01/06/2023 - David Gordon
[Este artigo é adaptado de uma aula ministrada no Círculo Misesiano de Reno em Reno, Nevada, em 20 de maio de 2023.]
Tradução de Daniel Castro. Ver original em inglês
Enfrentamos hoje um ataque concentrado aos grandes pensadores da tradição Ocidental, que são descartados como “Homens mortos, brancos e europeus”. Robert Nozick costumava dizer que o que mais o ofendia nessa frase era a palavra “morto”. Não é legal bater em pessoas que não podem se defender por não estarem mais aqui! Mas o ataque a que me refiro não é piada. Uma sociedade livre depende de alguns princípios, e pensadores do Ocidente exercem um papel principal no seu desenvolvimento, embora eles tenham contrapartes também em outras civilizações. E há algo ainda mais essencial. Para descobrir a respeito dos princípios de uma sociedade livre, é necessário pensarmos. Devemos usar a razão. Mas a razão está sob ataque pela corja “woke”, que descarta o pensamento racional como apenas uma expressão de preconceito de classe. As ideias daqueles que formaram a tradição Ocidental são descartadas apenas porque elas provêm de uma classe ou sexo “privilegiado”. Não há tentativa alguma de examinar essas ideias analiticamente.
Ludwig von Mises descreve o fenômeno ao qual me refiro em Human Action:
Aos olhos dos Marxianos, a teoria Ricardiana do custo comparativo é espúria porque Ricardo era um burguês. Os racistas alemães condenam a mesma teoria porque Ricardo era um judeu, e os nacionalistas alemães, porque ele era um inglês. Alguns professores alemães avançaram todos esses três argumentos ao mesmo tempo contra a validade dos ensinamentos de Ricardo. Entretanto, desmascarar a origem do autor não é suficiente para rejeitar uma teoria completamente.
Nesta conferência, vou dar exemplos de pensadores Ocidentais que defendiam a razão e conceitos vitais para uma sociedade livre e mostrar como eles têm sido atacados por fazer isso. Como todos sabemos, Aristóteles foi o fundador da lógica. Sem as ferramentas que ele desenvolveu, seria impossível para nós pensar de maneira conscientemente racional. Como Robin Smith aponta na Enciclopédia de Filosofia de Stanford,
As obras de Aristóteles sobre lógica contêm o primeiro estudo formal de lógica que conhecemos. Portanto, é ainda mais notável que unidas elas constituam uma teoria lógica altamente desenvolvida, que foi capaz de receber imenso respeito por muitos séculos: até mesmo Kant, que estava dez vezes mais distante de Aristóteles do que nós estamos dele, chegou até mesmo a afirmar que nada de significativo havia sido adicionado às visões de Aristóteles nos dois milênios que se seguiram.
Murray Rothbard baseou sua ética da lei natural em Aristóteles e em Tomás de Aquino. Ele diz em Ethics of Liberty:
Na filosofia da lei natural, a razão não está subordinada, como na filosofia moderna pós-Humeana, a ser uma mera escrava das paixões, confinada a produzir os meios para os fins arbitrariamente escolhidos. Pois os próprios fins são escolhidos pelo uso da razão; e a “razão correta” dita ao homem os seus fins apropriados bem como os meios para alcançá-los.
Não estou sugerindo que não houve progresso em lógica ou ética para além de Aristóteles. Mas as suas ideias merecem ser tratadas com respeito. No entanto, aqui está o que Agnes Callard, uma professora de filosofia da Universidade de Chicago, tem a dizer sobre ele. Para ser justo com ela, ela não quer cancelá-lo:
O filósofo grego Aristóteles não apenas tolerou a escravidão, mas a defendeu; ele não apenas a defendeu, mas a defendeu como sendo benéfica para o escravo. Sua visão era de que algumas pessoas são, por natureza, incapazes de buscar o próprio bem e mais adequadas a serem ‘instrumentos vivos’ para serem usados por outras pessoas: “O escravo é parte do mestre, uma parte viva mas separada do seu corpo físico”.
O antiliberalismo de Aristóteles não se limita a isso. Ele acreditava que mulheres eram incapazes de tomar decisões de forma autônoma. E ele decretou que os trabalhadores manuais, embora não fossem nem escravos nem mulheres, fossem também proibidos de terem cidadania ou educação em sua cidade ideal….O seu desprezo pela igualdade é profundo.
Aristóteles acreditava que o valor de um ser humano - a sua virtude - era algo que ele adquiriu ao crescer. Consequentemente, as pessoas que não podem (mulheres, escravos) ou que simplesmente não adquirem essa virtude (trabalhadores manuais) não têm razão para demandar igual respeito ou reconhecimento daqueles que o fazem.
Ao lê-lo, Aristóteles não apenas não acreditava na concepção da dignidade humana intrínseca que fundamenta nosso compromisso moderno com os direitos humanos, ele possui uma filosofia inconciliável com ela. O desprezo pela igualdade de Aristóteles é menos semelhante ao racismo de Kant e Hume e mais semelhante às visões de Descartes sobre animais não humanos: o fato de Descartes caracterizar os animais não humanos como autômatos sem alma é uma consequência direta de seu dualismo racionalista. Seus comentários sobre animais não podem ser considerados "observações isoladas".
Se o cancelamento é a remoção de uma posição de destaque com base em um crime ideológico, poderia parecer que há argumentos a favor do cancelamento de Aristóteles. Ele possui grande destaque: milhares de anos após sua morte, suas obras éticas continuam sendo ensinadas como parte do currículo básico de filosofia oferecido em faculdades e universidades ao redor do mundo.
A razão pela qual ela não quer cancelar Aristóteles é que nós podemos aprender algo dele se tomarmos literalmente o que ele diz e tentarmos extrair um padrão de pensamento exótico. A ideia de que ele estava substancialmente certo não é uma que ela está disposta a considerar. E há muitos que vão além e menosprezam o mundo clássico como um todo.
O filósofo Lewis R. Gordon é um deles. Ele quer suplantar a noção dos gregos como fundadores da filosofia. Em Descolonizando a Filosofia, ele diz,
“Os gregos antigos”, por exemplo, é uma construção que ganhou muita notoriedade no iluminismo francês e alemão para se referir aos povos falantes de grego do Mediterrâneo. Aquelas pessoas incluíam africanos do norte, asiáticos ocidentais, e povos do sul daquilo que mais tarde ficou conhecido como Europa. Como a presunção é de que a prática mais antiga da filosofia ocorreu entre os povos antigos de Mileto (hoje no oeste da Turquia) e Atenas, o termo adquiriu uma associação quase-sagrada com as cidades-estado dos povos grego falantes, um grupo dos quais se referia a si mesmos como helenos. Compreender que os Helenos [sic] eram apenas um conjunto entre outros povos grego falantes que surgiram na antiguidade revela a falácia. É como denominar por “ingleses” todos os povos de língua inglesa atuais. A confusão deveria ser evidente. Produto da imaginação euromoderna, na qual vários impérios buscam associar-se à desejada identidade intelectual atribuída aos antigos gregos para as gerações futuras, a ideia dos antigos gregos como um suposto "milagre" implica que a humanidade, antes considerada obscura e intelectualmente limitada, sucumbiu para o que eventualmente veio a se tornar, através do latim, a “civilização”.
O ponto de Gordon é de que os Helenos eram apenas um dos povos grego falantes do Mediterrâneo. Mas isso não implica que os outros também eram filósofos, a menos que eles se envolvessem em argumentação racional. Gordon não mostra que eles o fizeram. Em vez disso, ele diz que o raciocínio dedutivo é superestimado.
Vamos pular cerca de dois mil anos para outro grande pensador na tradição Ocidental, John Locke. Ele defendeu o princípio da autopropriedade, que é fundamental para o libertarianismo Rothbardiano. Autoproprietários (self-owners), na visão de Locke, podiam obter recursos não apropriados “misturando seu trabalho” a eles. Novamente, vejamos o que Rothbard tem a dizer sobre isso:
Uma confusão comum sobre a teoria sistemática de Locke sobre a propriedade precisa ser esclarecida — a teoria de trabalho de Locke. Locke fundamenta a sua teoria de direito natural a propriedade no direito de autopropriedade de cada indivíduo, de uma “propriedade” [property] em sua própria pessoa. O que então estabelece o direito original de qualquer indivíduo a propriedade de recursos materiais, territoriais ou naturais, além de sua própria pessoa? Na teoria brilhante e bastante sensível de Locke, a propriedade deixa de ser aquilo que é comum, ou não-propriedade, e passa a ser propriedade privada de alguém da mesma forma que um homem dá uso a propriedade não utilizada — isto é, “misturando o seu trabalho, do qual é proprietário”, sua energia pessoal, a um recurso natural anteriormente não apropriado e não possuído, levando-o daí a um uso produtivo e, consequentemente, a sua propriedade privada. A propriedade privada de um recurso material é estabelecida pelo primeiro uso. Esses dois axiomas — autopropriedade de cada pessoa, e o primeiro uso, ou “homesteading”, de recursos naturais — estabelece a “naturalidade”, a moralidade e os direitos de propriedade subjacentes de toda a economia de livre-mercado. Pois se um homem possui justamente propriedade material com a qual se envolveu e trabalhou, ele tem o direito deduzido de trocar esses títulos de propriedade pela propriedade com que outra pessoa se envolveu e incorporou trabalho. Pois se uma pessoa possui propriedade, ela tem o direito de trocá-la pela propriedade de outra pessoa, ou dar a propriedade a alguém disposto a recebê-la. Essa cadeia de dedução estabelece o direito de livre troca e livre contrato, e o direito de herança ou legado, e consequentemente toda a estrutura de direitos de propriedade da economia de mercado.
Independentemente de você aceitar a visão Lockeana ou não — e eu espero que você a aceite — você não pode negar que é uma teoria interessante, digna de consideração cuidadosa. Mas na opinião de Charles W. Mills, no seu influente livro O Contrato Racial, Locke não era realmente um defensor da liberdade individual. O propósito de Locke era justificar a escravidão, especialmente de pessoas negras.
Aqui está um bom resumo da visão de Mills:
Em sua forma mais básica, o contrato social é um acordo relativo às obrigações políticas e morais entre o Estado e o indivíduo. Ele concede ao Estado autoridade sobre o indivíduo e responsabilidade de manter a ordem social. Ao mesmo tempo, são concedidos certos direitos ao indivíduo. No entanto, apesar de fundamentar-se em um discurso de universalismo, Charles W. Mills argumenta que o contrato social foi, na verdade, desde o início, inerentemente racializado. A teoria de Mills do contrato racial recai sobre três afirmações: (1) de que a “supremacia branca, tanto local quanto global, existe há muitos anos”; (2) “a supremacia branca deve ser considerada como um sistema político em si”; e, (3) que “como sistema político, a supremacia branca pode ser teorizada de maneira esclarecedora com base em um contrato entre brancos, um Contrato Racial”. Inspirando-se no livro "O Contrato Sexual" de Carole Pateman, Mills traça o caminho pelo qual "a sociedade foi criada ou crucialmente transformada, como os indivíduos nessa sociedade foram reconstituídos, como o Estado foi estabelecido e como um determinado código moral e uma certa psicologia moral foram trazidos à existência". Ao fazer isso, Mills chama a atenção para a maneira como a ideia de raça e racismo moldou fundamentalmente a concepção de humanidade, democracia e sujeito político pelos pensadores filosóficos ocidentais (por exemplo, Hobbes, Hume, Kant, Locke, Mill e Rousseau). Conforme Mills explica, os principais pensadores da filosofia política construíram suas teorias e conceitos usando um esquema classificatório racial que dividia as pessoas em categorias de humanos e sub-humanos. Ao fazer isso, os europeus brancos eram associados ao espírito, consciência plena e racionalidade. Em contraste, as pessoas racializadas como não brancas eram consideradas inadequadas, se não incapazes, de "formar ou entrar plenamente em um corpo político". Associadas à natureza e ao corpo, as pessoas racializadas como não brancas eram consideradas carentes em termos de poder cognitivo necessário para a razão, autoridade e governo. Essas formas de pensamento racial estruturaram os principais desenvolvimentos políticos que ocorreram durante o período do Iluminismo: principalmente a formação do Estado-nação moderno, as declarações de soberania europeias, a conquista do Novo Mundo e os contratos escritos de escravidão e servidão. Tanto é assim que o contrato racial e a negação da personalidade foram constitucional e juridicamente consagrados, estabelecendo assim "uma política racial, um Estado racial e um sistema jurídico racial, onde o status de brancos e não brancos é claramente demarcado, seja por lei ou costume". Como resultado, para Mills, "as proclamações dos direitos iguais, autonomia e liberdade para todos os homens" caminharam de mãos dadas "com o massacre, expropriação e sujeição à escravidão hereditária de homens pelo menos aparentemente humanos". Nos últimos anos, a obra de Mills tem sido usada para expor a forma com que o contrato racial continua a fundamentar o mundo político e social. Na Grã-Bretanha, Nirmal Puwar destaca a maneira como o contrato racial opera em Westminster, o centro das políticas britânicas, no alto funcionalismo público, na academia, no mundo das artes e na vida cotidiana. Do ponto de vista de uma mulher indígena, Debbie Bargallie desmascara o contrato racial que existe no Serviço Público Australiano. Ao fazer isso, Puwar e Bargallie mostram que apesar da retórica de igualdade, diversidade, inclusão, meritocracia e reconciliação, esses são espaços de racismo institucional estruturados por “normas somáticas racializadas”, o que resulta em corpos não-brancos sendo considerados “fora de lugar”.
O argumento de Mills, na medida em que é possível chamá-lo assim, baseia-se em uma incompreensão da teoria do contrato social. Como escrevi em uma resenha publicada há vinte e cinco anos,
Mesmo se tomarmos o contrato social como sendo, em parte, uma história conjectural, ainda não se segue que os teóricos do contrato tenham errado em ignorar o suposto contrato racial. Novamente, a pergunta parece ser muito válida: de que maneira um grupo de pessoas (estejam ou não envolvidas na exploração racial organizada) poderia ter formado um Estado? O fato de uma investigação abstrair de um determinado fenômeno não o torna inútil. E Mills também não demonstrou que há algo de errado na mudança posterior para uma estrutura completamente normativa
Os grandes pensadores da tradição ocidental, sem dúvida, tinham suas falhas. Mas não deveriam ser descartados porque diversos escritores "woke" os ignoram. Devemos sempre buscar a verdade na filosofia, independentemente de quem a verdade ofende. Mises gostava de citar Spinoza: "Assim como a luz é a medida tanto de si mesma quanto da escuridão, a verdade é a medida tanto de si mesma quanto da falsidade".
Autor: David Gordon é um Senior Fellow no Instituto Mises e editor do Mises Review.