Texto introdutório (Alta Linguagem),
O seguinte texto é tradução de parte de um verbete, J. Carreyre, "Molinisme" em Dictionnaire de théologie catholique, ed. Alfred Vacant, Eugène Mangenot, e Émile Amann; Paris: Letouzey et Ané, 1929. O texto trata de introduzir ao assunto do molinismo de um ponto de vista histórico, para depois irmos, em outro texto, para um contexto doutrinário. Os textos entre colchetes "[ ]" são todas adições nossas para melhor compreensão do texto.
MOLINISMO
Usa-se o nome molinismo, em sentido estrito, à doutrina exposta por Molina na sua Concordia; em sentido amplo, a um sistema teológico sobre as relações entre a graça e a vontade livre, do qual Molina foi o principal teórico. A posição especial dos molinistas em relação aos diversos problemas teológicos foi ou será discutida em outros lugares, nos artigos Concours Divin, Congruisme, Liberté, Grâce, Prédestination, Science Moyenne, etc. [estes são artigos cujas traduções não se encontram aqui ainda].
Pretende-se aqui apresentar uma exposição geral do molinismo e, para melhor compreendê-lo, relembrar as circunstâncias em que surgiu, as controvérsias que suscitou e as modificações que sofreu, I. A questão das relações entre a graça e a liberdade no século XVI, antes de Molina [Texto de hoje]. II. As teorias expostas por Molina na Concordia [A ser traduzido]. III. A recepção dessa obra e as modificações feitas na edição de Antuérpia [A ser traduzido]. IV. As congregações De Auxiliis. [A ser traduzido] V. A essência e as diversas modalidades do molinismo [A ser traduzido]. VI. A defesa do molinismo do século XVII até nossos dias [A ser traduzido].
1. A QUESTÃO ANTES DE MOLINA.
Para situar apropriadamente a obra de Molina, é necessário, antes de mais nada, mostrar como se colocava, no século XVI, a questão das relações entre a graça e a liberdade: I. As definições do Concílio de Trento. II. A posição teológica dos jesuítas e as origens do molinismo. III. A escola dominicana de Salamanca e as ideias de Bañez. IV. O processo de Valladolid. V. O caso Lessius em Lovaina e VI. A oposição à publicação do livro de Molina.
I. AS DEFINIÇÕES DO CONCÍLIO DE TRENTO.
Em seu decreto sobre a justificação, de 13 de janeiro de 1547, o Concílio declarou que o ponto de partida da justificação, nos adultos, deve ser buscado na graça preveniente, isto é, na vocação pela qual Deus, sem nenhum mérito da parte deles, os excita e os ajuda a se converterem. Contudo, acrescentou que, se o homem não pode, sem a graça, mover-se em direção à justiça, ele não permanece, todavia, passivo ao receber essa inspiração, pois pode rejeitá-la e só se dispõe à justificação ao aceitá-la e cooperar com ela. (Sess. VI, cap. V, Denzinger-Bannwart, n. 797).
O Concílio resumiu esse ensinamento nas duas definições seguintes:
- «Anátema a quem disser que o homem pode crer, esperar, amar ou arrepender-se, como é necessário para receber a graça da justificação, sem a inspiração preveniente e o auxílio do Espírito Santo».
- «Anátema a quem disser que a vontade livre do homem, movida e excitada por Deus, não coopera em nada para se dispor e preparar para receber a justificação, ao aceitar a excitação e o chamado de Deus, e que o homem não pode, se assim o desejar, rejeitá-los; mas que, como um ser inanimado, não faz absolutamente nada e permanece totalmente passivo» (Ibid., n. 813-814).
Assim, para realizar um ato salvífico, a graça é necessária; mas a graça não anula a vontade, que permanece perfeitamente livre sob sua ação.
Essas definições, acompanhadas de outras afirmações sobre o mérito, o pecado, a predestinação, renovaram as condenações feitas anteriormente contra o pelagianismo e o semipelagianismo, e lançaram sombras sobre os erros protestantes. Estabeleceram, assim, balizas seguras para a especulação teológica futura.
De fato, as obras sobre a graça multiplicaram-se durante a segunda metade do século XVI, e as discussões apaixonadas que provocaram testemunham uma singular efervescência de ideias em torno de problemas novos.
II. A POSIÇÃO TEOLÓGICA DOS JESUÍTAS E AS ORIGENS DO MOLINISMO.
Ao lado da antiga ordem dominicana, que assistira impotente à invasão protestante e da qual algumas frações haviam até mesmo aderido à heresia, surgiu uma sociedade ardente e combativa, que ergueu uma barreira contra a heresia e combateu o erro com sucesso. Sob a inspiração de seu fundador († 1556), os jesuítas dedicaram-se ao estudo da teologia e ocuparam, frente aos antigos mestres, cátedras importantes. Sem dúvida, Santo Inácio lhes prescreveu que esclarecessem «a doutrina escolástica de São Tomás»; contudo, também deixou espaço para a teologia positiva e abriu a perspectiva de adotar um manual “mais apropriado aos nossos tempos” (Constitut., c. XII).
A preocupação com a atualidade, associada ao senso de progresso possível e desejável da ciência teológica, levou-os a abordar a questão da graça e a buscar, com grande liberdade de espírito, soluções de diversos problemas que São Tomás não havia expressamente formulado. (Ver artigo. IGNACE DE LOYOLA, JÉSUITES [não traduzido]).
Esses problemas gravitavam todos em torno de um ponto central: qual é, na produção do ato salvífico, a participação da graça e a da vontade humana? Como a graça divina pode agir de maneira infalível, se a vontade livre pode não consentir com suas solicitações?
A tradição dominicana buscava resolver as dificuldades levantadas pela questão das relações entre a graça e a liberdade, destacando a onipotência da vontade divina. Os jesuítas, que frequentemente lidavam com os negadores da liberdade, os protestantes, buscavam, acima de tudo, em seus esforços explicativos, salvaguardar a liberdade humana, conforme a 17ª regra de ortodoxia dada por seu fundador: «Não insistamos tanto na eficácia da graça, a ponto de gerar nos espíritos o veneno do erro que nega a liberdade».
A ideia diretriz dos teólogos da Companhia naturalmente os aproximava dos teólogos apologistas da Universidade de Louvain, como Driedo, Sonnius, Tapper, Tilet e Rythove.
Já em 1537, publicava-se em Louvain o De concordia liberi arbitrii et prædestinationis divinæ e o De gratia et libero arbitrio de Jean Driedo. Nesse último, o autor declarou que «quem compreende bem a graça divina e o livre-arbítrio não os separa na boa obra»; que «o bom uso do livre-arbítrio, previsto por Deus, pode ser um motivo para a eleição à graça da justificação»; que a predestinação é um decreto pelo qual Deus decide «chamar e ajudar o homem de uma maneira que Ele sabe ser capaz de provocar sua obediência». Ele se referia, nesses pontos, a São João Crisóstomo e a Santo Ambrósio.
Seu discípulo, Ruard Tapper, em correspondência com Pedro Soto, afirmou o mesmo, com base em Santo Agostinho (Ad Simplicianum, L. 2), que entre os filhos de Deus e os demais há esta diferença: que Deus chama apenas os primeiros de uma forma que Ele sabe, com base em suas disposições, que será eficaz. Ele acrescenta que «essa diferença frequentemente provém mais do valor e dos sentimentos daqueles que são chamados do que do próprio chamado».
Tilet explica que Deus sabe de antemão se o homem cooperará ou não com a graça, porque «Ele perscruta os corações». (Reginald, De mente Tridentini, ed. D’Anvers, 1706, p. vi, xii, civ. Citado por Schneemann, Controversiarum de divinæ gratiæ liberique arbitrii concordia initia et progressus, Freiburg-im-B., 1881, p. 176-177).
Reconhecem-se aí os traços principais da doutrina ensinada comumente pelos jesuítas alguns anos mais tarde, na Flandres com Lessius, na Espanha com Juan de Montemayor, em Portugal com Molina, na Alemanha com Gregório de Valência, e até mesmo em Roma com Suárez.
Outro apologista, conselheiro de Estado ligado a Francisco I, proporcionou a um professor de Coimbra, o jesuíta P. Fonseca, a oportunidade de aprimorar a doutrina da Companhia ao dotá-la de seu elemento específico: o «conhecimento médio» [science moyenne]. Em seu De prædestinatione, libero arbitrio et gratia contra Calvinum, publicado em Paris em 1556, Bartolomeu Camerarius ensina, com efeito, que os decretos eternos sobre a distribuição da graça são precedidos da presciência do uso que os homens farão dela, caso a recebam; mas ele não apresenta, na aplicação, uma ideia muito clara dessa presciência, que frequentemente confunde com o conhecimento de visão [science de vision].
Fonseca, por volta de 1565, define o caráter próprio do conhecimento médio, anterior aos decretos divinos, defende-o com argumentos retirados dos Padres da Igreja e dos teólogos, e o utiliza para explicar a Providência e a predestinação (Schneemann, p. 178-179).
Assim, encontram-se reunidos os elementos do sistema teológico cuja principal implementação será realizada por Molina, e ao qual seu nome ficará associado.
III. A ESCOLA DOMINICANA DE SALAMANCA E AS IDEIAS DE BÁÑEZ.
Os dominicanos tiveram, em Salamanca, toda uma linhagem de mestres ilustres. Francisco de Vitória, fundador da escola, ali ensinou durante vinte anos († 1546). Seus sucessores, Melchor Cano (1546-1552) e, depois, Domingo de Soto (1552-1560), foram fervorosos tomistas, sem, no entanto, sentirem-se obrigados a seguir seu mestre em todos os pontos e de forma rigorosa. Com Pedro de Sotomaior (1560-1563) e Bartolomeu de Medina, esboçou-se um movimento de retorno a um tomismo mais rígido, que encontrou sua fórmula definitiva em Domingo Báñez.
A liberdade, explicava Vitória em 1539, consiste em poder não agir quando se age e poder agir quando não se age. A vontade tem, em relação a seu fim, uma inclinação natural que lhe vem de Deus; mas ela mesma escolhe livremente os meios. Ela é, portanto, movida ab extrinseco para seu fim; contudo, é livre para querer [vouloir] ou não esse fim e para realizar os atos que a ele conduzem. Isso é verdadeiro tanto na ordem sobrenatural quanto na ordem natural. Se a vontade age, Deus coopera com seu ato. A conversão é livre; «a infusão da graça, portanto, depende de minha liberdade; Deus nos move livremente, pois podemos resistir a esse movimento divino» (Cf. textos inéditos, citados por Schneemann, Controv., p. 117-123).
O homem, dizia Melchior Cano, é causa de sua própria vida sobrenatural; ele é o auxiliar de Deus em sua geração espiritual, porque realiza em si mesmo as disposições que o preparam para receber a graça santificante (De locis theol., L. XII, c. XIII, ed. de Colônia, 1605, p. 686).
Soto escreveu em seu De natura et gratia, L. I, c. XV, composto durante o Concílio de Trento, que a liberdade consiste no fato de que a vontade não está determinada; e, ao perguntar por que, em última análise, quando Deus está igualmente disposto a converter dois homens, Ele atrai um (trahat) e não outro, respondeu: «não se pode dar outra razão, senão que um dá seu consentimento, e o outro, não». Essa frase lhe rendeu a acusação de ter concedido excessivamente à liberdade, mas ele manteve que, «se nosso consentimento não é causa da predestinação, é, no entanto, de certa forma, causa material da justificação» (In IV Sent., sub fine, p. 962).
Foi por veneração a São Tomás, proclamado doutor da Igreja por Pio V em 1567? Ou por reação contra a orientação adotada pela Companhia de Jesus? O fato é que os mestres dominicanos de Salamanca, após Soto, temeram exagerar o poder da liberdade. As obras naturais, explicava Medina, não são uma preparação positiva para a graça nem um mérito de congruo; são apenas uma disposição negativa. Ainda assim, essa disposição não é necessária; acontece que Deus concede seu auxílio mesmo quando ela está ausente (In IIam-IIae, q. cix, a. 6).
Báñez, que veio a seguir, homem íntegro, de espírito rigoroso e temperamento ardente, não hesitou em voltar-se contra seus predecessores, muitos dos quais haviam sido seus mestres, acusando-os de «erros estonteantes, ininteligíveis, inextricáveis». Ele atribuía isso ao fato de que Vitória, Cano e Soto tentaram conciliar São Tomás e Escoto, «como fazem comumente os modernos» (Comment. in IIam-IIae, q. XLII, a. 6). Para Báñez, era necessário retornar a São Tomás e combater qualquer traição ao seu pensamento, segundo seu comentário à Suma Teológica (Iª q. I-LXIV; IIª-II, q. I-XLV, publicado em Salamanca, 1584).
Ele parte do princípio de que, sendo Deus a causa de todo o ser, nada ocorre sem que Ele mesmo seja causa. «Deus», dizia ele, «determina todas as coisas e não é determinado por nada; nenhuma causa segunda pode agir se não for eficazmente determinada por Ele; mas seu concurso ativo não pode ser determinado ab extrinseco. Do fato de que Deus quer algo, pode-se concluir que isso necessariamente acontece, no tempo e da maneira que Ele deseja. Isso é verdade mesmo para todo ato livre, inclusive o pecado, considerado em seu ser e não em sua malícia. O auxílio divino é causa eficaz da graça e da conversão; a recusa de auxílio eficaz é causa da não conversão, pois disso resulta necessariamente que o homem não se converterá. Deus conhece, portanto, os futuros contingentes em suas causas, na medida em que estas são determinadas pela causa primeira: Ele conhece os pecados futuros em sua causa, na medida em que esta não é determinada pela causa primeira para agir bem».
Como essa doutrina deixa espaço para a liberdade humana? Báñez responde com uma distinção entre o sentido composto e o sentido dividido.
[O «sentido composto» equivale ao que em filosofia moderna chamam de weak causation, isto é causação ou atualização fraca, poderíamos também com certa restrição usar o nome causa indireta: pense no exemplo do sol, que nos fornece luz e calor para, por exemplo, pecarmos, seria o sol causa de nosso pecado? Em um sentido, sim, em outro não. O sol causa nosso pecado no sentido fraco, o que indica que ele exerce algum influxo causal, mas que de nenhum modo pode ser considerado por exemplo moralmente responsável pelo pecado. Um outro exemplo ilustra melhor: um professor, ao aplicar uma prova, em algum momento olha para o lado, aproveitando isso, um aluno cola na prova. Seria o professor responsável pela cola do aluno? Obviamente não, embora exerça algum poder causal. O «sentido dividido», por sua vez, refere-se ao que em filosofia moderna chamamos de strong causation, isto é, causação forte. Em nosso exemplo do pecado, o sol é causa de nosso pecado no sentido composto (fraco), e nós somos causa de nosso próprio pecado no sentido dividido--isto é, forte, e, assim, somos moralmente responsáveis. No exemplo do aluno colando na prova, o professor causa no sentido composto ou indireto a cola do aluno, mas o aluno que cola na prova causa a própria cola no sentido dividido ou direto. Quem causa algo no sentido composto não pode ser responsável (moralmente por exemplo) por esse algo, mas quem causa algo no sentido dividido é sim responsável (moralmente) por esse algo. Assim, Deus causa tudo no sentido composto: Ele cria, conserva e permite tudo o que ocorre, inclusive nosso pecado (mas não é autor de nosso pecado--deste somos nós mesmos, causas no sentido divido), e é causa de algumas coisas no sentido dividido (de certos eventos bíblicos por exemplo)].
[Assim,] do fato de que, no sentido composto, o homem não pode fazer penitência sem um auxílio especial de Deus, não se segue que, se Deus decide não conceder esse auxílio, o homem não faz penitência e isso não lhe será imputado: poder fazer penitência e fazer penitência são dois dons distintos; o primeiro basta para criar a obrigação. A liberdade tem sua origem em um julgamento; consiste na escolha dos meios em relação aos fins, que são objeto da vontade. Os desígnios imutáveis de Deus não vinculam nosso julgamento; não destroem, portanto, a liberdade de nossos atos.
Quanto à predestinação e à reprovação, são atos da vontade divina, decretos de Deus decidindo conceder a uns e recusar a outros os auxílios eficazes, para manifestar sua misericórdia ou sua justiça. Os efeitos da reprovação—permissão da culpa, abandono do pecador, exclusão do céu—não têm entre si qualquer relação de causa e efeito; não se deve buscar uma razão para eles no homem; todos juntos são meios em vista do fim desejado por Deus: a manifestação de sua justiça.
Tais eram as ideias de Báñez, que importava resumir aqui para melhor compreender, por contraste, as de Molina. Predeterminação e conhecimento médio se enfrentarão em conflitos doutrinais que, com frequência, serão agravados por sentimentos e paixões.
IV. O PROCESSO DE VALLADOLID.
Desde 1577, Báñez lecionava em Salamanca. Ele havia sucedido, há um ano, Bartolomeu de Medina na cátedra Prima na faculdade de teologia da universidade, quando ocorreu sua primeira intervenção retumbante.
Isso aconteceu por ocasião de um exercício escolar: uma “disputa” pública, realizada em 20 de janeiro de 1582, sob a presidência de seu amigo, o mercedário Francisco Zumel. O jesuíta Prudêncio de Montemayor sustentou que, se Cristo tivesse recebido de seu Pai o preceito de morrer, Ele não teria morrido livremente e, por conseguinte, não teria merecido. Báñez interveio com vigor, e essa foi a ocasião para discutir longamente sobre as questões de predestinação e justificação, especialmente porque outro mestre, o agostiniano Luís de León, interveio em favor do jesuíta. Ocorreram três sessões, sendo a última realizada em 27 de janeiro. Após isso, em 5 de fevereiro, o caso foi levado ao tribunal da Inquisição da Espanha, em Valladolid, pelo hieronimita João de Santa Cruz.
O processo durou dois anos. A Inquisição recusou-se a condenar as proposições submetidas por João de Santa Cruz, mas, por sentença de 3 de fevereiro de 1581, proibiu Luís de León de ensiná-las, em público ou em segredo. O texto latino pode ser encontrado no artigo BÁÑEZ [não consta traduzido aqui].
Entre outras coisas, as proposições afirmavam:
Cristo pôde merecer, ao morrer, por causa do motivo que Ele pôde ter. Não é porque Deus quis que eu fale que eu falo; é, ao contrário, porque eu falo que Deus quis que eu falasse. Deus não é a causa do ato livre, mas apenas de sua causa.—A Providência se aplica às boas obras em geral, não em particular; ela não determina a vontade a agir bem, mas é antes a causa particular que determina o ato da Providência. Dizer o contrário é falso e luterano.—Se Deus dá um auxílio igual a dois homens, um pode converter-se, e o outro, rejeitar. De fato, Pedro se converterá com o único auxílio suficiente de Deus, sem nenhum outro auxílio preveniente.—Na justificação, o ímpio determina, por sua vontade, o auxílio suficiente de Deus ao seu uso atual; Deus e a vontade do ímpio se determinam mutuamente e simultaneamente.
V. O CASO LESSIUS EM LOUVAIN.
Depois o Concílio de Trento, a Universidade de Louvain fora perturbada por muito tempo pelos erros de um de seus mestres: Baio. Apologista, ele havia sido tão influenciado por aqueles que combatia que, por assim dizer, aniquilou o poder da liberdade para o bem. As condenações promulgadas por Pio V, em 1567, e Gregório XIII, em 1579 (Denz.-Bannw., n. 1001 e segs.), não haviam conseguido silenciar completamente o chanceler. Quando teve a oportunidade de tomar a ofensiva contra seus adversários, ele não deixou de aproveitá-la e de fazê-lo com muita intensidade (ver art. BAIUS [não consta]).
Um jesuíta, Lessius, vindo de Douai em 1585 para ensinar teologia no escolasticado de Louvain, publicou no ano seguinte, junto com seu colega Hamel, as Theses theologicæ, onde refutava Baio e enunciava, sobre a graça e a predestinação, ideias que não poderiam deixar de soar estranhas aos ouvidos do chanceler e de seus partidários. Ajudado por seu sobrinho e discípulo Janson, este extraiu diversas proposições que foram submetidas à Faculdade de Louvain. Lessius replicou apresentando 34 conclusões que resumiam mais fielmente seu pensamento e reivindicou a tradição dos antigos mestres de Louvain: Driedo, Ruard Tapper, Martin Rythove, etc. Ainda assim, a faculdade censurou, em 9 de setembro de 1587, trinta e uma proposições, como contrárias à doutrina de São Tomás e semi-pelagianas. A Universidade de Douai renovou essa censura em termos quase idênticos.
Lessius respondeu com uma Apologia contra censuras (publicada por L. de Meyer, p. 755-785), e foi assim que, pela primeira vez, a Santa Sé esteve diretamente envolvida nas controvérsias sobre a graça. Sisto V nomeou uma comissão de cardeais encarregada de examinar as proposições incriminadas, juntamente com as explicações fornecidas por Lessius.
Um relatório escrito por Belarmino, para o cardeal Madrucci, publicado por L. de Meyer (p. 785-789) e pelo P. Le Bachelet em Auctarium Bellarminianum (p. 91-100), expõe de forma bastante objetiva e clara o fundo da questão. «As discussões de Louvain», diz ele, «decorrem todas de uma controvérsia relativa à cooperação de Deus com o livre-arbítrio; daí surgem controvérsias sobre a Providência, as graças suficientes e eficazes, a predestinação e a perseverança». Aqui apresentamos, em forma de quadro para maior comodidade, as oposições que ele assinala:
Faculdade |
Lessius |
1. Cooperação. Em todos os atos, naturais ou sobrenaturais, Deus determina a vontade livre antes (com prioridade de natureza) de ela se determinar a si mesma; daí que |
Em todos esses atos, Deus coopera com a vontade livre; mas ela se determina a si mesma, com o concurso e a cooperação de Deus; daí que |
2. Providência. A Providência preordenou eficazmente todas as coisas antes de prever a determinação das causas segundas; daí que |
A Providência só preordenou eficazmente os atos livres e contingentes depois de prever a determinação das causas segundas; daí que |
3. Graças suficientes. Não há auxílio verdadeiramente suficiente que não seja eficaz; e os homens não recebem todos um auxílio suficiente para a salvação; daí que |
O auxílio suficiente é distinto do auxílio eficaz; e todos os homens recebem um auxílio suficiente para a salvação; daí que |
4. Graças eficazes. Os auxílios eficazes são aqueles que determinam ativamente a vontade, e a graça eficaz não pode ser rejeitada; daí que |
O auxílio eficaz é aquele pelo qual Deus previne o homem ao prever que seu chamado será seguido; ele, portanto, pode ser rejeitado, mas nunca o é; enquanto o auxílio suficiente pode ser rejeitado e frequentemente o é; de onde |
5. Predestinação. A predestinação é uma preordenação de meios pelos quais os eleitos são infalivelmente salvos, independentemente da presciência do que os homens fariam caso recebessem determinadas graças prevenientes; daí que |
A predestinação é uma preordenação de meios pelos quais os eleitos são infalivelmente salvos, mas que pressupõe a presciência dos futuros condicionais; daí que |
6. Perseverança. Não há outro dom de perseverança além daquele pelo qual perseveram de fato os que perseveram. |
Todos os justos recebem um dom de perseverança pelo qual podem perseverar, se quiserem; somente os eleitos recebem um dom pelo qual perseveram de fato. |
7. Eleição. A eleição à glória é totalmente gratuita e não depende da presciência das boas obras. |
A eleição à glória depende da presciência dos méritos. |
Este último ponto é secundário, explica Belarmino, e sem conexão com os anteriores; além disso, Lessius ainda assim remete a eleição a uma pura graça de Deus, e sua opinião não pode ser confundida com a de Piggio e de Catarino.
Em última análise, os partidários de Baio acusavam Lessius de pelagianismo, enquanto os de Lessius acusavam Baio de calvinismo. A comissão cardinalícia declarou as proposições de Lessius muito defensáveis, e o papa enviou a Louvain o núncio Frangipani, com a missão de resolver a questão. Este último chegou no mês de junho de 1588, solicitou uma cópia de tudo o que havia sido escrito por ambas as partes, e declarou que caberia apenas ao papa tomar uma decisão. Com muito esforço, ele conseguiu que ambas as partes cessassem, enquanto isso, de se censurar mutuamente.
VI. A OPOSIÇÃO À PUBLICAÇÃO DO LIVRO DE MOLINA
No mesmo momento, a Concordia de Molina estava sendo impressa em Lisboa. A obra, apresentada ao exame da Inquisição portuguesa, havia sido aprovada pelo censor delegado, o dominicano Bartolomeu Ferreira, em termos muito elogiosos. No entanto, algumas frases do livro, comunicadas por Ferreira a seus confrades de Lisboa, já haviam causado inquietação; acreditavam reconhecer nelas várias das proposições defendidas anteriormente em Salamanca por Prudêncio de Montemayor. Além disso, criticavam a maneira como o exame havia sido conduzido, contando que Molina não havia querido entregar seu livro inteiro, fornecendo apenas um caderno de cada vez e recolhendo o anterior a cada entrega.
A pedido deles, o Pe. João de las Cuevas, confessor do grande Inquisidor, o cardeal arquiduque Alberto da Áustria, começou a ter escrúpulos. Pouco depois da publicação da Concordia, ele advertiu Alberto sobre o escândalo provocado pelo livro. O cardeal realizou uma investigação sumária e ordenou suspender, até nova ordem, a venda da obra (Carta de João de las Cuevas, 11 de maio de 1594, em Del Prado, De gratia et libero arbitrio, t. II, doc. III, p. 579-581).
Três meses se passaram, durante os quais Molina recebera dos Conselhos de Castela e Aragão a autorização previamente solicitada para publicar seu livro nos dois reinos. Finalmente, a acusação tomou forma. Báñez, consultado pelo cardeal, julgou ter identificado na Concordia nove ou dez proposições que a Inquisição havia proibido de serem ensinadas. Ele as agrupou em três objeções, que foram comunicadas a Molina e por ele refutadas.
Depois disso, com a proibição suspensa, o volume foi publicado no início de julho de 1589, precedido pela entusiástica aprovação de Ferreira:
In quo opere nihil a me est animadversum, quod nostræ religioni adversetur. Imo si quid est in sanctis conciliis, quod prima fronte videalur obscurum et scrupulosum, idipsum dilucidatur, et quamplurimi loci sacræ Scripturæ, tam Veteris quam Novi Testamenti, disertissimo stylo expenduntur et explanantur. Quapropter valde dignas arbitror has lucubrationes quæ in publicam totius Ecclesiæ utilitatem excudantur.
[Na presente obra, nada observei que se oponha à nossa religião. Pelo contrário, se há algo nos santos concílios que à primeira vista possa parecer obscuro e escrupuloso, isso mesmo é esclarecido, e muitos trechos das Sagradas Escrituras, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, são analisados e explicados com o mais claro estilo. Por isso, considero estas reflexões extremamente dignas de serem publicadas para a utilidade de toda a Igreja.]
O autor publicou imediatamente, e adicionou em forma de apêndice à Concordia a longa defesa que havia escrito contra as objeções de Báñez, bem como breves réplicas às críticas implícitas de um «outro escrito», que continha, sob o título de «observações» (animadversiones), uma série de trechos de seu livro. Uma análise disso pode ser encontrada mais adiante.
[Continua em texto futuro em “II. As teorias expostas por Molina na «Concordia»”].