"O mestre Carpeaux", de José Lins do Rego

"O mestre Carpeaux", de José Lins do Rego

Nota introdutória, Gabriel Gotthelf

O “último contador de histórias”, percebeu, como Gogol, quando dizia “Como é triste a minha Rússia!”, podia ele também dizer “Como é triste o meu Brasil!”. E Carpeaux poderia repetir: “Como é triste a minha falecida Áustria”. Um poeta reconhece outro. O caso hoje é José Lins do Rego a propósito de nosso mestre Otto Maria Carpeaux. O texto fornece-nos a perfeita caricatura do mestre, e nos recorda ainda que a vida é tragédia; tragédia esta que nos trouxe--falo no melhor sentido do termo--o maior literato e humanista que este país já teve.

O mestre Carpeaux

O Jornal, 31 de Janeiro. 1943.

Eis um homem que acredita na literatura, que põe a porta acima do rei. Milton acima da Magna Carta, a consciência no princípio de tudo. Este homem saiu de dentro de uma fornalha e nos conta a sua viagem; não veio de uma ilha florida, de um paraíso terrestre; este homem chegou do inferno e nos fala dele, nos conta tudo: tem a alma queimada, o corpo em chagas, mas incólume a consciência, o poder de falar, de dizer, de escrever. Tudo lhe tiraram, tudo de material lhe consumira: os livros, os quadros, a roupa do corpo. Mas o que lhe ficou vale pelos reinos da terra, ficou-lhe, integra, a faculdade criadora, a força de ser mais homem vivo que todos os seus algozes. A pátria foi esmagada, a terra nativa pisada, cuspida, ultrajada. As máquinas de guerra são frágeis instrumentos para uma consciência que sabe que é sopro de Deus, que é poder que manobra o verbo, que é o começo de tudo. Este homem que fez esta viagem tenebrosa, que viu de perto o focinho ruivo da fera, que ouviu de perto o uivo sinistro das hordas em marcha, está no Brasil, dando-nos a sua alma em ensaios de literatura que são uma suma de sua sabedoria, de suas experiências, de suas humanidades. Ele não se queixa do mundo; ele entende o mundo. É poeta e romancista, dando corpo vivo às ideias, encarnando pensamentos em homens que foram síntese da humanidade. Este homem que nos chegou para falar com tamanha liberdade, que nos fala dos mestres, como íntimo dos mestres, já é nosso, incorporou-se ao Brasil, penetrou nos nossos segredos, sabe das nossas letras como poucos dos nossos sabem, é ensaísta brasileiro como fora na sua Áustria massacrada. Este Otto Maria Carpeaux, que realiza o milagre de compor em português os seus ensaios de interpretação da alma humana, nos espanta pela sabedoria. Não é um erudito, um almanaque de fatos e datas, é a sabedoria viva, aquela sabedoria que brotava das conversações de Goethe com Eckermann. E tudo isto como se fosse um drama, numa sonata política. O Carpeaux vienense parece-me um espanhol das Astúrias, um trágico artista que joga com a vida e a morte como suas matérias primas. A expressão, a força de tocar nas chagas do homem e comover-se com as suas grandezas, de falar de Milton como do rebelado fantástico que não desprezou para a sua poesia a colaboração do demônio, de Dostoievski como profeta da mais radical revolução antiburguesa, de Goethe, como de um irmão, de um Napoleão, que seria assim o lado noturno, diamônico da alma goethiana, são poderes de um artista espantoso. 

Não sei porque encontro no mestre Carpeaux essências, vitalidade, do barroco de que tanto gosta ele de falar. Nada menos clássico no sentido de seco, de empalhado do que os arrancos poéticos de Carpeaux. Ele defende, neste seu admirável livro “Cinzas do Purgatório”, os profetas, e ele tem qualquer coisa de profético, no falar, na expressão. E tudo isto ao lado de uma luminosidade, que nos parece da boa estética de Leonardo. 

Carpeaux é complexo: é dos mais terríveis intransigentes, e é da mais cândida ternura. Mas é, em tudo, um poeta, um crítico poeta como foi Pater, um Pater que tivesse mais de Santa Teresa que de Platão. Quando ele fala do mistério da alma humana toma Milton para órgão, para o instrumento maior, porque no “Paraíso Perdido” “ressoam todas as vozes humanas e mais que humanas, a majestade divina e a grandeza demoníaca dos infernos, o esplendor dos anjos do alto e de baixo”.

E são assim todos os ensaios de Carpeaux: são sempre descobertas do grande poeta. E ele bem diz: “a grandeza do poeta consiste em ver as coisas pela primeira vez, como se ninguém as tivesse visto antes”.

E é o que ele faz, a cada instante.

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