"O brasileiro Carpeaux", de José Lins do Rego

"O brasileiro Carpeaux", de José Lins do Rego

Nota introdutória (Alta Linguagem),

José Lins do Rego foi literato, graças a figura do maior teórico pernambucano e grande amigo seu Gilberto Freyre, deixou de escrever artigos políticos para jornal e passou a se dedicar a literatura. Foi figura líder na literatura nordestina, sobretudo a do Ciclo do Açúcar, sua obra mais famosa é Menino de Engenho, obra-prima que retrata a infância de Carlos de Melo no engenho Santa Rosa, a vida típica, narrada e compreendida social e antropologicamente por Gilberto Freyre em seu Casa-Grande e Senzala, de um menino que cresce em meio ao Brasil do açúcar, no regime da economia patriarcal. Neste texto, o gênio literário de José Lins reconhece o gênio literário da figura estrangeira de Otto Maria Carpeaux, um homem da literatura do Novo Mundo reconhece a genialidade e imponência de um maduro literato do Velho Continente.

O brasileiro Carpeaux

O Jornal, 23 de Janeiro. 1944.

Desde ontem que é cidadão brasileiro o escritor Otto Maria Carpeaux. A história deste homem extraordinário tem muito da tragédia do homem europeu que viveu da paz de 1918 à guerra de 1939. Uma história pungente, um sacrifício, de todas as horas, das forças do espírito ao ímpeto da força bruta. Carpeaux era de uma pátria mutilada, de uma cidade que fora lustre da Europa reduzida pelos tratados a uma capital que era quase que todo o país. Lá se conceberam muitos dos crimes do nazismo. Da Áustria sairia Hitler como uma praga para infeccionar o mundo. A Áustria, que quase não tinha para comer, daria o homem mais poderoso da Europa, um Atila agigantado, ogro de fome canibalesca. Carpeaux, um puro homem de letras, no grande sentido dos humanistas, sofreria todos os passos da tragédia. A sua vida era a poesia e era obrigado a ter os ouvidos abertos aos cantos da guerra, às marchas que os verdugos ensaiavam, nas caladas das noites de pavor. O crime contra o homem, contra o seu espírito, contra a sua paz, contra a poesia, tramava-se, por toda a parte. Os grandes homens seriam condutores de hordas. Mas havia quem não se entregava, havia quem acreditava mais em Goethe do que em Hitler. A verdadeira consciência da Europa se refugiava nos seus poetas, na poesia imortal. A impostura do fascismo, que queria nutrir-se da antiguidade clássica, não resistiu à realidade. Eles queriam uma Acrópole com um campo de concentração ao lado. Otto Maria Carpeaux teria de seguir a direção de Thomas Mann, teria que não se entregar aos senhores, aos donos. E nós, aqui do Brasil, tivemos a sorte de retê-lo para ser dos nossos. Há refugiados de guerra que nos trouxeram somente a angústia do desterro, há outros que nos trouxeram o vício, a desgraça da especulação capitalista. Há, no entanto, um Otto Maria Carpeaux, que chegou para nos entender, nos sentir como íntimo amigo. Este homem, que é um sábio de literatura, um mestre da crítica, que conhece, em profundidade, latinos, eslavos, germânicos, nórdicos, começou, no Brasil, a fazer o seu curso de autêntica erudição literária, como nunca antes dele se fizera. Os seus ensaios são da mais viva substância. Não é um seco enumerador de nomes, de datas, de fichas, é um intérprete, um quente crítico das mais profundas realidades. É o mestre Carpeaux, aquele que sabe de muita coisa, que levou a vida inteira nas pesquisas, na busca pela verdade. Está ele aqui no Brasil há quase três anos, e já conhece mais do que alguns eruditos brasileiros a nossa literatura, todos os antigos e todos os modernos. É íntimo dos clássicos de Portugal, e sabe o que vale um Manuel Bandeira, como o grande poeta da alma moderna, da alma de todos os tempos. O que eu, porém, vejo em Carpeaux não é só a sua fenomenal capacidade de crítico, é o homem Otto Maria Carpeaux, uma consciência de livre, de amigo apaixonado, de indomável às forças brutas. Ele vive em batalhas terríveis. Batalhas contra os demônios aqui de fora. Não se entrega, não se dobra, não para de reagir. Um homem desta natureza, que acima de tudo põe a sua dignidade de literato, só deve merecer respeito. Contra ele se volta uma onda de despeitos furiosos e de jacobinismo irritante. Ele só quer nos amar, nos entender. Para muita gente isto é de mais. Mas que fiquem quietos os violentos patriotas. Otto Maria Carpeaux é, desde ontem, brasileiro de lei e de alma.

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