundidade, e onde só progrediu penosamente, com muitos desvios, como se o receio de errar superasse a alegria da descoberta a cada passo. Em tal matéria, certamente, era necessário prudência; mas uma vez que o sistema estivesse estabelecido no pensamento, importava delinear suas linhas com vigor e decisão. Molina, o escritor, falhou em geral nessa maestria que se reconhece pela precisão da expressão, pela clareza da frase, pela solidez da estrutura de uma obra. Ele mesmo percebeu isso e tentou compensar tudo isso com excessos e repetições. Não conseguiu senão tornar seu livro quase ilegível. Daí, no leitor, fáceis confusões, obscuridades, erros de interpretação, que contribuíram consideravelmente para indispor contra o autor e alimentar as polêmicas em torno de sua obra.