"O desespero de Léon Bloy", de Otto Schneider

"O desespero de Léon Bloy", de Otto Schneider

Texto introdutório (Alta Linguagem),

Neste texto, Otto Schneider trata de comentar sobre a obra de Leon Bloy, em específico de seu romance Le Désespéré, disserta-se sobre as principais temáticas da obra de Bloy, especialmente na questão da busca pelo absoluto--que permeia toda a religiosidade do autor--tudo isso em diálogo com Pfleger, crítico de Bloy.

O desespero de Léon Bloy

A Manhã, 3 de Março. 1945.

No seu depoimento sobre Léon Bloy, o sagaz analista Pfleger relata um caso que lhe parece esquisitíssimo. Na realidade, não é tão esquisito assim. Deve ter havido, e deve estar havendo outros semelhantes.

Pouco depois da última guerra, na presença do citado crítico, afirmou um senhor de boa ilustração e assaz exigente em matéria de espiritualidade, que, desde que lera Léon Bloy, não suportava mais nenhum outro escritor francês.

Pfleger achou graça no entusiasmo, próprio de menina de colégio, com que ele falava de Léon Bloy, mas no íntimo aguçou-se-lhe a curiosidade. E saiu à procura de seus livros. Leu, um após o outro, bem a metade das três dúzias de volumes. A princípio com espanto, depois com íntima condolência e profunda comoção. Depois, abalado e convulsionado em todo o seu organismo espiritual, com a sensação de um cego que, após longa noite, súbito recupera a vista e pela primeira vez lobriga o mundo à verdadeira luz e se dispõe a principiar nova vida. Mas por fim, depois de ter sido dominado e como que tiranizado por espaço de um ano inteiro, deu-lhe o adeus, ponderando com frieza e quase hostilidade que este seu catolicismo “absoluto” em todo caso não era coisa para ele--Pfleger--, nem para seus semelhantes.

Que sucedera? O “absoluto”--esse terrível “absoluto” defendido por Léon Bloy através de todos os seus livros--acabara cansando o crítico, como aliás acaba cansando todos, ou quase todos os leitores de Bloy--por algum tempo, ou definitivamente. 

“O absoluto é uma ida sem volta. Eis porque os que a encetam têm tão poucos companheiros. Querer sempre a mesma coisa, caminhar sempre no mesmo rumo, marchar dia e noite sem se voltar nem para a direita nem para a esquerda, nem uma vez sequer e nem por um instante, levar a vida inteira interpretando todos os pensamentos, todos os sentimentos, todos os atos, e até mesmo os pequenos movimentos como emanação constante de um decreto primordial da vontade onipotente… Imaginai um homem de ação, um cientista que parte para uma viagem de exploração. O dinamismo de suas palavras despertou alguns entusiastas que o seguem, sem prever que haverá o que sofrer… Penetram no deserto, no ermo. Lá há frio, trevas, fome, sede, cansaço sem fim, horrorosa tristeza, agonia e suor de sangue. Olhando em busca de seus companheiros, em vão o temerário os procura. Depois compreende que é vontade de Deus ele estar sozinho em meio de suas torturas, e submerge à frente, qual facho ardente, o coração”. 

Pfleger procura então justificar-se. Diz que não se despedira do absoluto, mas de Bloy. Enfastiara-se ouvi-lo incessantemente trovejar descaridades, injustiças, grosserias paquidérmicas sobre três quartos (seria mais acertado dizer nove décimos) da humanidade, e tudo em nome deste Absoluto. Não seria o caso de recorrer à patologia para explicar o “fenômeno Bloy”? Lembrou-se de Nietzsche cuja linguagem, como o avançar da idade, sempre mais se tornava um monólogo de exacerbação, de cosmofobia e de misantropia. Lembrou-se de Strindberg, o gênio doentio, o poeta do inferno cujas visões, alucinações e constantes expectativas proféticas jamais se tornavam realidade…

Julgou despedir-se definitivamente de Bloy. Mas nem por isso o “Peregrino do Absoluto” o despediu.

Uma dúzia de anos após, Bloy tornou a anunciar-se, e com tamanha insistência que já não era possível esquivar-se de uma entrevista radical com ele. “A quem Bloy um dia agarra, não larga mais”. 

“Meteoros espirituais de núcleo em chamas, como o tinha Bloy, não podem penetrar na atmosfera do nosso planeta sem mais cedo ou mais tarde incendiá-lo. E eles não se extinguem com a brevidade dos meteoros físicos. Não vêm das profundezas do espaço, mas dos arianos do espírito, do absoluto. O que me faltava compreender era o que única e exclusivamente importa a espírito como Bloy.

Quando, há doze anos, ele marchava sobre mim, vindo das profundezas metafísicas, ele, o peregrino do absoluto, meus olhares ficaram detidos nos seus pés poeirentos e dilacerados, nos seus andrajos e farrapos, em todo aquele aspecto de miserabilidade e insuficiência eternamente humana. Como se alguma vez cá em baixo, e por um só momento na história humana, o ser e a aparência jamais se tivessem coberto, e como se não fosse exatamente esta incongruência o caráter indelével da realidade criada e caída…”

Nisso, Pfleger tem profundamente razão. Não só ele fez essa experiência. Muitos outros fizeram-na também. E nisso está um dos motivos por que a família espiritual de Bloy não está minguando, mas crescendo. Em vários países. Porque o terrível desespero do “Peregrino”, quando invade a quem com ele se familiariza, é pior do que lava candente que, ainda depois de se apagar, deixa estigmatizada a alma da gente.

Como se explica, por exemplo, que o famoso geólogo francês Pierre Termier, cujos interesses profissionais o afastaram léguas de Bloy, confessou abertamente: “Divido minha vida em duas metades profundamente diversas: uma a que precedeu, outra a que sucedeu meu encontro com Bloy”.

Bloy foi um desequilibrado. Mas no seu próprio desequilíbrio--que ele era o primeiro a reconhecer--seguia conscientemente seu destino, com um fanatismo que parecia muçulmano. “O destino de cada um de nós é irrevogável … Quem, antes mesmo de ter dado a primeira pincelada não for o maior artista do mundo, nunca mais o será. Ninguém se torna nada, nem tolo, nem sequer um pouco. Nasce-se grande artista, assim como se nasce grande santo, ou como, enfim, se nasce sendo alguém. A educação não passa de um discernimento dos espíritos. Nada mais. Não é permitido a César amamentar-se, como outros homens, aos peitos maternos”.

Bloy nasceu desesperado. Sua estranha, estranhíssima aventura com “Verônica”--uma pobre costureira que supria com prostituição os parcos rendimentos de seu trabalho--cujas visões da glória de Deus o enchiam de arrepios de admiração e de pavor e que acabou morrendo no hospício, essa estranha aventura fazia parte do seu incrível desespero. E dele fazia parte também sua pobreza. Pobreza que Bloy abraçou franciscanamente. Tanto que folgada com sua forte estrutura física que lhe possibilitava sofrer em grande escala. Calculando e somando, passou oito anos inteiros no mais austero jejum involuntário, a pão e água, e muitas vezes a água sem pão. Escrevia um livro de um só fôlego, sem sair do quarto, porque … simplesmente porque não tinha mais calças, nem chapéu nem sapatos. Na inclemência do inverno, teve que queimar os móveis, para salvar mulher e filhos de morrerem de frio. Ainda assim, dois de seus filhos morreram à míngua. 

O “absoluto” de Léon Bloy não era nenhum truque literário. Tampouco o desespero que resultava daquele. “Le Désespéré” e “La Femme Pauvre” são a imagem da mais nua realidade.

Há muitas variedades de desespero. Há um desespero que só serve para literatura, para livros. Não passa de ironia corriqueira. Há o desespero que leva ao suicídio, e é tão humilhante quanto uma deserção. A morfologia da cultura de Oswald Spengler é um desespero paramentado de cientificismo contemporâneo, entoando as loas do intérito do Ocidente. Há também um desespero metafísico tal como se manifestou na conversão de Gide ao bolchevismo, conversão que terminou numa retratação não menos espetacular. O desespero de Schopenhauer, finalmente, não passa de crocitante misantropia.

Todos esses desesperos são estéreis. 

Mas há também um desespero fértil, tal como um homem cheio de Deus é capaz de sentir, e como o próprio Cristo sentiu na cruz, por entre trevas, sangue e lágrimas. Foi precisamente esse o desespero que Léon Bloy sentiu no seu tempo; desespero que também Charles Péguy sentiu a seu modo; com eles, e talvez ainda mais do que eles, Dostoievski. 

Sem dúvida, eles assinariam o paradoxo de Kierkegaard: “O maior desespero é o de não estar desesperado”.

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