Texto introdutório (Alta Linguagem),
Neste texto, Paulo A. Figueiredo ecoa, parece, as teses de Jacques Maritain em seu Trois Reformateurs e em seu Humanismo Integral, no qual clama pelo retorno a Deus, por uma visão do homem verdadeiramente humana: um homem como composto substancial de corpo e alma imortal, esta que é a parte mais nobre do homem, que, dotada de personalidade, chama o homem para algo além de uma vida humana: clama por Deus. Assim, toda visão que se diga "humanista" e tire Deus do centro dos anseios humanos é uma visão que, na verdade, desumaniza o homem--eis o ideário da "burguesia" no pensamento de Paulo de Figueiredo expresso neste texto.
O espírito da burguesia
A Manhã, 4 de novembro. 1947.
Da combinação das teorias de Lutero, Descartes e Rousseau nasceu esse estado político de coisas que, em última análise, chamamos de burguês. O homem deixou de ser considerado pessoa para ser considerado apenas um indivíduo. E em torno desse homem assim demitido de sua dignidade foi que o mundo passou a girar. O indivíduo tornou-se deus. Mas, como cada indivíduo é diferente de todos os demais, cada qual se julgou o eixo de gravitação do universo. Daí a infinidade de “deuses”, tantos quantos os indivíduos humanos existentes. O mundo sou eu, tal o lema do burguês.
Nessa atitude, que marca o filosofismo liberal, acha-se, também, a raiz do materialismo histórico. O racionalismo redundou no materialismo. O marxismo é o negativo do liberalismo, que apenas inverteu, dando às massas atributos dados ao indivíduo. O marxismo fez das massas o indivíduo dilatado. Ao homem-deus substituiu-se o proletariado-deus. Pelo que já se denominou o socialismo de “liberalismo pelo avesso”.
Perdendo a Deus, e portanto perdendo-se a si próprio, o homem desumanizou-se. Porque se evadiu de si. De então para cá a sua visão do mundo foi completamente desvirtuada. Descrente dos valores cristãos, sem um ideal transcendente a inspirar-lhe a conduta terrena, o homem foi dominado pelas coisas. O prazer ficou sendo o seu grande fim. O presente, o grande momento. Daí o economismo moderno, liberal ou marxista, como o plano primeiro de vida. Daí o se ter posto o dinheiro como o critério máximo de apreciação de valores.
Realmente, o regime liberal foi o resultado da vitória das classes ricas. E o comunismo, a outra coisa, não visa senão à proletarização da riqueza. Esta é o “leitmotiv” da política liberal e da política socialista. O que se tem em vista é uma coisa só: o bem-estar material. Os comunistas reclamam para as massas o que os burgueses têm, em bens materiais. Todas as suas campanhas trazem claro esse propósito fundamental de riqueza. É o economismo triunfante, irmanando burgueses e bolchevistas, que só se distanciam e lutam porque os que não tem querem ter o que os que têm não querem deixar de ter. Emmet John Hughes, num estudo comparativo, fixou bem essa identidade dos regime liberal e comunista: “Tendo aceitado o mesmo ideal básico que a sociedade liberal, a cruzada marxista apelou para o mesmo instrumento e critério de bens materiais. Muito embora pudesse ser dito como revolucionário o seu sistema de organizar a produção e distribuir a riqueza, o marxismo concebeu um ideal de sociedade suscetível de ser realizado por uma ação limitada a esse mesmo reino da economia, que o liberalismo consagrava como o plano--o único plano-- em que era possível lutar pela salvação de homem e alcançá-la”.
Sabemos como se julgam os homens nas sociedades burguesas. Vale quem tem mais. As moças procuram para esposos aos moços que têm automóvel; e os moços caçam as esposas entre as filhas de “papai rico”. É assim que se exprime o espírito burguês, inclusive entre os que clamam contra a burguesia. O “proletariado”, que os comunistas pintam liricamente como anjo caído do céu por descuido, não difere substancialmente do “burguês”. É claro que nos estamos referindo aos que, nas sociedades burguesa e comunista, sejam, em espírito e formação, burgueses ou comunistas. Porque sempre haverá os que, vivendo nelas, sejam diferentes e tenham da vida uma compreensão mais nobre. Estes, porém, sejam ricos ou pobres, não serão nem bolchevistas nem burgueses, não viverão apenas economicamente. Conservando-se pessoas, terão outro critério de valores. Em geral, no entanto, dado o materialismo vigente, que se reflete em todos os setores de atividade e em todas as camadas sociais, o que se verifica é que o homem foi posto como simples atributo da economia.
O grande medo é o da miséria, o grande ideal é o da riqueza, tanto no mundo liberal, quanto no mundo socialista, ambos mundos sem Deus, mundos de homens-não-homens. A luta pelo poder político é a luta pelo poder econômico. Liberais e comunistas compreendem que têm intuitos semelhantes, e porque tanto se parecem é que tanto se odeiam. Não possuem ideal religioso, nem ético, nem estético. A Verdade, o Bem e o Belo, tudo são valores secundários, derivados, sujeitos ao grande valor: o econômico. Daí a arrematação dos plutocratas, de um lado, e, de outro, a arregimentação das massas. Donde os mesmos processos de revolução e de reação. Daí as ditaduras dos grupos financeiros e dos "proletariado":--"Com efeito", observa Benedetto Croce, "a classe operária é levada pelos seus interesses particulares e pela sua psicologia, bem como pelas teorias que lhe são ministradas, a dar o primeiro, senão o único lugar, nas explicações dos fatos, nos ideais práticos, nos programas e nos métodos de ação, ao princípio econômico; e a mesma disposição se observa na classe capitalista e plutocrática, que se defende contra a outra com armas da mesma têmpera, tendo copiado, em alguns países, precisamente os métodos e as instituições das ditaduras operárias, procurando pô-las ao serviço de ditaduras do capitalismo”. Por isto também também é que Spengler escreveu que o liberalismo e o comunismo “derivam da mesma raiz espiritual, de pensar em dinheiro”, e ainda que “não há oposição entre o liberalismo e o socialismo econômicos”.
O mal essencial das sociedades liberal e comunista é a ausência nelas de uma espiritualidade autêntica. A isto se deve a sua desumanização. Porque o espírito é que carisma o homem. Pelo espírito é que o homem se faz homem completo. Onde o homem perde a qualidade de ser que se orienta para o absoluto: onde não se situa como um ser que domina as coisas mas é dominado por elas; onde não se busca em plenitude; onde não é consciente de sua pessoalidade, aí não há humanismo, que é “a vontade de ser em perfeição”. E onde a sociedade não possui conteúdo humano, aí a vida perde o valor e o sentido e os homens se deixam empolgar pelos vícios e pelas paixões, animalizando-se, inferiorizando-se, entredevorando-se. Porque fora de uma ordem espiritual não há direção para vida e as forças, agitando-se a esmo, chocam-se e anulam-se.
Afastado o homem de Deus, que é a medida de seu valor, a sociedade se desarticulou. O que antes atuava em função do todo passou a atuar em função do indivíduo. O mundo perdeu, então, a sua organicidade. Dissociaram-se os valores. A ascensão política da burguesia, marcando o advento da era liberal, representa a vitória do dinheiro, que se substituiu aos valores hierarquizados e nobres que a Idade Média tinha posto numa tábua em que se ordenava a vida dos homens e dos povos. Em verdade, data daí o economismo moderno, de tão funestas consequências.
A reação veio. Contra o liberalismo ergueu-se o socialismo. Mas como não se pôs na recuperação espiritual do homem--como se devia, pois que do homem depende a sociedade--o ponto de partida revolucionário, nada se conseguiu em benefício da humanidade. Os males do liberalismo continuaram no socialismo, sua última e lógica consequência: “Os socialistas tomam à sociedade burguesa-capitalista o seu materialismo, seu ateísmo, suas “lumières” superficiais, sua hostilidade para com o espiritual, sua mania de viver, de vencer e de gozar, sua luta pelos interesses egoístas, sua inaptidão para a concentração interior. O capitalismo e o socialismo fazem-se igualmente da queda e da extinção das criações espirituais, de um decréscimo do espírito na sociedade humana” (Berdiaeff).
A razão da tragédia está, em essência, na fuga de Deus. O mundo é uma ordem total, de que o absoluto-Deus é o princípio primeiro e o fim último. Só dentro dessa compreensão pode o homem organizar a vida humanamente, dando sentido à sua atividade. Não se pode conceber uma sociedade dominada unicamente pela vontade da riqueza. O homem ser feito à imagem de Deus, não pode caber nos quadros estreitos do economismo. Não se compreende o mundo humano sem uma Ética, sem uma Estética, sem uma Lógica, sem Deus, porque somente assim o homem se faz consciente de seu valor e de seu destino superior, só assim se revela a pessoa que é. A atomização liberal privou o homem de seu contacto com a natureza, o totalitarismo comunista confundiu-o com a natureza, igualando-o às coisas. O verdadeiro homem, no entanto, está ao mesmo tempo dentro e acima da natureza, põe sua vontade nas coisa e lhes dá uma destinação humana. E, então, faz da economia uma ciência moral, uma ciência que não o anula mas se coloca a seu serviço, uma ciência que se situa como simples instrumento entre os que ele maneja na sua luta eterna pela perfeição.