O Molinismo e a Bíblia (parte 1), de Kirk R. MacGregor

O Molinismo e a Bíblia (parte 1), de Kirk R. MacGregor

Texto introdutório (Alta Linguagem): Neste artigo, pertencente ao livro Molinist theological and philosophical ventures, Kirk R. MacGregor, autor de nosso futuro lançamento Luís de Molina: vida e teologia do fundador do conhecimento médio, trata de combater uma das afirmações mais recorrentes dos antimolinistas, em especial a de que as doutrinas de Molina são compostas por inovações que não são sustentáveis por nenhuma teologia escriturística, ou seja, não passaria de uma invenção humana para conciliar o Livre Arbítrio e a Soberania de Deus. Neste texto é dada uma resposta contundente, exegética, quanto ao uso da filosofia no procedimento teológico e também sua aplicação em diversas situações apontadas pela Escritura.

 

O Molinismo e a Bíblia

Kirk R. MacGregor

Parte um

Uma crítica frequente ao molinismo alega que este seria um construto filosófico humano que não decorre logicamente das Escrituras, mas uma imposição sobre a Bíblia visando preservar, a todo custo, a liberdade humana libertária. Nos dois primeiros capítulos [este é o primeiro], meu objetivo é refutar essa crítica. Para isso, primeiro abordo a relação adequada entre filosofia e teologia. Isso implica responder às seguintes perguntas: Todos os construtos filosóficos são meramente criações humanas, ou pelo menos alguns deles são descobertas humanas de verdades fundamentadas ontologicamente na mente de Deus? Se for o último caso, como distinguir entre os dois tipos? Podemos usar a filosofia legitimamente na interpretação bíblica? Admitindo que construtos filosóficos não podem ser legitimamente sobrepostos às Escrituras, seria lícito recorrer a eles quando parecem pertinentes ao texto bíblico?

Após responder a tais questões, examino e analiso os dados bíblicos sobre soberania divina, liberdade humana, predestinação, graça e vontade salvífica de Deus. Sustentarei que, para cada locus doutrinário, as afirmações das Escrituras devem ser consideradas em seu sentido literal, sem subordinar um locus a outro ou diluir qualquer locus em termos de outro. Creio que um modelo sólido de autoridade bíblica exige isso. Ao destacar que nenhuma das afirmações bíblicas está logicamente em contradição com as demais, proponho que amar a Deus com toda nossa mente nos impele a usar o raciocínio abdutivo (ou inferência para a melhor explicação) para sintetizar tais afirmações. Argumentarei que a estrutura molinista é o resultado lógico desse tipo de raciocínio.

A relação apropriada entre teologia e filosofia

A teologia é, como Tomás de Aquino destacou, a rainha das ciências.[1] Ela é a disciplina mais avançada do estudo, pois é o estudo de Deus, o Ser maior que se pode conceber. Portanto, seria de se esperar que a teologia, quando praticada corretamente, fosse bastante complexa. No entanto, muitas pessoas desejam uma teologia simplista. Como amigos muçulmanos e Testemunhas de Jeová já me disseram, um dos atrativos de sua teologia unitarista é sua simplicidade: Deus é um único ser e uma única pessoa. Até uma criança, comentam eles, consegue entender isso. Nunca deixo de me admirar como muçulmanos e Testemunhas de Jeová veem essa simplicidade como algo positivo ou como um sinal de que sua teologia é verdadeira. Pelo contrário, vejo isso como um sinal claro de que sua teologia é falsa. Deixe-me ilustrar com um exemplo. Suponha que meu filho do quarto ano diga que a aritmética é o nível mais alto da matemática, pois até ele consegue fazer cálculos aritméticos. Eu responderia que a aritmética é um nível extremamente básico da matemática, que precisa ser dominado antes que ele possa avançar para níveis mais complexos, como geometria, álgebra e trigonometria—os quais, por sua vez, precisam ser dominados antes que ele possa estudar cálculos avançados, e assim por diante. Da mesma forma, uma teologia que até uma criança consegue entender inevitavelmente falhará em compreender a realidade de quem é o Ser Supremo.

Em consonância com a analogia do cálculo, fazer teologia com excelência pressupõe que o teólogo tenha dominado ciências menores que constituem pré-requisitos para o empreendimento teológico. Tomás de Aquino argumentou, corretamente em meu juízo, que a maior dessas ciências preliminares é a filosofia. A filosofia, etimologicamente, é o amor (philo-) à sabedoria (sophia). Amar algo implica buscá-lo. Podemos, portanto, definir a filosofia como o amor e a busca pela sabedoria. Os dados bíblicos sobre a sabedoria são abundantes. A Bíblia distingue dois tipos de sabedoria: a sabedoria genuína, chamada de “sabedoria do alto” (Tg 3:17); e a sabedoria falsa, denominada “sabedoria deste mundo” (1Cor 1:20), “sabedoria humana” (1Cor 2:13) e “sabedoria terrena” (2Cor 1:12). As Escrituras deixam claro que a sabedoria genuína está ontologicamente fundamentada em Deus e, portanto, nos vem dEle. Como exclamou Daniel: “Bendito seja o nome de Deus para sempre, pois a sabedoria e o poder lhe pertencem. Ele muda os tempos e as estações, remove reis e estabelece reis; dá sabedoria aos sábios e entendimento aos inteligentes” (Dn 2:20-21). Jó expressa o mesmo sentimento: “Com Deus estão a sabedoria e a força; a Ele pertencem o conselho e o entendimento” (Jó 12:13). Deus afirma que “pôs a sabedoria no íntimo” e “deu entendimento à mente” (Jó 38:36; cf. 1Rs 3:28; 4:29; 5:12; 10:24; 2Cr 9:3; 9:23; Ed 7:25; Ef 1:8-9,17; Tg 1:5).

A raiz divina da sabedoria recebe sua expressão poética clássica no oitavo capítulo do livro de Provérbios. Ali, a sabedoria proclama:

O Senhor me possuiu no princípio de seus caminhos, desde então, e antes de suas obras. Desde a eternidade fui ungida, desde o princípio, antes do começo da terra. Quando ainda não havia abismos, fui gerada, quando ainda não havia fontes carregadas de águas. Antes que os montes se houvessem assentado, antes dos outeiros, eu fui gerada. Ainda ele não tinha feito a terra, nem os campos, nem o princípio do pó do mundo. Quando ele preparava os céus, aí estava eu, quando traçava o horizonte sobre a face do abismo; Quando firmava as nuvens acima, quando fortificava as fontes do abismo, Quando fixava ao mar o seu termo, para que as águas não traspassassem o seu mando, quando compunha os fundamentos da terra. Então eu estava com ele, e era seu arquiteto; era cada dia as suas delícias, alegrando-me perante ele em todo o tempo; Regozijando-me no seu mundo habitável e enchendo-me de prazer com os filhos dos homens. (Provérbios 8:22-31).

Já que é evidente que Deus nunca careceu de sabedoria, a exclamação poética de que Ele criou a sabedoria “no início de sua obra” e como “a primeira de suas ações desde seus feitos mais antigos” significa, literalmente, que a sabedoria existe eternamente em Deus e talvez seja eternamente gerada pela mente divina. Portanto, Deus é “admiravelmente sábio” (Is 28:29), e o Espírito do Senhor é “o Espírito de sabedoria e de entendimento” (Is 11:2). Em sua explanação sobre os dons espirituais, Paulo declarou: “A um é dada, mediante o Espírito, a palavra da sabedoria; e a outro, a palavra do conhecimento, segundo o mesmo Espírito” (1Cor 12:8). Por sua sabedoria, Deus criou o universo, incluindo a terra e todas as suas criaturas (Sl 104:24; Pv 3:19; Jr 10:12; 51:15). O Novo Testamento identifica explicitamente Jesus Cristo como a “sabedoria de Deus” (1Cor 1:24, 30), “no qual estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento” (Cl 2:4). O Evangelho de João iguala famosamente o Cristo pré-encarnado ao Logos—a sabedoria divina e o princípio racional supremo que ordena o universo—, por meio do qual “todas as coisas vieram a existir” (Jo 1:1-2, 10, 14; cf. Cl 1:16). Como demonstram seus ensinos e ações, Jesus é a personificação da sabedoria genuína (Mt 11:19; 23:34; Mc 6:2; Lc 2:40; 7:35; 11:49).

A Escritura exorta os seres humanos a adquirirem sabedorias enquanto tal e alerta aos perigos de negligenciar a sabedoria (Prov 1:20–33; 3:21; 4:10–11; 5:1; 7:4; 8:1–21; 9:13-18). A sabedoria é pré-requisito para temer e conhecer a Deus:

Filho meu, se aceitares as minhas palavras, e esconderes contigo os meus mandamentos, Para fazeres o teu ouvido atento à sabedoria; e inclinares o teu coração ao entendimento; Se clamares por conhecimento, e por inteligência alçares a tua voz, Se como a prata a buscares e como a tesouros escondidos a procurares, Então entenderás o temor do Senhor, e acharás o conhecimento de Deus. Porque o Senhor dá a sabedoria; da sua boca é que vem o conhecimento e o entendimento (Provérbios 2:1-6). 

Portanto, a Bíblia nos ordena a dedicarmo-nos à tarefa da filosofia, isto é, ao amor e à busca pela sabedoria: “Adquire sabedoria, adquire inteligência; não te esqueças das palavras da minha boca, nem delas te apartes. Não abandones a sabedoria, e ela te guardará; ama-a, e ela te protegerá. O princípio da sabedoria é este: Adquire sabedoria; sim, com tudo o que possuis, adquire inteligência. Estima-a, e ela te exaltará; se a abraçares, ela te honrará” (Pv 4:5-8, grifo meu; cf. Pv 7:4). Da mesma forma, a sabedoria personificada declara: 'Amo os que me amam, e os que me buscam diligentemente me encontrarão' (Pv 8:17). A sabedoria clama: 'Vós, simples, vinde cá! [...] Vinde, comei do meu pão e bebei do vinho que misturei. Deixai a insensatez, e vivei, e andai pelo caminho do entendimento' (Pv 9:4-6). Salomão observou: 'Quão melhor é adquirir a sabedoria do que o ouro! E adquirir o entendimento é preferível à prata. [...] A sabedoria é fonte de vida para quem a possui, mas a insensatez é o castigo dos tolos' (Pv 16:16,22; cf. Pv 23:33).

Da discussão anterior, conclui-se que as construções da sabedoria em si e, portanto, as construções de uma filosofia praticada adequadamente estão ontologicamente fundamentadas na mente divina, não sendo criadas por humanos. Na medida em que os humanos conhecem essas construções, eles descobriram o que está eternamente presente em Deus. Além disso, como a sabedoria é um pré-requisito para conhecer a Deus, a filosofia praticada adequadamente é um pré-requisito para fazer teologia. Por isso, Paulo descreveu seu próprio projeto teológico da seguinte forma: “É ele [Cristo] que nós proclamamos, advertindo a cada um e ensinando a cada um em toda a sabedoria, a fim de que apresentemos todo homem perfeito em Cristo” (Cl 1:28; cf. Cl 3:16). Assim, a teologia realizada com o auxílio da filosofia é necessária para a maturidade cristã. Como Paulo afirmou em outro lugar: “Entretanto, entre os maduros, nós falamos sabedoria, não a sabedoria desta era, nem a dos poderosos desta era, que se reduzem a nada. Mas falamos a sabedoria de Deus, oculta no mistério, a qual Deus preordenou antes dos séculos para a nossa glória” (1Co 2:6-7). De fato, é responsabilidade da igreja “[dar] a conhecer [...] a multiforme sabedoria de Deus [...] aos principados e potestades nos lugares celestiais” (Ef 3:10). Certamente, a Bíblia não reconhece uma teologia “livre de filosofia”, pois estudar Deus separado de uma condição necessária para conhecê-lo — o amor e a busca pela sabedoria — é uma contradição em termos.[2]

Ao mesmo tempo, a Bíblia nos adverte contra o amor e a busca por uma sabedoria falsa, que Paulo descreveu como a “sabedoria desta era” e dos “poderosos desta era” (1Co 2:6). Tiago resumiu essa sabedoria como invejosa e egoísta em sua natureza: “Mas, se tendes amargo ciúme e sentimento faccioso em vosso coração, não vos glorieis nem mintais contra a verdade. Essa não é a sabedoria que vem do alto; antes, é terrena, animal e diabólica. Porque onde há ciúme e sentimento faccioso, aí há confusão e toda obra má” (Tg 3:14-16). Paulo denunciou com razão o amor e a busca por essa sabedoria falsa como “filosofia vã e enganosa, que se fundamenta nas tradições humanas e nos princípios elementares espirituais deste mundo, e não em Cristo”, e exortou que não sejamos levados cativos por ela (Cl 2:8 NVI).[3] Paulo ressaltou a superioridade da sabedoria de Deus, exemplificada na crucificação de Jesus, sobre a sabedoria do mundo nestas palavras:

“Onde está o sábio? Onde está o escriba? Onde está o questionador desta era? Porventura, não tornou Deus louca a sabedoria do mundo? Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que creem pela loucura da pregação. Pois os judeus pedem sinais, e os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios, mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1Co 1:20-25; cf. 1Co 2:1, 4-5; 3:19).

A Escritura consistentemente associa a filosofia vã e enganosa ao orgulho. Ezequiel, assim, repreendeu o rei de Tiro: “Elevou-se o teu coração por causa da tua formosura, corrompeste a tua sabedoria por causa do teu resplendor” (Ez 28:17). Em resposta ao jargão de alguns coríntios — “todos temos conhecimento” — Paulo replicou: “O conhecimento [gnōsis] ensoberbece, mas o amor edifica. Se alguém pensa que sabe alguma coisa, com efeito, ainda não sabe como convém saber. Mas, se alguém ama a Deus, esse é conhecido por ele” (1Co 8:1-3 NVI). O termo para “conhecimento” nesta passagem é gnōsis, o mesmo usado nos documentos de Nag Hammadi para se referir a um conhecimento secreto e esotérico, possuído apenas pela suposta elite espiritual. Paulo prosseguiu exortando os cristãos a refutarem argumentos baseados nesse tipo de conhecimento que se opõem a Deus: “Destruímos argumentos e toda pretensão que se levanta contra o conhecimento de Deus, e levamos cativo todo pensamento para que ele obedeça a Cristo” (2Co 10:4-5).

Suspeito que haja inúmeras diferenças entre construtos filosóficos genuínos e construtos filosóficos humanos. No entanto, focarei naquelas que emergem dos dados das Escrituras e são relevantes para nossos propósitos. Os construtos filosóficos genuínos fazem pelo menos uma das quatro coisas abaixo:

Primeiro, alguns construtos genuínos cultivam o fruto do Espírito naqueles que os apreciam. O que Tiago disse sobre a sabedoria do alto aplica-se igualmente a alguns desses construtos: eles são “primeiramente puros, depois pacíficos, moderados, tratáveis, cheios de misericórdia e de bons frutos, imparciais e sem hipocrisia” (Tg 1:17).

Segundo, como o livro de Provérbios destaca, alguns construtos genuínos promovem o conhecimento e o temor de Deus. Nessa linha, Paulo indicou que a criação do universo e a lei moral universal apontam para a existência de Deus (Rm 1:20; 2:14-16). De fato, argumentos cosmológicos e axiológicos têm se mostrado inestimáveis para convencer outros sobre a realidade divina.

Terceiro, alguns construtos genuínos iluminam e magnificam o ser, a natureza, o caráter ou o plano de Deus. Por isso, Paulo orou para que Deus concedesse aos efésios “um espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele, iluminados os olhos do vosso coração, para saberdes qual é a esperança do seu chamamento, qual a riqueza da glória da sua herança nos santos e qual a suprema grandeza do seu poder para com os que cremos” (Ef 1:17-19).

Quarto, alguns conceitos filosóficos genuínos esclarecem o texto das Escrituras, como visto no uso do conceito de Logos no Evangelho de João para expandir o relato da criação em Gênesis 1 (Jo 1:1-14).

Os construtos filosóficos humanos agem contrariamente a uma dessas quatro coisas. Em vez do fruto do Espírito, alguns desses construtos cultivam orgulho, arrogância, “inveja”, “sentimento faccioso”, “confusão” e “toda obra má” naqueles que os apreciam (Tg 3:14,16). Segundo, como Paulo observou, alguns construtos filosóficos humanos opõem-se ao conhecimento e ao temor de Deus (2Co 10:4-5). Isaías descreveu o resultado final de tais construtos entre os babilônios: “Confiaste na tua maldade e disseste: ‘Ninguém me vê!’ A tua sabedoria e o teu conhecimento foram os que te perverteram, e disseste no teu coração: ‘Eu sou, e fora de mim não há outra’” (Is 47:10). Terceiro, alguns construtos filosóficos humanos obscurecem e buscam diminuir o ser, a natureza, o caráter ou o plano de Deus. Essa crítica aplica-se aos conceitos filosóficos inventados pelos oponentes de Jó para culpá-lo por seus sofrimentos. Quarto, alguns construtos filosóficos humanos embaralham o texto das Escrituras, como testemunhado no século passado pelo programa de Rudolf Bultmann, que usou o naturalismo científico somado ao existencialismo de Martin Heidegger para alegadamente “desmitologizar” o texto bíblico.[4]

Ao diferenciarmos esses dois tipos de construtos filosóficos, cabe-nos utilizar construtos filosóficos genuínos na interpretação bíblica. Jesus nos chamou a amar a Deus “de todo o entendimento” (Mc 12:30). Isso inclui usar verdades aprendidas em outras disciplinas em nossa interpretação das Escrituras. Pois toda verdade é verdade de Deus, e cada disciplina acadêmica é um raio de luz emanado da única fonte divina. Esse procedimento é incontroverso em relação à arqueologia. Quando arqueólogos descobriram que o termo kataluma se referia ao quarto de hóspedes de uma casa palestina, e não a uma estalagem, o Comitê de Tradução da NVI revisou Lucas 2:7 para: “Ela o envolveu em panos e o colocou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na sala de hóspedes” (NVI 2011); a NVI 1984 traduzia a segunda parte como “porque não havia lugar para eles na estalagem”. Da mesma forma, creio que Deus espera que usemos a filosofia genuína na interpretação bíblica, especialmente quando seus construtos abordam diretamente questões levantadas pelo texto.

Por exemplo, várias passagens das Escrituras indicam que Deus não pode praticar o mal (Sl 5:4; Pv 15:26; Hb 1:13; Tg 1:13; 1Jo 1:5; 3Jo 11). No entanto, outras passagens afirmam que Deus enviou espíritos maus a pessoas (Jz 9:23; 1Sm 16:14-15), trouxe mal sobre nações (1Rs 14:10; 2Rs 21:12; Jr 4:6; 11:17; 16:10; 21:10; 24:9; 31:28; 39:16; Mq 2:3), endureceu o coração de Faraó (Êx 4:21; 7:3; 14:4; Rm 9:17-18) e enviará um grande engano aos malfeitores nos últimos dias (2Ts 2:11-12). Parto do pressuposto de que as Escrituras não se contradizem. Logo, conclui-se que deve haver mais de um modo para Deus fazer ou causar algo. Nesse ponto, devemos usar a filosofia como serva da teologia e perguntar: A filosofia inclui diferentes sentidos de “fazer” ou “causar” que esclarecem os dados bíblicos? Veremos adiante que sim — e que tais distinções amplificam as Escrituras e permitem que os crentes sustentem consistentemente a onibenevolência de Deus.[5] Com esse método em mente, voltamo-nos agora às informações bíblicas sobre soberania divina, liberdade humana, predestinação, graça e vontade salvífica de Deus.

Dados da Escritura Acerca da Soberania Divina

O profeta Daniel exclamou a respeito de Deus: “O seu reino é um reino eterno, e o seu domínio (sholtān)[6] perdura de geração em geração” (Dn 4:3; cf. Dn 4:34). O termo sholtān refere-se à soberania divina no sentido de “domínio” ou “reino”.[7] Da mesma forma, Daniel ensinou que “o Altíssimo tem domínio (shalliyt) sobre o reino dos mortais; ele o dá a quem quer e até ao mais humilde dos homens o estabelece sobre ele” (Dn 4:17; cf. Dn 4:25, 32; 5:21). Após sofrer como um louco excluído, Nabucodonosor só seria restaurado ao trono “quando reconheceres que o Céu domina (shalliyt)” (Dn 4:26). O termo shalliyt denota a soberania de Deus em termos de “possuir” ou “exercer domínio”, “ter autoridade” e “governar”.[8]

A maioria das traduções do Antigo Testamento hebraico às vezes (se não sempre) verte o termo ’adōnāy (ou ’ādôn) como “Soberano” quando associado ao nome divino Yahweh. Por exemplo, o Salmo 8:1 é comumente traduzido: “Ó Senhor [Yahweh], nosso Soberano [’adōnāy], como é majestoso o teu nome em toda a terra” (cf. Sl 8:9; Is 1:24; 3:1; 10:16; 10:33; 19:4; 51:22). O termo ’adōnāy (ou ’ādôn) abrange significados como “senhor”, “mestre”, “superintendente de assuntos”, “rei”, “proprietário”, “governador” e “Senhor de toda a terra”.[9]

O Novo Testamento também afirma a soberania de Deus. 1 Timóteo 6:15 descreve Deus como “o bem-aventurado e único Soberano [dynastēs], o Rei dos reis e Senhor dos senhores”. Dynastēs conota “alguém em posição de autoridade para comandar outros”, “governante”.[10] Após sua prisão pelo Sinédrio, os primeiros cristãos oraram ao “Senhor Soberano [despotēs], que fizeste o céu, a terra, o mar e tudo o que neles há” (At 4:24). Em Apocalipse, as almas dos mártires clamam a Deus sob o altar: “Senhor Soberano [despotēs], santo e verdadeiro, até quando tardarás a julgar e vingar o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?” (Ap 6:10).

O termo despotēs carrega dois matizes possíveis:

“Aquele que detém poder absoluto sobre outro”, “mestre”.[11]

“Aquele que possui e/ou controla atividades de escravos, servos ou súditos, com implicação de jurisdição absoluta e, em alguns casos, arbitrária”, “proprietário”.[12]

A partir dos exemplos bíblicos acima dos termos para “soberano” e “soberania”, desenvolvemos uma concepção robusta da soberania divina, que pode ser resumida da seguinte forma: Deus possui e exerce domínio sobre um reino que abrange toda a realidade criada. Como Senhor e Rei, Ele governa toda a realidade criada, possuindo e exercendo autoridade sobre ela. Portanto, Deus supervisiona e dirige toda a criação. Ele detém poder e autoridade absolutos sobre a ordem criada, tendo o direito de comandar seres criados para cumprir Sua vontade. Inclusive, Deus pode controlar as atividades dos seres criados. Esse último ponto levanta duas questões:

Até que ponto Deus controla as atividades dos seres criados?

Se Ele as controla, de que modo o faz?

Quanto à primeira pergunta, as Escrituras afirmam que Deus exerce controle absoluto sobre as atividades dos seres criados — incluindo aquelas consideradas aleatórias, casuais ou sem necessidade causal. Salomão observou sobre decisões tomadas por sorteio: “A sorte se lança no regaço, mas do Senhor procede toda decisão” (Pv 16:33). O mesmo vale para decisões de governantes: “O coração do rei é como correnteza de água nas mãos do Senhor; ele o inclina para onde quer” (Pv 21:1; cf. Ed 1:1; 6:22). Jeremias atribuiu a Deus controle total sobre os mortais, incapazes de guiar a si mesmos: “Eu sei, Senhor, que não cabe ao homem determinar o seu caminho, nem ao que caminha o dirigir os seus passos” (Jr 10:23; cf. Pv 20:24). Jó descreveu o controle divino sobre a duração da vida humana: “Os seus dias estão determinados, e o número dos seus meses está contigo; tu lhe traçaste limites que ele não pode ultrapassar” (Jó 14:5). Paulo, por sua vez, destacou o controle de Deus sobre o onde e o quando da existência humana: “De um só fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites da sua habitação; para que buscassem a Deus, se, porventura [ara], tateando em busca dele, o pudessem encontrar” (At 17:26-27). Aqui, ara “é usado em contextos de tentativa, incerteza, contingência ou situações não resolvidas”.[13] Assim, o “tatear” e o “encontrar” a Deus são eventos sem necessidade causal.

A Bíblia também descreve certos atos como aleatórios, como no caso do ferimento de Acabe por uma flecha: “Mas alguém entesou o arco e, atirando ao acaso [letummō], feriu o rei de Israel entre as couraças” (1Rs 22:34, minha tradução; cf. 2Cr 18:33; Pv 26:10).[14] Jesus reconheceu a possibilidade de eventos casuais em sua parábola do Bom Samaritano: “Casualmente, descia um sacerdote por aquele mesmo caminho; e, vendo-o, passou de largo” (Lc 10:31).[15]

Interessantemente, o texto bíblico não vê contradição entre Deus ter controle absoluto sobre algo e esse algo ocorrer de forma aleatória, casual ou sem necessidade causal. O texto não afirma — como muitos teólogos reformados defendem — que, por Deus ter controle absoluto, nada acontece ao acaso. Nos exemplos citados, a Escritura declara ambos: Deus tem controle absoluto, e o evento ocorre aleatoriamente!

Isso nos leva à segunda pergunta: Deus às vezes controla as coisas de tal forma que Seu controle não elimina sua contingência. Veremos que esse conceito é especialmente reforçado ao analisarmos a próxima categoria de passagens bíblicas.

Dados da Escritura Acerca da Liberdade Humana

 

A Bíblia indica que os seres humanos, mesmo após os eventos de Gênesis 3, possuem o que os filósofos chamam de livre-arbítrio libertário, ou seja, a liberdade de, em pelo menos algumas circunstâncias, escolher entre alternativas diversas.[16]

“O que hoje lhes ordeno não é difícil nem está fora do seu alcance. Não está nos céus, para que vocês tenham que perguntar: ‘Quem subirá aos céus para consegui-lo e proclamá-lo a nós, a fim de que lhe obedeçamos?’ Nem está além do mar, para que vocês tenham que perguntar: ‘Quem atravessará o mar para consegui-lo e proclamá-lo a nós, a fim de que lhe obedeçamos?’ Pois a palavra está muito perto de vocês; está em sua boca e em seu coração, para que a cumpram. Vejam que hoje coloco diante de vocês vida e prosperidade, morte e destruição. Pois hoje lhes ordeno que amem o Senhor, o seu Deus, andem em seus caminhos e guardem os seus mandamentos, decretos e ordenanças; então vocês viverão e se multiplicarão, e o Senhor, o seu Deus, os abençoará na terra em que vocês estão entrando para dela tomar posse. Mas se o seu coração se desviar e vocês não forem obedientes, e se deixarem levar, prostrando-se diante de outros deuses para adorá-los, eu lhes declaro hoje que vocês certamente serão destruídos. Vocês não viverão muito tempo na terra da qual tomarão posse do outro lado do Jordão. Hoje invoco os céus e a terra como testemunhas contra vocês de que coloquei diante de vocês vida e morte, bênção e maldição. Escolham a vida, para que vocês e os seus filhos vivam” (Dt 30:11-19 NVI, ênfase adicionada).

Entre os eruditos da Bíblia Hebraica, a tradução das palavras em itálico não é disputada. Elas descartam a sugestão de Martinho Lutero e João Calvino de que Moisés estava dizendo aos israelitas o que deveriam fazer, mas não tinham capacidade para cumprir — a fim de revelar a profundidade de sua pecaminosidade.[17] As palavras em itálico explicitamente revelam que os israelitas tinham a capacidade de escolher amar a Deus plenamente e seguir a Torá: fazer isso “não era difícil demais” para eles, e o mandamento estava em sua boca e coração justamente para que “pudessem obedecê-lo”. Essa capacidade se estende à questão da salvação (escolher amar ou não a Deus com todo o ser) e não se limita a questões cotidianas. Sabemos, por Deuteronômio e Josué, que muitos desses israelitas não eram regenerados. No entanto, a passagem não responde à origem dessa capacidade — tema que discutiremos adiante, na seção sobre a graça.

Em sua discussão sobre a tentação, Paulo afirmou que os crentes cristãos possuem liberdade libertária: “Não sobreveio a vocês tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel e não permitirá que vocês sejam tentados além do que podem suportar. Pelo contrário, juntamente com a tentação, ele proverá livramento, para que a possam resistir” (1Co 10:13 NVI, ênfase adicionada). A tradução das palavras em itálico é incontroversa entre os estudiosos do Novo Testamento — o verbo traduzido como “podem” é dunasthai, que também pode ser vertido como “são capazes de”. Assim, o crente, em meio à tentação, tem a capacidade de seguir o caminho de escape oferecido por Deus ou ceder à tentação.[18]

Essas duas passagens mostram que, tanto para o não crente quanto para o crente, quando Deus ordena algo a alguém, aplica-se o princípio lógico e jurídico conhecido: o dever implica o poder. Moisés apresentou aos israelitas duas opções reais ao declarar: “Vejam que hoje estou colocando diante de vocês a bênção e a maldição: a bênção, se vocês obedecerem aos mandamentos do Senhor, o seu Deus, que hoje lhes ordeno; a maldição, se não obedecerem aos mandamentos do Senhor, o seu Deus, e se afastarem do caminho que hoje lhes ordeno, para seguir outros deuses que vocês não conheceram” (Dt 11:26-28).

Da mesma forma, a declaração divina de repúdio à condenação dos ímpios e o consequente apelo aos israelitas — para que se arrependessem de seus pecados e encontrassem salvação, mesmo em sua infidelidade — foram sinceros:

“Porventura tenho eu prazer na morte do ímpio? — diz o Senhor Deus. Não desejo, antes, que ele se converta dos seus caminhos e viva? [...] Convertei-vos e deixai todos os vossos pecados; e a iniquidade não vos servirá de tropeço. Lançai de vós todas as vossas transgressões que cometestes contra mim e criai em vós coração novo e espírito novo. Por que razão morrereis, ó casa de Israel? Pois não tenho prazer na morte de ninguém — diz o Senhor Deus. Convertei-vos, pois, e vivei” (Ez 18:23, 30-32; cf. Ez 33:11; Is 55:1-3, 6-7).

Observe o comando de Deus para que os israelitas “criem em si mesmos um coração novo e um espírito novo” — algo que Ele também promete conceder: “Dar-lhes-ei coração novo e porei espírito novo dentro de vocês; tirarei de vocês o coração de pedra e lhes darei coração de carne. Porei dentro de vocês o meu Espírito e farei que andem nos meus estatutos, guardem os meus juízos e os cumpram” (Ez 36:26-27 NVI). Isso nos leva a questionar: como ambas as declarações divinas podem ser verdadeiras? Embora não endosse a mesma conclusão que ele, ressoo com a pista oferecida por Wayne Grudem: “é possível afirmar que, em certo sentido, os eventos são totalmente (100%) causados por Deus e totalmente (100%) causados pela criatura. Contudo, as causas divina e criatural operam de modos diferentes”.[19]

A Bíblia, ao afirmar que Deus controla todas as coisas, simultaneamente ensina que Ele o faz de modo a preservar a liberdade humana.

Essa afirmação ecoa nas palavras de Jesus. Ele apresentou a todas as pessoas duas opções reais ao declarar: “Porque Deus amou o mundo [kosmos] de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo [kosmos], não para que julgasse o mundo [kosmos], mas para que o mundo [kosmos] fosse salvo por ele” (Jo 3:16-17). Como argumentei em outro lugar: “O Pai ama ὁ κόσμος [ho kosmos], isto é, o planeta físico e as pessoas nele contidas [...] e não apenas algumas delas. Todas as pessoas recebem a oportunidade de entregar sua lealdade a Jesus e assim alcançar a vida eterna. O Pai não tem desejo de condenar ὁ κόσμος [ho kosmos], mas deseja que cada pessoa seja salva por meio de Jesus”.[20]

Jesus reiterou a escolha entre a vida eterna e a morte eterna no Sermão do Monte:

“Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica será comparado a um homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, que não caiu, porque fora edificada sobre a rocha. E todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as pratica será comparado a um homem insensato que edificou a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela desabou, sendo grande a sua ruína” (Mt 7:24-27).

De modo semelhante, João Batista delineou a decisão que todos os seres humanos enfrentam: “Quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, porém, desobedece ao Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus” (Jo 3:36). A oferta universal do evangelho é confirmada pela Grande Comissão, na qual Jesus ordenou a seus apóstolos: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações [...] ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado” (Mt 28:19-20).

A natureza bíblica de “o dever implica o poder” indica que todas as pessoas têm a capacidade de obedecer às declarações de Jesus e receber a salvação.

Frequentemente, teólogos reformados contestam essa conclusão com base na ideia de que os humanos não regenerados estão espiritualmente mortos — noção que equiparam à ausência de liberdade libertária.[21]  É verdade que Paulo descreveu os não regenerados como “mortos em vossas transgressões e pecados, nos quais outrora andastes” (Ef 2:1-2; cf. Ef 2:5) e “por natureza, filhos da ira, como também os demais” (Ef 2:3). No entanto, não há fundamentos sólidos para igualar morte espiritual à falta de liberdade libertária. Em vez disso, morte espiritual significa separação espiritual de Deus ou ausência de união relacional com Ele:

“Nas Escrituras, o conceito de morte de um ente não indica sua extinção, mas sua separação da realidade imaterial sem a qual sua existência perde sentido. Assim, a morte humana denota a separação do corpo de sua alma vivificante; da mesma forma, a morte espiritual — a morte de um espírito ou alma finitos — significa a separação desse espírito finito do Espírito Infinito, o Deus Trino, com quem precisa estar unido para não sucumbir à ameaça existencial do absurdo. Portanto, quando Paulo afirma que a humanidade não regenerada está espiritualmente morta ou ‘mortos em transgressões e pecados’ (Ef 2:1), ele quer dizer que seus espíritos estão alienados do Espírito Divino e, assim, relegados a vidas sem propósito. É por isso que Paulo intercambia frases que denotam morte espiritual com expressões como ‘separados de Cristo’, ‘sem esperança e sem Deus no mundo’ (2:12), ‘vivendo na inutilidade dos seus pensamentos’ (3:17) e ‘obscurecidos de entendimento, alheios à vida de Deus’ (3:18)”.[22]

Pode-se alegar agora que um corpo humano fisicamente separado de uma alma não pode fazer nada; da mesma forma, uma alma espiritualmente separada de Deus também não. No entanto, isso seria ignorar uma diferença crucial entre corpo e alma: um corpo humano é naturalmente mortal, enquanto uma alma humana é naturalmente imortal.[23] A alma, sendo imaterial, é indestrutível após sua criação.[24] Ao contrário do corpo, a alma continua a existir mesmo sem união relacional com Deus.[25]

Esse fato é evidente ao considerarmos que as almas das pessoas não regeneradas funcionam: elas possuem memória, vontade, razão, consciência, pensamentos, crenças, desejos, sensações e identidade própria ao longo do tempo — todas faculdades da alma, não do corpo.[26] Portanto, as almas dos não regenerados não podem ser comparadas a cadáveres em um cemitério.

Como argumentou J. P. Moreland, a liberdade libertária também é uma função da alma. Se os seres humanos fossem reduzidos a seus cérebros e corpos, tudo o que fizessem seria determinado por sua composição genética e pelos estímulos sensoriais.[27] Mas isso é claramente falso: a alma de uma pessoa não regenerada pode resistir aos impulsos do cérebro e agir contrariamente a suas mensagens. Qualquer não regenerado que faz dieta, para de fumar ou supera um transtorno de ansiedade neuropsicológica, como TOC, é prova disso. Seria contrário à evidência, além de arbitrário, afirmar que as almas dos não regenerados possuem todas as faculdades das almas regeneradas, exceto a liberdade libertária.

Reflexões Filosóficas sobre a Soberania Divina e a Liberdade Humana

 

Diante do livre-arbítrio libertário humano, a filosofia esclarece como Deus pode controlar todas as coisas sem remover essa liberdade e a contingência em geral? Sim, de fato: o controle pode ser alcançado por meio de atualização forte ou atualização fraca. Atualização forte significa causar algo diretamente. Nesse caso, o atualizador é moralmente responsável pelo efeito. Atualização fraca significa causar algo indiretamente, criando circunstâncias em que uma terceira parte causa algo diretamente.[28] Se as ações da terceira parte não são intencionadas pelo atualizador (mesmo que previsíveis) e se o atualizador cria as circunstâncias por um bom motivo contrário às ações da terceira parte, então o atualizador não é moralmente responsável pelo efeito causado por ela.[29] Porém, se as ações da terceira parte são intencionadas pelo atualizador, este compartilha responsabilidade moral pelo efeito.

Ilustro com um exemplo: imagine um professor que anuncia à turma que ficará em seu escritório durante a prova, com o bom propósito de permitir que os alunos assumam responsabilidade pelo Código de Integridade Acadêmica e demonstrem honestidade sem fiscalização. No entanto, o professor conhece tão bem seus alunos que sabe que um deles fraudaria a prova se não houvesse fiscal. Como expliquei em outro lugar: “O aluno é, obviamente, moralmente responsável pela cola, o professor não tem responsabilidade moral por ela. O professor, no entanto, causou fracamente a cola ao colocar o aluno em circunstâncias nas quais, apesar das intenções contrárias do professor, o aluno escolheu livremente colar.”.[30]

Da mesma forma, Deus pode criar circunstâncias diversas com o bom propósito (entre outros) de permitir a liberdade humana, desejando que os humanos sempre a usem para o bem e evitem o pecado. Porém, a Escritura ensina que Deus possui presciência de condicionais hipotéticas (isto é, “se tal coisa ocorresse, então tal outra aconteceria”). Assim, Deus pré-conhece, para qualquer pessoa e conjunto de circunstâncias possíveis, como ela responderia se estivesse nessa situação (como evidenciado em 1Sm 23:9-13; Jr 38:17-18; Mt 11:20-24; Lc 10:13-15; Jo 15:22-24; 18:36; 1Co 2:8).[31] Portanto, Deus sabe de antemão os pecados que as pessoas cometeriam se colocadas em certas circunstâncias — pecados que são efeitos colaterais indesejados de sua criação. Nesse caso, os humanos têm responsabilidade moral exclusiva por seus pecados, e Deus é isentado de qualquer responsabilidade. Deus “não aflige nem entristece de bom grado a ninguém” (Lm 3:33)

Deus tem responsabilidade moral parcial pelas boas ações humanas e responsabilidade total pelas ações que atualiza diretamente. Como o Ser perfeitamente bom, Deus só atualiza diretamente o que é bom. Consequentemente, Ele é total ou parcialmente responsável por todo o bem no mundo e não é responsável por nenhum mal. Mesmo assim, Deus controla todas as coisas, seja por atualização forte ou fraca. Isso explica passagens como: “Do homem são as preparações do coração, mas a resposta da língua é do Senhor” (Pv 16:1), ou “O coração do homem traça o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos” (Pv 16:9). Ao colocar os humanos em circunstâncias — sabendo de antemão as palavras e ações que escolheriam livremente —, Deus controla os eventos por atualização fraca, e os humanos os controlam por atualização forte. Surge então a pergunta: como Deus responde ao mal quando ele ocorre como efeito colateral indesejado?

Em Sua onisciência e onibenevolência, Deus responde a cada mal trazendo dele um bem para aqueles que O amam, avançando assim Sua vontade. Como testemunha a Escritura: “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito” (Rm 8:28, minha tradução). Igualmente, “nele [Cristo] fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1:11 NVI). Note-se que Deus não é um consequencialista, agindo sob o princípio de que os fins justificam os meios. Deus não intenta nenhum mal — jamais — muito menos para que dele resulte um bem.[32] Tanto Romanos 8:28 quanto Efésios 1:11:

são descrições a posteriori, não a priori, da operação de Deus sobre ‘todas as coisas’; ou seja, partem da existência prévia de ‘todas as coisas’ e simplesmente descrevem o que Deus então faz com elas: trabalhá-las para o bem dos crentes e para o propósito de Sua vontade. Esses textos não afirmam que Deus realiza, ordena ou planeja todas as coisas para cumprir o bem dos crentes ou Sua vontade. Em vez disso, retratam Deus confrontado com eventos já ocorridos [...] muitos dos quais [...] são contrários e alheios à Sua vontade, assegurando-nos de que Ele usa Seu poder e sabedoria para transformar até esses eventos em benefício nosso e, finalmente, de Sua glória.[33]

Além disso, Deus não precisa do mal para produzir bem algum. Se algum mal não ocorresse, Ele traria o mesmo bem ou um bem maior aos que O amam, por meios inteiramente justos.[34] No entanto, diante de um mal ocorrido como efeito colateral indesejado de circunstâncias divinamente criadas, Deus pode usá-lo para o bem ou simplesmente não agir. Obviamente, é moralmente melhor fazer o primeiro. Deus, portanto, é o cumpridor máximo do princípio bíblico: “Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem” (Rm 12:21).

Dois exemplos clássicos ilustram esse ponto, que é a marca da providência divina: O caso de José: Seus irmãos cometeram males terríveis — capturá-lo (Gn 37:23-24), vendê-lo como escravo (Gn 37:25-28) e enganar Jacó, fazendo-o crer que José fora morto por um animal (Gn 37:31-33). A esposa de Potifar acusou José falsamente de estupro (Gn 39:14-18), levando-o à prisão (Gn 39:20). Após José interpretar o sonho do copeiro (Gn 40:9-15, 20-21), este esqueceu-se de mencioná-lo a Faraó (Gn 40:23). Deus não quis nenhum desses atos; a responsabilidade é inteiramente dos agentes humanos. Esses eventos foram atualizados fracamente, não fortemente, por Deus. Contudo, em Sua infinita sabedoria, Ele usou esses males para salvar vidas no Antigo Oriente. Como José declarou: “Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem, para fazer [...] conservar a vida de um povo numeroso” (Gn 50:20).[35]

A crucificação de Jesus: O Sinédrio conspirou para matá-Lo (Jo 11:47-53); Judas O traiu por trinta moedas (Mt 26:14-16; 26:47-49; Mc 14:10-11, 43-46; Lc 22:3-6, 47-48; Jo 18:2-3); o Sinédrio O condenou falsamente por blasfêmia e O entregou a Pilatos como rebelde (Mt 26:65-66; 27:1-2; Mc 14:63-65; 15:1; Lc 22:71–23:2; Jo 18:28-32); e Pilatos O sentenciou à morte para preservar seu poder (Jo 19:12-16), embora soubesse que Jesus não era violento (Jo 18:33-38). Cada ato foi um pecado atroz que Deus não quis. Jesus orou: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23:34). Mesmo assim, Deus usou a crucificação para reconciliar o mundo consigo (2Co 5:18-21). Ao atualizar fracamente esses eventos e fortemente a ressurreição, Pedro declarou: “Este homem [Jesus] [...] foi entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus; e vocês O mataram, crucificando-O por mãos de injustos. Mas Deus O ressuscitou, rompendo os laços da morte” (At 2:23-24; cf. At 4:27-28). Tudo isso ocorreu conforme a presciência de Deus (que conhecia as escolhas nas circunstâncias) e Seu plano (que inclui tudo o que Ele atualiza forte ou fracamente).[36]

Conclusão da Parte Um

Ao iluminar as Escrituras com a luz da genuína filosofia, explica-se como Deus pode controlar decisões humanas livres e outros eventos contingentes: Ele os atualiza fracamente, não fortemente. Em outras palavras, Deus cria as circunstâncias em que decisões livres e eventos contingentes ocorrem, conhecendo previamente — antes de criar tais circunstâncias — quais seriam essas decisões e eventos. Deus cria cada conjunto de circunstâncias com um bom propósito, nunca com a intenção de que o mal ocorra. Contudo, se o mal — não intencionado por Deus — acontece, Ele demonstra Sua habilidade brilhante e sabedoria ao usá-lo para avançar Sua boa vontade (sem precisar do mal para isso) e para o bem dos crentes.

Quando a Escritura afirma que Deus causa coisas boas, Ele o faz por atualização forte ou fraca. Se Deus realiza o bem diretamente — como criar o universo, abrir o Mar Vermelho, encarnar-se como Jesus de Nazaré, perdoar pecados, etc. —, então Ele atualiza fortemente o bem. Se humanos realizam o bem diretamente em circunstâncias criadas por Deus, Ele atualiza fracamente o bem.

Quando a Escritura afirma que Deus causa coisas más — como enviar espíritos maus a pessoas, trazer mal sobre nações, endurecer o coração de Faraó e enviar um grande engano aos malfeitores nos últimos dias —, Deus o faz por atualização fraca. Deus enviou espíritos maus no sentido de criar circunstâncias para fins bons, nas quais esses espíritos afligiram pessoas como consequências não intencionais, mas pré-conhecidas. O mesmo vale para Deus trazer mal sobre as nações. Deus endureceu o coração de Faraó ao criar circunstâncias para fins bons, nas quais Faraó endureceu livremente seu próprio coração — um efeito colateral indesejado que Deus já conhecia. Deus enviará um grande engano aos malfeitores dos últimos dias ao criar circunstâncias para fins bons, nas quais Ele pré-sabe que, tragicamente, eles crerão nesse engano.

E quando esses males ocorrem, Deus não os “deixa parados”, mas os vence ao extrair deles o bem de forma engenhosa.[37]

Notas


[1] Summa Theologiae, 1.1.5.

[2] Como o teólogo Hans Boersma enfatiza corretamente: “Quando tentamos ler as Escrituras sem quaisquer pressupostos metafísicos, nossa própria tentativa de exaltar a Bíblia desmorona. A fé não foi feita para funcionar sem a razão, e não devemos tentar fazer teologia sem filosofia. O isolamento das Escrituras em relação à metafísica é praticamente impossível: invariavelmente, isso significa a adoção inconsciente de uma ou outra metafísica. [...] Quando tentamos isolar as Escrituras de pressupostos metafísicos, tornamo-las vítimas involuntárias de qualquer filosofia que esteja em voga. Parece muito mais prudente reconhecer o benefício potencial da metafísica e perguntar qual relato metafísico coaduna com o que encontramos nas Escrituras” (Five Things, p. 136).

[3] Em Colossenses 2:8, a tradução da NVI — “Cuidado que ninguém os venha a enredar com sua filosofia vã e enganosa [tēs philosophias kai kenēs apatēs]” — é superior à da New Revised Standard Version (NRSV): “Cuidado que ninguém vos faça presa sua por meio de filosofias e vãs sutilezas”. Como o artigo grego tēs governa os dois substantivos philosophias (filosofia) e kenēs apatēs (enganosa/vã), conectados por kai (e), ambos se referem ao mesmo fenômeno (“filosofia vã e enganosa”) e não a dois fenômenos distintos (filosofia e engano vão).

[4] Bultmann, Jesus Cristo e Mitologia.

[5] Outros exemplos de uso de construtos filosóficos genuínos para iluminar a Escritura incluem a aplicação dos conceitos de Ousia e Hypostasis e Logos para enquadrar a doutrina das duas naturezas de Cristo. A maioria dos leitores tomarão a Trinidad e a Cristologia não como invenções, mas como descobertas humanas que seguem logicamente da Bíblia.

[6] Ao transliterar termos hebraicos, aramaicos e gregos, utilizo consistentemente a forma lexical das palavras em vez de suas formas flexionadas por conveniência.

[7] Brown et al., Hebrew and English Lexicon, p. 1115.

[8] Brown et al., Hebrew and English Lexicon, p. 1115.

[9] Brown et al., Hebrew and English Lexicon, pp. 10-11.

[10] Louw e Nida, Greek-English Lexicon, 1:479; cf. Bauer et al., Greek-English Lexicon, p. 208`.

[11] Louw e Nida, Greek-English Lexicon, 1:479.

[12] Louw e Nida, Greek-English Lexicon, 1:559; cf. Bauer et al., Greek-English Lexicon, p. 176.

[13] Bauer et al., Greek-English Lexicon, 104.

[14] Em apoio à precisão desta tradução, ver Wevers, “First Book of the Kings,” 195.

[15] Em apoio à precisão desta tradução, ver Bauer et al., Greek-English Lexicon, 775.

[16]  Essa compreensão da liberdade libertária refuta os chamados contraexemplos de Frankfurt ao princípio das possibilidades alternativas. Tais contraexemplos descrevem situações como a seguinte: nas eleições presidenciais dos EUA de 2020, um cientista louco e apoiador fervoroso de Trump implanta em meu cérebro, sem meu conhecimento, um dispositivo elétrico. Ao entrar na cabine de votação, o dispositivo força minhas mãos a votar em Trump se eu tentar votar em Biden (ou em outro candidato, ou em ninguém), mas não exerce pressão causal se eu escolher Trump. De qualquer forma, não posso fazer outra coisa senão votar em Trump. No entanto, a liberdade libertária (e o princípio das possibilidades alternativas) permanece válido, pois mantenho o poder de escolher votar em Biden, Trump, outro candidato ou em ninguém. Isso é mais claro na exortação de Moisés aos israelitas para amar a Deus com todo o seu ser e seguir a Torá.

[17] Lutero, A Liberdade do Cristão, p. 57; Calvino, Institutas 2.5.7; 2.8.3.

[18] Stratton, Freedom, Knowledge, and Molinism, 180–82.

[19] Grudem, Systematic Theology, 319.

[20] MacGregor, John’s Gospel, 150.

[21] Essa equivalência foi proposta inicialmente por Calvino, Institutas, 2.2.1-10.

[22] MacGregor, Systematic Theology, pp. 25-26.

[23] Como John Walton demonstrou, a humanidade foi criada mortal. Isso é evidenciado pelo fato de Adão, representante arquetípico da raça humana, ter sido formado do pó (Gn 2:7; Sl 103:14), o que equivale à mortalidade (Gn 3:19). Adicionalmente, Adão e Eva precisavam comer da árvore da vida para permanecerem vivos (Gn 2:9; 3:22-24), algo desnecessário para seres imortais; a árvore da vida é o antídoto para nossa condição natural de mortalidade (Walton, Adam and Eve, pp. 72-77).

[24] Os aniquilacionistas discordam aqui, defendendo que a alma é imortal apenas condicionalmente, mediante a fé em Cristo.

[25] Contudo, nada pode existir sem a presença sustentadora ou repletiva de Deus, que permeia todo o universo, inclusive o inferno. Assim, até entidades naturalmente imortais, como a alma, não poderiam existir à parte dessa presença divina

[26] Moreland descreve algumas dessas em Soul, pp. 132-139, 149-150.

[27] Moreland, Soul, pp. 128-132.

[28] MacGregor, Molina [ed. Brasileira], pp. 143.

[29] Isso segue a Doutrina do Duplo Efeito (DDE), explicada por Shafer-Landau em Ethics, p. 219.

[30] MacGregor, Molina [ed. Brasileira], pp. 143.

[31] Analiso essas passagens em MacGregor, Molina [ed. Brasileira], pp. 107-112.

[32] MacGregor, “Gratuitous Evil”, pp. 169-171.

[33] MacGregor, “Gratuitous Evil”, p. 170.

[34] MacGregor, “Gratuitous Evil”, p. 171

[35] Craig, “Middle Knowledge, Response”, p. 58; MacGregor, Molina [ed. Brasileira], p. 148.

[36] Craig, “The Middle Knowledge Vision”, pp. 134-135; MacGregor, Molina [ed. Brasileira], p. 148.

[37] MacGregor, Molina [ed. Brasileira], pp. 149-151.

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