"O Método da Interpretação", O Legado de Max Weber (Cap. 1)

"O Método da Interpretação", O Legado de Max Weber (Cap. 1)

Nota introdutória,

Este é o primeiro cap. do tratado metodológico de Ludwig Lachmann, chamado "The Legacy of Max Weber", nosso economista providencia uma interpretação genuinamente austríaca do sociólogo alemão, seguindo a ideia de que a metodologia de Max Weber é, de diversas formas, a metodologia dos economistas austríacos. Neste primeiro ensaio, Lachmann então busca convergir e interpretar a metodologia de Weber seguindo os cânones da praxiologia -- o que rende a Lachmann, então, a alcunha de ser também um intérprete da praxiologia misesiana, ao lado de Hayek, Rothbard, Machlup et alia.

O Método da Interpretação

Muito tem-se dito que Max Weber, ao propor o método de Verstehen como o método e estudo apropriado para a ação humana, ele estava essencialmente defendendo a herança do idealismo alemão contra o massacre do positivismo.[1] Essa visão, embora haja alguma verdade nela, falha em fazer justiça à complexa natureza da situação na qual Weber se encontrava, não menos também à sutileza de sua mente. É bem verdade que em alguns aspectos importantes ele permaneceu em boa parte como o herdeiro da Escola Historicista Alemã por toda sua vida. Mas, embora um discípulo, ele não era de modo algum um admirador acrítico dessa escola de pensamento, não hesitou em criticar seus protagonistas bem como alguns de seus maiores artigos de fé quando considerou necessário. Ademais, o início de seu interesse em questões de metodologia recai em um período no qual, depois de um longo período doente, ele veio a sentir a necessidade de reexaminar sua própria posição, assim como aquela posição da escola na qual ele se formou.

Mas, qualquer que seja a atitude própria de Weber a respeito disso, o método de Verstehen, a interpretação das elocuções humanas visando torná-las inteligíveis, é muito mais antiga que o idealismo alemão e que a escola historicista, a qual, em parte, surgiu desse método. Poderíamos até mesmo dizer que esse é o método “natural” de apresentar um registro inteligível das manifestações da mente humana, não é nada menos que o método tradicional da erudição clássica.

Sempre que desejamos “compreender” um texto, seja de natureza religiosa, literária, legal ou outra, temos de empregar um número de processos, cada qual a fim de alcançar acima de tudo a maior certeza possível àquilo que o autor “quis dizer”. Onde o texto estudado contém uma generalização, por exemplo, um preceito religioso ou uma norma legal, temos também de decidir a que tipo de situação concreta nosso texto pode se aplicar. A interpretação textual é, desse modo, o protótipo da Verstehen. Até o surgimento da ciência natural moderna esse era o método comumente aceito por todos os eruditos, estudassem eles a Bíblia ou o Corpus Juris Civilis, lessem Homero ou traduzissem Avicena ou Averróis do árabe. Será prontamente apreciado o quão pouco tudo isso tem a ver com “intuição”. O processo é um processo racional de estudo discursivo.

Ao interpretar um texto, o que essencialmente tentamos fazer é identificar um “sentido”, uma ideia, a que o texto busca dar expressão. Em outras palavras, a interpretação é um método de estudo comparativo por meio do qual tentamos estabelecer uma relação entre um evento observável (um texto legível) e uma ideia que existia em uma mente humana antes da escrita do texto, e ao qual este último busca conferir expressão. O objeto de nosso estudo é, desse modo, estabelecer um grau de correspondência entre um fenômeno e uma ideia.

O método e estudo a ser empregado para tal propósito precisa em grande parte tomar a forma de testes de coerência. Ao interpretar um texto de sentido incerto temos de questionar por cada sentido possível, se, e o quanto, esse sentido seria consistente com o que o mesmo autor diz em outras passagens da mesma obra ou em outras obras suas com aquilo que sabemos sobre sua vida e visões em geral e sobre outros assuntos, tal como são tratados no texto em questão.

Quando a escrita da história se tornou mais que o mero registro de res gestae [“meros atos”], quando a historiografia emergiu do estado de crônica e evoluiu para uma disciplina acadêmica, seria natural que os historiadores devessem adotar esse método. Mas eles o levaram para um estágio adiante. Não contentes somente em estudar crônicas antigas, eles tiveram de perguntar, em algum estágio, “por que” as pessoas agiram como agiram. Mas uma vez que a explicação da ação humana chegou a ser considerada como a grande tarefa da historiografia, pareceu natural perseguir a busca pelos propósitos do agente e seus planos pelos mesmos meios que aqueles a partir dos quais os eruditos por séculos tentaram certificar a “intenção do autor”. O antigo método clássico de estudo, assim, tornou-se o método da historiografia – o “método histórico”.

Como tamanha transformação, a adaptação de um método existente de estudo a uma nova disciplina, foi possível?

Esse é talvez o mais prontamente compreendido se primeiro olharmos para aquelas partes da história que mais claramente nos aparecem na forma de res gestae, ações de indivíduos. Aqui, a tarefa do historiador evidentemente consiste em identificar os propósitos dos indivíduos agindo. Pois a explicação causal na história é dificilmente concebível de outro modo que não em termos de propósitos. Há, assim, um paralelo entre as atividades dos filólogos e dos historiadores; ambos estão tentando estabelecer relações entre ideias e eventos subsequentes. Mas o historiador encara um problema mais complexo, em parte é claro porque ele tem de lidar com um grande número de atos e não somente com um texto, mas também em parte por outro motivo. Ele precisa perguntar até onde a variedade de propósitos perseguidos pelo indivíduo cuja ação ele estuda (como por qualquer outro indivíduo) se “encaixa”. Ele tem de verificar “O Plano”, o desígnio coerente por trás da ação observável na qual os vários propósitos bem como os meios empregados são vinculados juntos. Ele assim tem de conduzir testes de coerências em dois níveis. Em cada caso ele tem de verificar:

(I) se os propósitos que ele atribui ao indivíduo agindo são de fato consistentes uns com os outros e cabem na estrutura de um plano geral, a execução do qual acaba por justificar os fatos conhecidos;

(II) se o desígnio e a execução de tal plano são de fato consistentes com qualquer outra coisa que é conhecida acerca das intenções, circunstâncias etc., do indivíduo cuja ação é o assunto estudado.

Uma vez que percebemos que o método histórico é realmente nada mais que o método clássico de interpretação aplicado a ação manifesta em vez de a textos, um método que visa identificar um desígnio humano, um “sentido” por trás de eventos observáveis, não devemos ter dificuldade em aceitar que isso pode ser tão bem aplicado a interação humana quanto a atores individuais. Desse ponto de vista toda história é interação, que tem de ser interpretada em termos de planos rivais de vários atores. Toda historiografia tem de fato procedido desta maneira.

A questão que temos agora de encarar é se a ação de grupo confere a si mesma um tratamento nos mesmos termos. Seria favorável estudar em termos de propósito e planos do mesmo modo que a ação individual? Ou nosso método de interpretação encontra aqui um obstáculo insuperável?

Ao responder essa questão temos de distinguir entre ação de grupo organizada e desorganizada. Onde um grupo é organizado de tal modo que a tarefa de agir para ele, de planejar ação e prosseguir em tais planos, é confiada a certos indivíduos designados para tais propósitos, não há, é claro, problema alguns para nós. Tudo que foi dito até aqui sobre explicação histórica a ação individual aqui se aplica à ação desses oficiais. É assim que, de fato, a maior parte da história política e diplomática tem sido escrita. Historiadores tomaram como sua principal tarefa a explicação da ação de líderes políticos em termos de suas “políticas”, isto é, em termos de planos consistentes. Mesmo quando historiadores falam sobre “a política externa” de um país durante um período que excede o tempo de vida de qualquer indivíduo, o que se quer dizer, obviamente, é a execução contínua de um plano coerente durante um período longo.

A história econômica e social dificilmente pode ser escrita nesses termos exceto talvez em casos que, por exemplo, descreve-se o crescimento de um empreendimento comercial. Mas nosso método de interpretação não precisa nos falhar nem mesmo neste campo. A tarefa da explicação histórica consiste aqui em justificar um padrão recorrente de ação, e tal justificação, se deve ser uma justificação inteligível, novamente, requer interpretação em termos de elementos típicos de planos a serem encontrados em “ação anônima de massa”. A única diferença consiste no fato de que aqui os elementos de plano que nos interessam não são os milhões de propósitos individuais perseguidos, mas os elementos comuns e normas, instituições e o ambiente geral no qual todos esses planos devem se desenvolver. São esses elementos comuns, que milhões de planos devem conter e para os quais toda ação individual em uma dada sociedade deve se orientar, que aqui cabe ao historiador explicar. Sua tarefa, não mais primariamente preocupada com propósitos, que são aqui tomados como evidentes em vez de ignorados, é ainda a interpretação da ação em termos de planos e seus elementos. O método de interpretação que visa conectar eventos observáveis a tipos de projetos existentes nas mentes das pessoas agindo ainda se sustenta, e deve nos permitir apresentar uma justificação inteligível do que está acontecendo.

Por outro lado, temos de admitir que em casos que temos de lidar com ação de grupo que é completamente desorganizada, nem organizada e dirigida por líderes não orientados a normas, regras ou instituições comuns, nosso método falhará. Um tumultuo completamente espontâneo (se tal coisa existir) é melhor tratado como um “evento natural”. Não devemos poder dar uma justificativa inteligível disso; não pode haver aí questão alguma de coerência de planos.

Finalmente, chegamos à questão sobre se o método de interpretação pode ser empregado para além do domínio a história, a saber, as ciências sociais analíticas.

A resposta a essa questão é: afirmativo. Não parece haver razão pela qual um método que é útil na explicação da ação individual deveria ser menos assim na explicação das classes de tais ações. O caso é exatamente paralelo àquele discutido acima, quando estávamos preocupados com a história social e econômica. É verdade que ao explicar padrões recorrentes de ação, o objeto essencial de toda ciência social, não podemos providenciar tal explicação em termos e propósitos, como elementos de planos, porque os propósitos perseguidos por milhões de pessoas são, é claro, numerados em milhões. Frequentemente, todavia, podemos providenciar explicações em termos de elementos comuns a todos esses planos, tais como normas, instituições e às vezes comportamento institucionalizado, a maximização de lucros, ou a evitação de risco de insolvência. Na medida em que podemos explicar a recorrência de padrões de ação em termos de tais elementos de planos, estamos empregando com sucesso o método clássico de interpretação. Ainda estamos explicando eventos subsequentes em termos de ideias. Ademais, a linha divisória entre fenômenos históricos concretos e estruturas sociais permanentes é notoriamente tênue. A qual dessas classes deveríamos atribuir, por exemplo, a economia das cidades medievais, o sistema político da República de Veneza, ou as finanças públicas da Prússia de Frederico, O Grande? O simples fato é que todo padrão recorrente de eventos, qualquer coisa que sintamos que deva ser chamada de uma “estrutura”, requer explicação em termos de forças permanentes bem como em termos de circunstâncias históricas concretas. A interpretação é necessária tanto no primeiro como no último tipo de explicação.

Weber encontrou mérito neste método, que falta ao processo adotado pelas ciências naturais. Ele sentiu que no estudo da ação humana não deveríamos dispensar um método que nos permite verificar “o sentido” da ação, individual ou coletiva, enquanto as ciências naturais são, em todo caso, incapazes de fazer mais do que trazer um grande número de fenômenos observáveis dentro dos vínculos de um esquema analítico. Fenômenos naturais não podem ter “sentido” algum. Ao expor o método de Verstehen, Weber foi muito além de defender a herança da Escola Historicista Alemã.

Devemos agora dar uma breve justificativa da situação particular na qual Weber se encontrava compelido a confrontar essa questão crucial na metodologia das Ciências Sociais.

Quando em 1902 ele gradualmente se recuperou de sua doença, a Methodenstreit, isto é, a controvérsia acerca dos méritos de esquemas analíticos abstratos para o estudo de eventos sociais e, em particular, econômicos, que acabou por dividir os economistas austríacos e alemães em dois campos hostis, durava por vinte anos, e sinais de fadiga estavam se tornando aparentes em ambos os lados. Essa controvérsia começou em 1883 quando Carl Menger, professor de economia na Universidade de Viena, publicou um livro sobre os métodos das ciências sociais no qual ele defendeu a teoria econômica clássica e criticou a Escola Historicista, até então dominante na Alemanha.[2] Schmoller, a cabeça daquela escola, escreveu uma amarga avaliação o livro, a qual Menger respondeu no ano seguinte, 1884, com um tratado sobre “Os Erros da Escola Historicista” que, como disse Schumpeter, “estava bem carregada de ira” e continha um número de ataques pessoais a Schmoller. Depois disso, as relações amigáveis entre os economistas dos dois impérios se exauriram.

É digno de nota que nessa controvérsia Menger e os austríacos estavam completamente na defensiva. Eles não negaram a justificação dos estudos históricos no campo econômico e social, mas lutaram para sustentar o direito de, em verdade a necessidade, de análises abstratas dos fenômenos econômicos.

Weber, que no início de sua carreira fora um discípulo de Schmoller e cujos primeiros estudos econômicos foram de uma natureza histórica, estava ansioso para trazer a controvérsia a um fim. Nos anos em que estava doente ele se distanciou muito de suas antigas amarras.

Ele estava bem-disposto a concordar com os austríacos que toda explicação histórica requer esquemas causais que são de natureza geral. Ele reconheceu que há necessidade de teoria econômica. Mas houve certos aspectos da metodologia de Menger que ele não estava disposto a aceitar.

Menger considerou a descoberta e formulação de “leis exatas” como tarefa principal de toda ciência. Mas ele nunca enfatizou a distinção entre regularidade empírica e necessidade lógica, entre o que Leibniz chamou de vérités de fait e vérités de raison. Ele parece ter considerado a “lei” da utilidade marginal decrescente como uma lei empírica da natureza baseada em “impulsos” psicológicos.

Weber negou a alegação de Menger de que as “leis” que governam a conduta econômica (entre as quais estava a própria criação e Menger, a lei de utilidade marginal) são “leis exatas” no mesmo sentido daquelas que são encontradas na natureza. Ele considerou isso como uma “falácia naturalista”. Ele insistiu que a uniformidade observável da conduta humana na economia, a maximização de lucros nos negócios etc., é essencialmente de natureza “pragmática” e não tem nada a ver com “psicologia” de qualquer tipo. Uma vez que um homem decida conduzir seus negócios visando maximizar seus lucros, certas consequências necessárias se seguem, mas tal necessidade era de uma natureza estritamente condicional, e sua fonte era “pragmática” no sentido que ela se baseia na “lógica da situação” que o homem de negócios confrontou.[3] Em verdade, a teoria econômica abstrata consistia essencialmente de esquemas racionais nos quais as condições de ação bem-sucedida foram definidas de tal modo que exigem certos tipos de ação. Isso é algo muito diferente do modo pelo qual os eventos naturais são “determinados” por suas causas. A falácia naturalista consiste em confundir os dois.

Weber permaneceu em muito como o herdeiro da Escola Historicista também em outros aspectos. Adeptos dessa escola sempre objetaram aquilo que eles consideravam como a “separação artificial” entre a atividade social econômica e outros tipos de atividade, eles consideraram os economistas clássicos como culpados disso. Weber não viu razão pela qual os esquemas abstratos, cuja necessidade ele reconheceu, deveriam ser confinados a esquemas de conduta econômica racional. Para isso ele criou a famosa noção de Idealtypus [tipo ideal], que deu origem a muitas críticas.

Escolheremos um diferente ponto de partida. Mas primeiro temos de explicar por que o “Tipo Ideal” não nos parece oferecer um fundamento inicial para uma jornada adentro na teoria da ação social.[4]

Para Weber o tipo ideal era o instrumento-chefe da análise causal na sociedade, o conceito fundamental de toda ciência social. Assim como os conceitos de todas as ciências generalizantes, ele é obtido por um processo de abstração e precisa ser, portanto, relativamente vazio de conteúdo quando comparado à realidade. Mas, em nosso caso, a abstração não é completamente arbitrária. O que tomamos em troca de relativa vacuidade de conteúdo é “um maior grau de desambiguação” (gesteigerte Eindeutigkeit) em nossos conceitos. Isso nos permite ir além dos esquemas racionais da economia clássica e captar o sentido da ação irracional, por exemplo a dos místicos, ou a ação de uma multidão em estado de emoção em massa.

O tipo ideal é essencialmente uma unidade de medida. Quando usamos um tipo ideal ficamos a uma certa distância da realidade, mas precisamente por essa razão somos capazes de adquirir conhecimento dela: “Pela indicação da magnitude de aproximação de um fenômeno histórico a um de vários de nossos conceitos podemos ordenar esses fenômenos”. Em outras palavras, o tipo ideal serve ao propósito de ordenar fenômenos concretos em termos de sua distância em relação a ele. É nítido o quão diferente o tipo ideal de Weber é dos “modelos”, um dispositivo metodológico atualmente em moda em muitas das ciências sociais. Ambos são “construtos mentais”, ambos se alcançam por meio de abstração. Mas a virtude dos modelos reside em eles serem “testáveis”. Eles precisam servir ao propósito de prever eventos concretos. Ao escolher entre diferentes modelos, precisamos escolher aquele que nos permite fazer previsões que chegam o mais perto possível aos eventos observados no presente. Com os tipos ideais não é assim. Com os modelos, por mais remotos com relação a realidade seus elementos possam estar, qualquer distância entre as previsões deriváveis deles e a realidade é um sério defeito. Com nossos tipos ideais, em contraste, tal distância é uma virtude positiva visto que ela nos oferece um “espaço” no qual exibe-se o ordenamento de nossos eventos observados.

Como já foi mencionado, o que Weber quis como principal ferramenta conceitual das ciências sociais era um conceito suficientemente amplo que abranja tanto esquemas racionais quanto todos os tipos de generalizações históricas. O quão realmente amplo é o esquema que ele imaginou é verificado a partir do “cartão devisita” dos tipos ideais que ele apresentou quando desenvolveu a noção pela primeira vez em seu “Ensaio sobre Metodologia” em 1904.

Classe ou conceitos genéricos (Gattungsbegriffe) – tipos ideais – conceitos gerais ideo-típicos – ideias enquanto pensamentos – padrões que existem em ato nas mentes dos seres humanos – tipos ideais de tais ideias – ideais que governam os seres humanos – tipos ideais de tais ideais – ideais com os quais o historiador aborda os fatos históricos – construtos teóricos que usam dados empíricos ilustrativamente – investigações históricas que utilizam conceitos teóricos como casos limitantes ideais.[5]

O Tipo Ideal tornou-se o centro de intensa controvérsia, com a qual não é possível nem necessário nos preocuparmos aqui. Lidar com isso aqui de forma apropriada exigiria, no final das contas, um longo ensaio, e é duvidoso se o resultado justificaria o esforço. É digno de nota, entretanto, que nessa controvérsia alguns dos admiradores mais fervorosos de Weber se transformaram em seus mais severos críticos. Por exemplo, Sombart, seu companheiro de combate nos dias primevos da controvérsia Werturteil [juízos de valor], criticou duramente o conceito de Weber[6] por ter confundido o tipo ideal verdadeiro, que não permite mais que um pequeno grau de abstração, com os conceitos genéricos puramente formais de todas as ciências. Todos os críticos, por mais diferentes em pontos de vista, concordavam que o conceito de Weber era amplo demais para ser útil, enquanto cada um quis vê-lo delimitado a uma direção ou outra. Sobre o escopo e direção do processo de delimitação, e em particular sobre a questão de que segmento da realidade ele deveria cobrir não se chegou a acordo algum. A conclusão, entretanto, surgia bem claramente no fim para o qual diferentes ferramentas conceituais são necessárias, para lidar com esquemas racionais de ação por um lado e com generalizações históricas por outro lado.[7]

Mas qualquer fosse a visão que adotemos sobre essas controvérsias, há uma (para nós esmagadora) razão pela qual não podemos aceitar o tipo ideal como nosso conceito fundamental. Essa razão reside no simples fato de que o tipo ideal de Weber carece de qualquer referência específica a ação humana e parece ser facilmente aplicável ao reino animal ou ao mundo vegetal assim como à esfera humana.[8] Parece melhor começar nossa jornada sob um firmamento mais promissor e adotarmos como nosso conceito fundamental uma noção pertinente à ação humana, a saber, uma noção na qual o sentido da ação é pré-concebido até antes do próprio momento no qual o percurso da ação começa a se desvelar.

Propomos, portanto, prosseguir em um caminho totalmente diferente. Devemos começar de uma noção de uma vez mais simples e mais abrangente do que o controverso Idealtypus e suas variantes muito diferentes. Tentaremos mostrar que essa noção constitui o centro natural do método da interpretação e que a maior parte dos outros conceitos dos quais necessitamos para fornecer uma justificativa da ação humana e seus resultados podem ser derivados dela. Essa noção é o plano. Fenômenos de ação humana são sem dúvida eventos observáveis, e podem ser tratados como tais. Podemos, precisamente como no estudo da natureza, desenvolver várias hipóteses sobre o modo pelo qual esses eventos são relacionados um ao outro, e então proceder em julgar seus méritos rivais pelo critério de falseabilidade da previsão. Nada dito no que se segue deve ser tomado como implicando na negação dessa possibilidade. Mas, no campo da cultura, não é uma possibilidade totalmente recompensadora.

Uma característica distingue todo fenômeno cultural dos fenômenos naturais. Quando os homens agem eles carregam em suas mentes uma imagem do que eles querem alcançar. Toda ação humana pode ser considerada como: pôr em prática projetos que são designados a dar efeito a fins imaginados. Mas todo homem persegue uma multiplicidade de fins, o alcance de ao menos alguns deles acaba por impedir alcançar outros fins. Ademais, a escassez de meios a disposição de cada agente impõe mais restrições sobre sua escolha. Em outras palavras, os homens têm de escolher os propósitos que eles desejam atingir, e eles precisam fazer tal escolha dentro das delimitações de uma dada “situação”. Para agir, no final das contas, os homens têm de fazer planos, pesquisas compreensivas dos meios à sua disposição e dos modos nos quais eles podem ser usados, e deixar suas ações serem guiadas por eles.

A natureza não oferece paralelo a essa possibilidade. Fenômenos naturais existem no tempo e no espaço somente, observabilidade é o único critério para sua existência. O fato, por outro lado, de que a ação humana existe em forma de planos, isto é, de desígnio mental, antes de ser posta em prática no tempo e no espaço, permite-nos estudar as relações entre ação humana e os planos que as guiam. O método da interpretação nas ciências sociais reside em última instância na possibilidade, e na necessidade, de tal estudo comparativo. Nesse sentido, então, podemos dizer que podemos fornecer uma “explicação inteligível” da ação humana ao revelar o plano que a guia, uma tarefa que está além do alcance das ciências naturais. O mero fato de essa possibilidade existir é o fundamento do método de interpretação e assim oferece uma justificação pelo clamor por autonomia metodológica nas ciências sociais.[9]

Esse método de estudo comparativo, como dissemos antes, é aplicável tanto no campo histórico quanto no campo teórico. A explicação histórica foi vista como sendo explicação da ação humana, individual ou em grupo, em termos de planos. Em verde, essas partes da história mais particularmente interessadas com a res gestae, com história diplomática, militar e naval, nunca foram escritas de outra forma. Ela é, talvez, só um pouco mais óbvia que aquela do outro lado da escala, na história do pensamento e das ideias (Geistesgeschichte), as principais questões a serem desveladas são as mudanças na forma e na concepção que os sucessivos pensadores deram ao conteúdo variante de ideias similares.

Na teoria social, nossa principal tarefa é explicar fenômenos sociais observáveis ao reduzi-los a planos individuais (seus elementos, sua forma e concepção) que tipicamente dão origem a eles. Isso é o que Weber quis dizer pela explicação da ação “em termos o sentido dado a elas pelo agente”. Não é de se negar que os fenômenos sociais possam ser estudados por outros métodos, por exemplo ao correlacionar uma série de eventos observados no tempo. Devemos tentar mostrar por que é improvável que tais esforços sejam recompensadores.

Pode-se sustentar contra nós que poucos homens atingem seus fins, ou até mesmo uma parte gratificadora destes, e que na realidade ação nenhuma sequer ocorre totalmente de acordo com o plano. Nossa resposta provisória a essa acusação tem de ser a de que isso serve meramente para enfatizar a complexidade das relações entre plano e ação, e que o fato de que nenhum curso de ação seja sempre cheio de réplicas do plano que nos guia não nos permite dispensar o plano como nossa principal ferramenta. Na verdade, podemos nós mesmos tomar a acusação para um passo adiante e dizer que consequências indesejadas da ação são provavelmente mais importantes do que aquelas desejadas, e que elas em verdade constituem o problema mais interessante das ciências sociais analíticas. Tudo isso meramente para mostrar o quão interessante é o campo do estudo comparativo entre plano e ação, e como uma amplitude de problemas importantes se apresentam a nós uma vez que entramos nele.

Não se pode duvidar que a totalidade do problema da necessidade da flexibilidade de planos, das expectativas do futuro e das interpretações de experiência passada que incorporam em um plano, e a questão de como o sucesso ou a falha de um plano afetará a formação de outro terá de ser discutida em detalhe. Antes de fazer isso, entretanto, temos de justificar nossa proposta de usar o conceito de “plano” como o conceito fundamental do método de interpretação, ao tentar mostrar que que desse modo o principal fim de Weber pode ser alcançado. Teremos aqui de mostrar por que os métodos comumente empregados nas ciências naturais não nos ajudarão em nosso empenho.

Ao substancializar nossa afirmação de que ao fazer o conceito de “plano” a pedra angular de nossa análise a ação humana estaremos traçando legítimo usufruto do legado de Weber, temos de mostrar, é claro, que os principais elementos de nossa abordagem já se encontram em sua obra. Naquilo que tem de ser tomado como sua tese central sobre a metodologia de estudos culturais e o que as distingue das ciências naturais, no meio de seu primeiro ensaio metodológico, encontramos três passagens que, quando juntadas, parece-nos render tal interpretação. Ele primeiro aponta que a explicação causal é necessária tanto na cultura quanto na natureza.[10] Mas no primeiro caso “sua significância específica reside somente em que capazes de, e queremos, não meramente estabelecer mas sim compreender a ação humana.” (itálicos dele).[11] A possibilidade de tal compreensão é justificada pelo caráter propositivo da ação humana. Mas “propósito”, diz ele, “é para nós um fim imaginado que se torna causa de uma ação; justificamos isso da mesma forma que temos de justificar quaisquer outras causas que contribuam, ou possam contribuir, para um efeito significante”.[12]

Sustentamos que essas passagens significam que a característica distintiva da explicação causal da ação humana reside no fato de que o “efeito” da ação em sua forma imaginada, isto é, enquanto “propósito”, precede o curso atual de ação, e assim tem de ser considerado como uma causa. Na ação humana, assim como na natureza, causa precede o efeito. Mas enquanto o efeito da ação humana tem muitas causas além do propósito humano, e enquanto todas essas precisam, é claro, ter seu lugar em uma justificativa inteligível da ação, o propósito enquanto causa precisa não ser negligenciado. A essência da questão é que o fim visado, em sua forma mental, precisa preceder o fim alcançado como um evento observável.

É facilmente visto (com o benefício da retrospecção [hindsight]) que essa concepção da natureza da explicação causal da ação humana em termos de propósitos teria providenciado um ponto de partida mais firme e conveniente para a metodologia das ciências sociais do que a noção controversa de Tipo Ideal. É também fácil ver como ela está naturalmente vinculada a nosso conceito de plano. Em verdade, “plano” não é senão uma generalização do propósito. Na realidade os agentes, indivíduos bem como grupos, buscam muitos propósitos simultaneamente e têm de estabelecer uma ordem de prioridade entre eles. Ademais, as múltiplas restrições impostas sobre a perseguição de nossos fins pela escassez de meios bem como pela ubíqua presença de obstáculos, atuais ou potenciais (meios negativos), compele a todos nós a carregar todos os nossos meios e fins dentro da estrutura de uma computação compreensiva antes de começarmos com nosso percurso de ação. Nessa estrutura mental a ação de outros agentes, como aprenderemos, são de um papel do mais importante. Elas podem ser ou meios ou obstáculos para a perseguição de nossos próprios fins. Mas em qualquer caso não somos capazes de julgar se um propósito particular pode ser perseguido com os meios a nossa disposição, ou até mesmo se vale a pena persegui-lo no final das contas, até termos estabelecido uma estrutura compreensiva, um plano.

Desse modo, esperamos ter estabelecido nossa reivindicação de que ao agrupar os fenômenos de ação ao redor do conceito central de plano estamos fazendo um legítimo uso do legado de Weber.

Nossa próxima tarefa consiste em ter de mostrar por que o “método científico” das ciências naturais não pode ser de ajuda em nosso empenho. Desde quando Weber escreveu, a ciência natural tem tido muitos triunfos. Quase inevitavelmente, como uma das consequências nas ciências sociais em pegar emprestado desses métodos, a aplicação dos quais, em quaisquer novos campos, pareceu garantir sucesso. Como resultado, vemos a ascensão de novas ciências sociais, tais como a econometria e a sociometria, cujos métodos são pegos emprestados de suas irmãs no campo da natureza.

Por outro lado, uma boa parte também foi aprendido, nos últimos sessenta ou algo parecido, sobre a lógica e a metodologia, e isso significa sobre as limitações, da ciência. Quando Weber escreveu, nos anos iniciais do século, Mach e Poincaré dominavam o campo com suas ideias. Hoje é possível olhar a alguns aspectos desses problemas de um ponto de vista que estava além do alcance de Weber, e vindicarmos a autonomia das ciências sociais pelo uso de armas as quais os sucessores de Mach e Poincaré tornaram disponíveis para nós.

A ciência natural busca estabelecer leis universais que “explicarão”, isto é, preverão, um número máximo de eventos observáveis. Sobre a questão de se qualquer “explicação” para além da previsão bem-sucedida de eventos observáveis é, no final das contas, requisitada, as opiniões diferem. Os “instrumentalistas” a negam. Mas mesmo aqueles que não partilham dessa visão, em geral, estariam satisfeitos se o evento observável, que precisa ser uma mudança de um objeto identificável no tempo e no espaço, possa ser mostrado como sendo “determinado” dentro de um “sistema” fechado, definido em termos de uma lei universal e da “situação inicial”, isto é, os eventos observáveis que se obtêm em um ponto particular do espaço e do tempo.

Sobre a visão instrumentalista do método científico[13] não temos nada a adicionar ao que disse Weber. Nenhuma “explicação” que não tenha coisa alguma para oferecer além de previsão bem-sucedida de eventos observáveis pode satisfazer o estudante da ação que deseje compreendê-la. A visão não-instrumentalista, por outro lado, podemos (provisoriamente) aceitar, precisamente porque nos permite especificar com algum grau de precisão de por que não somos capazes de fazermos uso dele para nossos propósitos.

A sequência de eventos que deve confirmar ou refutar uma hipótese pode ser tomada como determinada somente se a “situação inicial”, na qual o feixe de eventos é posto em movimento, é conhecida e pode ser descrita em detalhe. O cientista que propõe um experimento para testar sua hipótese deve prestar muita atenção em especificar as condições nas quais o experimento deve ocorrer. Mas no caso da ação humana, mesmo se fossemos garantir a existência de “leis universais”, é impossível especificar tal situação inicial pela simples razão de que é impossível especificar o conhecimento. Evidentemente o conhecimento do agente é um importante elemento de sua ação. Testássemos hipóteses no que concerne a ação, o cânone do método científico nos exigiria descrever em detalhes todo o conhecimento possuído pelos agentes – uma evidente impossibilidade. Vemos assim que enquanto a “descrição da situação inicial” é uma exigência bem inócua na natureza, onde tudo o que temos de fazer é enumerar objetos no tempo e no espaço, para a ação humana essa exigência não pode ser atendida porque teríamos de incluir algo inespecificável – o conhecimento! Uma situação humana sem conhecimento específico não faz sentido. Segue-se que o “método científico” das ciências naturais será de pouco uso para o estudante da ação porque ele não é capaz de usar o processo de teste que esse método prescreve. É impossível explicar a ação humana sem levar em conta o estado do conhecimento dos indivíduos agindo. Qualquer tal empenho estaria aberto a todos os argumentos familiares contra o behaviorismo. A ação humana não é “determinada” em qualquer sentido próximo àquele segundo o qual a ciência natural deve busca a “determinância” dos eventos que estuda. Uma interpretação mecanicista da ação, calcada, digamos, em termos de “resposta a estímulos”, teria de tentar explicar simples fatos como o de diferentes homens em situações idênticas podendo agir de diferentes formas por causa de suas diferentes expectativas do futuro. Todos sabemos que homens que não partilham de uma experiência comum podem dar interpretações amplamente diferentes. A mente humana, tanto um receptáculo do passado quanto uma tela na qual nossa imaginação projeta imagens do futuro, desafia a todas essas generalizações sobre as quais o cânone metodológico das ciências naturais precisa se basear.

Nessas circunstâncias, então, está claro que os estudos culturais, preocupados como estão com a ação humana, requerem um diferente método de abordagem a seus objetos. Tentaremos agora dar um breve esboço do escopo e da natureza desse método que, no que se segue, chamaremos de método praxiológico. A ação humana não é determinada, mas não é arbitrária. Ela está vinculada, primeiro, pela escassez de meios à disposição dos agentes. Essa circunstância impõe uma restrição sobre a liberdade de ação. Ela está vinculada, em segundo lugar, pela circunstância que, enquanto os homens são livres para escolher os fins a se perseguir, uma vez que eles fizeram suas escolhas eles precisam aderir a elas se a ação consistente com uma chance de sucesso for, no final das contas, possível. Em outras palavras, a ação humana é livre dentro de uma área limitada por restrições. Obstáculos de diversos tipos limitam mais a área da liberdade.

O método praxiológico tem de levar essas circunstâncias em conta. A explicação causal no campo da ação não pode esperar atingir determinabilidade, mas isso não significa que devemos desistir de toda esperança de explicação. O que podemos esperar atingir aqui é poder mostrar a que fins, meios e obstáculos, a ação humana está orientada. Orientação assim emerge como um conceito tão fundamental para o estudo praxiológico quanto a determinabilidade é para a ciência natural. Na medida em que este último requer um sistema analítico “fechado”, consistindo em funções como variáveis dependentes e independentes bem como constantes, assegurar o caráter determinado de seus resultados, então a praxiologia requer uma forma de pensamento mais flexível, uma estrutura analítica “aberta” que nos permitirá, contudo, verificar os limites da ação. Orientação é o conceito crucial dentro desta estrutura.

Em teoria praxiológica estamos preocupados com os típicos pontos de orientação dos cursos típicos de ação. No estudo histórico concreto nos empenhamos em verificar os atuais fins, meios e obstáculos aos quais um curso concreto de ação de um indivíduo ou um grupo estava orientado. Orientação era, é claro, também o conceito fundamental da teoria da ação de Weber. Viajando por uma rota um pouco diferente, chegamos à mesma conclusão que ele. Pode também ser visto agora, além disso, que a orientação carreta em plano. Um plano tem de conter uma explicação compreensiva de fins, meios e obstáculos aos quais um curso de ação é orientado.  Isso provê a estrutura sistemática de todos os pontos de orientação relevantes a um dado curso de ação. Mas é claro, esse “mapa de orientação” é somente um dos ingredientes necessários de um plano. Para além disso, o plano deve, inter alia [entre outros], conter diretivas para ação no espaço e no tempo.

Algo agora tem de ser dito acerca do elemento do conhecimento na elaboração de planos. Ao fazer planos, relacionar meios e fins e prescrever ação no tempo e no espaço, os homens evidentemente trazem seu fundo existente de conhecimento para influenciar uma situação presente. Mas como precisamente isso é feito é difícil de descrever com qualquer precisão. Evidentemente somente parte do conhecimento total de um homem será relevante para um dado plano. Que parte? Isso dependerá de sua interpretação subjetiva do futuro. Em outras palavras, cada plano contém elementos subjetivos de mais de um tipo. Não meramente os propósitos buscados nele refletem a escolha subjetiva de fins, mas que propósitos são tomados como alcançáveis em uma dada situação dependem das expectativas subjetivas de um futuro incerto bem como do juízo subjetivo de relevância da experiência passada, subjetivamente interpretada, a esse futuro.

As muitas camadas de subjetividade já encontradas em nossa tentativa de expor o elemento do conhecimento na elaboração de planos não meramente desafiam qualquer interpretação behaviorística ou mecanicista da ação humana. Elas providenciam não meramente uma razão, como já vimos anteriormente, pela qual uma “situação inicial” como exigido pela metodologia naturalista, não possa nem mesmo ser definida na ação humana. Elas também providenciam algumas alusões úteis para nosso trabalho posterior.

Em primeiro lugar, elas sugerem que devemos estar sujeitos a cometer grandes erros caso reconheçamos os homens como iguais. Para nossos propósitos, na análise praxiológica, fazemos melhor em tratá-los como desiguais. Não é senão muito claro que diferentes homens com o mesmo conhecimento, adquirido talvez em escolas às quais todo homem teve igual acesso, em uma sociedade dedicada ao ideal de “oportunidade igual a todos”, irão, contudo, aplicar diferentes partes de seu conhecimento comum a uma dada situação, porque seus juízos sobre o que é relevante para ela diferirão. A diferente ação de homens é, em verdade, orientada a diferente conhecimento bebido de diferentes fontes de experiência, mas conhecimentos diferentes podem fluir até mesmo da mesma experiência.

Essas circunstâncias formam um caso contra o que podemos chamar de “igualitarismo metodológico”. Em segundo lugar, elas sugerem a existência de certos problemas que surgem no caso de busca simultânea de planos por diferentes agentes, onde esses planos têm alguns meios ou fins em comum. Em tais casos cada plano se torna um ponto de orientação para outros planos, e problemas de interação (fricção) ou cooperação podem surgir. A raison d’être do método praxiológico reside no fato de que a ação humana existe em forma mental, como plano, antes de ocorrer no espaço e no tempo. Desse modo, podemos tomar a ação como o desvelamento de um esquema mental, e fazer um estudo comparativo de ação e esquema. Em tal estudo a significância crucial se anexa ao grau de correspondência entre as condições de ação encontradas na realidade pelo agente e os pontos de orientação (meios, obstáculos) os quais, em antecipação, os refletem dentro do plano.

Todo plano, é claro, tem de ser flexível em alguma extensão se ele dever ser bem-sucedido. A necessidade por flexibilidade em parte se estima do fato de que algum do conhecimento relevante para ação será somente adquirido in agendo, isto é, depois de o plano ter sido delineado e o curso de ação ter começado. Nessa altura o planejador terá de deixar certos espaços em branco em seu esquema, detalhes a serem preenchidos depois na medida em que se acrescente novo conhecimento na ação. É impossível, obviamente, planejar tudo antecipadamente, até o último minuto, em detalhe.

Mas o novo conhecimento adquirido durante o curso de ação não será somente desse tipo, isto é, conhecimento meramente adicional ao agente que o possuiu no começo. Nos casos mais importantes tal novo conhecimento corrigirá e substituirá o conhecimento anterior. Nessa medida, então, o plano terá de ser em parte revisado visto que os pontos de orientação que ele contém são afetados pelo novo conhecimento adquirido na ação. Em um caso extremo tal novo conhecimento pode sugerir que o propósito do plano é completamente inalcançável, e então todo o plano terá de ser descontinuado.

Vemos assim que a relação entre plano e ação não é uma relação simples de causa e efeito, mas uma relação complexa de interação entre atos mentais e eventos observáveis. Até mesmo pensar aqui em variáveis dependentes e independentes seria desorientador. Quando novo conhecimento é adquirido, o que acontece é que do amplo fluxo de experiência certos elementos são selecionados por nossa mente, que então os transforma em uma nova estrutura de conhecimento, modificando e parcialmente substituindo uma estrutura anterior. Nesse, assim como em outros aspectos, os homens são desiguais, e nenhuma dupla de mentes performará essa tarefa de forma idêntica. Os atos mentais pelos quais transformamos a experiência em conhecimento e pelos quais nossa “imagem de mundo” é constituída, são coloridas por todas as características de nossa personalidade. É impossível “prever” que conhecimento um agente derivará de uma dada experiência, visto que ele precisa interpretá-la em termos de sua “imagem de situação” existente antes disso poder se tornar conhecimento.

É bem instrutivo voltar-nos por um momento ao método naturalista e ver como ele tenta lidar com esses problemas. Dificilmente nos surpreenderá aprender que aqueles cujas premissas behaviorísticas o compelem a tomar toda ação humana como “resposta a estímulo” devem ter dificuldade para explicar a interpretação da experiência e sua transformação em conhecimento. O caminho fácil para fora desse dilema é assumir, com efeito, que não há nada de novo sob o sol, e que um conjunto compreensivo de planos alternativos, suficientemente compreensivos para cobrir toda contingência possível existe desde o princípio. A “resposta” a circunstâncias em mudança consiste assim em nada mais árduo do que tirar da cartola esse novo plano que corresponde às novas circunstâncias e que, se nosso conjunto for compreensível, tem de já existir! A questão sobre como esse conjunto compreensivo de planos alternativos, que somente uma verdadeira super mente possivelmente poderia ter inventado, veio a existir, é então educadamente ignorada.

Podemos distinguir uma versão mais antiga e uma mais recente desse recurso. A versão mais antiga encontramos no sistema econômico de Pareto[14] na forma da assim chamada análise da curva de indiferença. Aqui assume-se que ambos consumidores e produtores possuem um conjunto compreensivo de planos alternativos (graficamente retratados na forma de curvas bidimensionais de indiferença para qualquer par de bens) que os permite sempre encontrar a “resposta ótima” a qualquer mudança do preço de mercado ou outras condições de mercado. Ao empregar o “método estático”, que, com efeito, postula que os agentes reagem às circunstâncias presentes somente e que ninguém nunca fornece um pensamento para um futuro que possa ser diferente do presente, a essa solução está então dada a aparência de determinabilidade.

A versão mais recente do recurso toma a forma de observar a ação humana em analogia a um sistema de feedback. Os feitos do homem, agindo em um mundo em que fatos relevantes tornam-se conhecidos a ele somente gradualmente no percurso de sua ação, são aqui considerados como análogos a “ação” de, por exemplo, aqueles veículos interplanetários que supostamente “dirigem a si mesmos” por um número de recursos técnicos descritos como “traduzindo informação em ação apropriada”. Instâncias semelhantes são encontradas na biologia sempre que organismos são capazes de resistir a forças hostis a sua sobrevivência.

O exemplo mostra como a abordagem mecanicista está confinada, no alcance da analogia sobre a qual ela é capaz de derivar, assim como na escolha de outras ferramentas conceituais à sua disposição, às formas de pensamento apropriadas aos problemas encontrados na natureza e na tecnologia. A biologia há muito tempo omitiu “propósito” de seu vocabulário e se confinou à descrição e ordenamento de seus objetos. A tecnologia, certamente, está preocupada com propósitos, mas com os propósitos dos homens que leguem o sistema de feedback. Mas, em qualquer caso, seja organismo ou artefato, um sistema de feedback pode “lidar” com um número finito de ocorrências porque ele está equipado para fazer tal. A questão de por que ele é assim equipado não aparece. Ademais, a “informação” que ele usa não requer ato algum de interpretação. De todo modo, por outro lado, a experiência requer interpretação, isto é, atos da mente que nenhuma dupla de mentes performa de forma igual e que transformam isso em conhecimento que somente homens podem ter, a analogia mecanicista não pode ser aplicada.

À luz desse breve e inevitavelmente bem inadequado esboço do método praxiológico temos agora de tentar responder a três questões que provavelmente surgiram na mente do leitor.

  1. Planos frequentemente falham. Tal falha não invalidaria essa correspondência entre plano e ação, entre esquema mental e evento observável, sobre o qual nosso método se baseia? Não significaria isso que somente a ação bem-sucedida prestam a nosso método de tratamento?
  2. Podemos nós dizer qualquer coisa acerca de relações entre planos de diferentes agentes? Na realidade, parece, tais relações podem ser de caráter bem diferente. Às vezes encontramos cooperação, onde as ações todas de diferentes agentes contribuem rumo a conquista de um mesmo fim. Mas às vezes encontramos rivalidade, onde diferentes homens agem sob propósitos cruzados. O que temos a dizer sobre essas possibilidades?

III. Todo plano está ajustado a certos propósitos concretos que o agente pretende conquistar. Mas frequentemente foi tido que consequências indesejadas de ação estão entre os problemas mais importantes das ciências sociais. Se é assim, como pode um esquema analítico como o nosso, no qual propósito e plano são os conceitos fundamentais, lidar com fenômenos que não foram intencionados ou planejados por qualquer agente e o qual assim parece transcender as categorias de nosso esquema de pensamento?

Ao responder a primeira questão precisamos fazer nada mais além de referir ao que foi dito acima sobre o elemento do conhecimento no planejamento e do papel dos pontos de orientação. A falha de um plano precisa ser devido a conhecimento inadequado às circunstâncias nas quais a ação tem de ser tomada. Apontamos acima que novo conhecimento adquirido durante o curso de ação pode invalidar e substituir o conhecimento sobre o qual o plano estava baseado. Mencionamos a possibilidade que, como um resultado, o plano inteiro pode ter de ser abandonado.

Podemos ir ainda um passo adiante. A mera observação de eventos externos não pode nos dizer nada sobre sucesso e falha. Somente em termos de graus de correspondência entre plano e resultado de ação que podemos significantemente falar de sucesso e falha no final das contas. A correspondência entre plano e ação, tão distante de ser invalidada pela falha, assim, em contrário, prova a si mesma como uma ferramenta conceitual indispensável para o estudo da falha.

A segunda questão levanta problemas de importância fundamental que teremos de lidar ao longo do resto deste livro.

Certamente, a análise do plano individual pode ser nada além do primeiro passo na construção de uma teoria da ação. Mas é também um passo indispensável. Tendo o tomado, não acharemos tão difícil de acomodar os planos e ações de outros agentes dentro da estrutura de nosso esquema analítico. Para nosso agente, eles são simplesmente pontos de orientação de nenhum modo diferentes de outras circunstâncias de ação. Os outros agentes, sejam eles aliados ou rivais, ampliam ou restringem nossa própria liberdade de ação. No primeiro caso a cooperação deles nos provê com meios; de modo que no último caso sua rivalidade oferece um obstáculo. Em cada caso a ação projetada deles constitui pontos de orientação para nós.

A real dificuldade reside aqui em uma circunstância para a qual já dirigimos atenção. No momento do planejamento da ação futura de outros, assim como tantas outras condições de sucesso, são incertas e desconhecidas. Podemos somente formar expectativas sobre elas e usá-las para nossa orientação. Mas, é claro, expectativas podem ser frustradas com consequências que já conhecemos. Visto que a ação humana é mais volátil que as condições da natureza, temos aqui uma fonte de perigo para a ação bem-sucedida, a importância da qual cresce conforme a sociedade cresce em complexidade. Ao mesmo tempo todas as sociedades evoluíram instituições que são calculadas para reduzir essa incerteza. A elas é que nosso segundo ensaio será dedicado.

O objeto da terceira questão, as consequências não intencionadas da ação, também nos ocupará em páginas posteriores. Pelo momento, confinaremos-nos a delinear uma distinção para o propósito do qual somos capazes de fazer uso de nossa resposta à primeira questão. Aqui temos de distinguir entre casos nos quais as consequências não planejadas fluem a partir do sucesso de planos individuais, e aquelas onde elas fluem da falha. O exemplo mais conhecido do primeiro caso é uma economia de mercado na qual a busca de seus próprios propósitos por parte dos consumidores e produtores, a satisfação do desejo-satisfação individual e a maximização de lucros, leva à alocação ótima de recursos e à mais alta satisfação de desejos possíveis. Uma “posição de equilíbrio para o sistema econômico como um todo” é assim alcançada e mantida devido ao repetido sucesso de todos os planos individuais. O sucesso desses planos aqui acarreta na estabilidade do sistema econômico.

Mas onde a consequência indesejada flui da falha, tal estabilidade obviamente não existirá. Se as revisões de planos se fazem assim necessárias e o subsequente concatenamento de eventos são sempre prováveis de gerar estabilidade em um novo sistema, ou se eles levarão a crônica instabilidade, possivelmente até mesmo a enfraquecimento progressivo das forças que tendem a integrar o sistema social, é uma questão à qual nos voltaremos em um momento.

O efeito ordinário da coexistência de um número de planos divergentes que dizem respeito, parcialmente ao menos, aos mesmos meios e fins será, é claro, que alguns planos falham e têm de ser revisados. O planejamento malsucedido, assim, provoca a necessidade por mais, e possivelmente melhores, planos. Isso não invalida de modo algum a necessidade de nossa análise da ação em termos de planos.

É impossível mostrar que, como um resultado de repetidas falhas e revisões, os vários planos divergentes tenderão a crescer mais próximos juntos e no fim convergirem. Isso seria o caso somente em um mundo estacionário no qual pode ser legítimo esperar que agentes, como homens atirando em um alvo fixo, irão, como resultado de um processo de tentativa e erro, gradualmente chegar a aprender mais e mais sobre as circunstâncias nas quais eles têm de agir e, assim, poderem progressivamente corrigir seus erros. Mas o mundo real é um mundo de contínua mudança inesperada no qual alvos estão em movimento em vez de fixos. Isso significa que mesmo quando os homens estão ganhando conhecimento adicional ao aprender de erros prévios, ao mesmíssimo tempo algo de seu conhecimento existente está continuamente se tornando obsoleto. Uma situação é até possível, a qual podemos chamar de “a tragédia do pioneiro prematuro”, na qual o erro de um único agente consiste em antecipar um evento futuro em uma data muito prematura, de modo que, estivesse ele aqui para “aprender” de seu erro, ele teria atualmente nulificado conhecimento válido que, se retido para uma data posterior, provavelmente se provaria como útil. Temos de concluir que em um mundo em movimento, forças que reduzem a divergência de planos e outras forças que tendem a ampliar tal divergência estarão ambas em operação, e que é impossível dizer qual conjunto de forças prevalecerá em qualquer situação concreta.

Finalmente, há aqui um aspecto do complexo de problemas causados por consequências não intencionadas de ação para as quais chamaremos atenção aqui, embora várias de suas manifestações nos ocupem em partes subsequentes deste livro. O problema é um que podemos chamar de o problema da sucessão intergeracional de planos. O mundo no qual estamos planejando hoje, com suas casas, ruas, parques, meios de comunicação etc., é em grande parte o resultado acumulativo de planos feitos por nossos ancestrais. Alguns desses recursos permanentes foram é claro planejados para ser usados por gerações futuras, mas alguns não foram. Em antigas cidades, por exemplo, achamos muitas construções que ao longo dos séculos serviram a uma sucessão de usos sobre os quais nunca se sonhou por seus arquitetos originais, mansões agora são hotéis, estábulos agora se tornaram garagens, salões de assembleias se tornaram correios, e assim em diante. Duas interpretações desses fatos em termos de nosso esquema analítico são possíveis, das quais uma é desfavorável, a outra favorável, à análise da ação em termos de planos tal como a que estamos defendendo. Por um lado, podemos dizer que esses fatos mostram a ubíqua natureza das consequências indesejadas, e desse modo não planejadas, da ação, e que a lição que devemos aprender delas é que a esfera da ação planejada é, no final das contas, uma pequena parte do domínio inteiro da ação humana. Essa é a visão desfavorável ao time de análise pela qual clamamos.

Mas outra interpretação desse fato parece para nós mais sutil e mais persuasivo. Podemos chamar tais planos como nos apresentam, quando completos, com artefatos permanentes tais como aqueles mencionados acima para isso por gerações futuras, de planos “abertos”, e distingui-los de todos os outros planos. Essa interpretação aumenta a difícil questão sobre para quando exatamente somos intitulados a falar da compleição de um plano.

Em um sentido importante, o homem agente está a todo momento engajado em desenvolver algum plano completo. Homem nenhum vive para ver o dia em que tenha realizado todos os seus planos. Esses planos formam algo como um escalão, um começando e um terminando todo dia, de modo que o último está ainda incompleto quando o anterior é completado. Falar de uma de uma sucessão intergeracional de planos pode ser realmente desorientador se, ao fazer isso fossemos convir à noção de que um plano precisa ser completado antes de outro começar. Isso está, é claro, bem errado, e pode ser melhor falar da rede intertemporal de planos para dar expressão à natureza intrigante das formas de integração por meio do qual o planejamento e a ação são fundidos em um todo. Dentro dessa rede os artefatos mencionados acima, relíquias de planos abertos do passado, mas ao mesmo tempo recursos presentes disponíveis para planejar o futuro, ocupar pontos estratégicos, a existência contínua da qual se sublinha a permanente significância das consequências indesejadas da ação humana intencional.

 

Nota

 

 

[1] Veja, por exemplo, Talcott Parsons, The Structure of Social Actions (McGraw-Hill, 1937), cap. XIII, “The Idealistic Tradition.

[2] Carl Menger, Untersuchungen über die Methode der Sozialwissenschaften und der Politischen Ökonomie Insbesondere (Leipzig 1883), traduzido como Problems of Economics and Sociology, editado com uma introdução por Louis Schneider (University of Illinois Press, 1963).

[3] Gesammelte aufsätze zur Wissenschaftslehre (Second Edition, 1951), p. 396.

[4] Weber discute essa noção extensivamente em The Methodology of the Social Sciences, traduzido por Edward A. Shils e Henry A. Finch (Free Press of Glencoe, Nova York, 1949), pp. 89-111.

[5] Ibid., p. 103.

[6] Werner Sombart Die drei Nationalökonomie (Munique 1930), pp. 245-6.

[7] Para uma pesquisa interessante sobre a controvérsia, veja Fritz Machlup, “Idealtypus, Wirklichkeit und Konstruktion”, em Ordo, vol. XII (1960-61). Veja também Walter Eucken, The Foundations of Economics (1950), p. 348, n. 66.

[8] Em 1913 Weber admitiu isso. “Logicamente não faz diferença se um tipo ideal é formado de relações significativas e inteligíveis ou de relações especificamente sem sentido.” Gesammette Aufsätze zur Wissenschaftslehre (nossa tradução), p. 438.

[9] Cf., Alfred Schütz, “Choosing among projects of action”, Collected Papers, Vol. I (Haia, 1962), pp. 67-96.

[10] Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre, p. 182.

[11] Ibid., p. 183 (nossa tradução).

[12] Ibid.

[13] Para uma sucinta explicação dessa visão aplicada a uma ciência social veja Milton Friedman, Essay in Positive Economics (Chicago, 1953), Part I.

[14] V. Pareto, Manuel d’Economie Politique, Second Edition (1927).

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