Nota introdutória (Alta Linguagem),
João Camilo de Oliveira Torres foi prolífico filósofo e escritor, sua problemática se estendeu também à história, autor de uma "Teoria geral da história", onde demonstra conhecimento e dote teórico para trazer à tona autores como Oswald Spengler, Toynbee, Maritain, entre outros, Oliveira Torres também utilizou-se de seu sistema teórico para elaborar uma própria "teoria" do Brasil, com sua série de volumes denominados "História das ideias políticas no Brasil" (Reeditado pela Câmara dos Deputados na gestão de Rodrigo Maia), da qual consta livros interessantíssimos como "A Democracia Coroada: teoria política do Império do Brasil" e "Interpretação da realidade brasileira".
Neste texto, João Camilo trata de um tópico que aborda em suas teorias da história, fala do "valor dominante", isto é, de um valor que domina uma época, que determina o estilo de uma época, norteia não só a filosofia como também a literatura, as artes e, sobretudo, a arquitetura. Interessantíssima é a forma pela qual Oliveira Torres trata o conceito de heresia como oposição parcial ao valor dominante de uma época e o papel da Igreja Católica em se aproveitar das positividades das heresias que surgem, na medida em que todas expressam alguma insatisfação com o valor dominante e, portanto, abrem a história a reformas. A Igreja, neste sentido, esteve sempre aberta à reformas--essa implicação do dito por Torres é importantíssimo, dado o contexto e ano em que se encontrava (1960), pois estava em pleno curso no catolicismo o Concílio Ecumênico do Vaticano II.
O valor dominante
O Estado de S. Paulo, 11 de Junho. 1960.
Toda situação histórica é dominada por um valor principal, que constitui o motivo principal da ação humana, a causa final dos atos da maioria dos homens. Naturalmente há valores dominantes para situações e para conjuntos de situações, como para culturas inteiras. Este valor dominante reflete-se em todas as verdadeira identidade de manifestações, isto que normalmente chamamos de “estilo” de uma época, e a que Spengler dedicou análises por vezes justíssimas. Certamente não constitui o estilo a forma do valor dominante, mas, sim, a maneira pela qual ele se reflete nas diferentes manifestações humanas. Assim, para citarmos um caso muito conhecido, o mais conhecido de todos, o da Idade Média, sentimos que o valor dominante, a aspiração à transcendência, reflete-se por toda a parte, principalmente sob a forma de um sentido ascensional da vida e da organização social. A arte gótica, a poesia de Dante, a Escolástica, a hierarquia feudal, tudo, enfim, revelava a mesma tônica: o homem à procura de Deus. Era a cultura medieval uma réplica do livro de São Boaventura: Itinerarium mentis ad Deum. O mesmo se verifica em todas as épocas, tanto assim que podemos definir a história de qualquer época, com uma palavra, que designa o valor dominante.
O que primeiramente assinala o valor dominante é a sua onipresença: não há aspecto da cultura que ele não atinja, dentro de certas limitações que veremos em seguida, e, naturalmente, com as variações de ordem particular, a realizarem o fenômeno, a “heresia”.
Em segundo lugar, o valor dominante acha-se oculto aos contemporâneos--daí ser impossível a história do tempo presente. Podemos graças a um penoso esforço de objetivação de nossa própria situação, tentar a fixação do valor dominante de nosso tempo. Mas, podemos errar fragorosamente.
Inconsciente, embora, o valor dominante apresenta-se aos contemporâneos através de suas manifestações concretas. E, principalmente, pode ser considerado, e visto, através do que consideramos “moderno”. O conceito de “modernidade”, tão bem estudado por Alceu Amoroso Lima, refere-se ao valor dominante. Consideramos “moderno”, o que pertence ao valor dominante, o que reflete a sua cor e a sua tônica. Assim, o século XIX--o valor dominante foi o da Liberdade. Certamente todos consideravam a Liberdade um valor eminente--mas, nem todos cuidavam que, em todos os casos, estavam afirmando a liberdade do indivíduo, mesmo quando, talvez, a estivessem negando. Um exemplo concreto: a Religião da Humanidade, de Augusto Comte; das criações do século, a menos individualista por admitir um ser coletivo, um “Grão-Ser”, secularização da doutrina católica do Corpo Místico de Cristo. Mas a própria religião de Augusto Comte pressupunha, no fundo, uma visão individualista do mundo, pois, negando uma revelação--fundava-se na “Fé demonstrada”--fazia, de qualquer modo, o indivíduo a realidade mais alta. Certamente, era, quantitativamente, mais do que os indivíduos componentes. Mas, sê-lo-ia mais, qualitativamente? Todos nós possuímos a natureza humana, participamos da essência humana. A Humanidade reduzida a um só indivíduo, este a conteria toda--é esta a razão filosófica da doutrina do Pecado Original: foi um pecado de toda a Humanidade, embora fosse esta apenas um homem. E isto atingiu a natureza humana. E, seja lá como for, se sou uma parte da divindade, participo, indiscutivelmente, da divindade. Membro de Deus, sou Deus. E novamente, o homem escutava a voz da Serpente: “Eritis sicut dii [sereis como deuses]”. E, pois, não poderia haver maior afirmação do individualismo, nenhuma fórmula mais afirmativamente liberal do que reconhecer em cada homem uma parcela da divindade…
No estudo do princípio do valor dominante (que pode ser de uma situação, de uma época, de um conjunto histórico e de toda uma civilização) convém recordar que pode haver o valor dominante geral da situação--aquele princípio que envolve todas as manifestações da cultura (o valor da liberdade, no mundo do liberalismo, conforme o exemplo citado), como, também valores dominantes especiais, para determinados conjuntos particulares. Pode ocorrer que, numa dada situação, haja contradição real, ou aparente, entre o valor dominante genérico e o especial. Isto pode ver-se no exemplo do mundo do liberalismo--um dos paradoxos do liberalismo provém do fato de que a metafísica liberal negava a liberdade do homem, a quem, quase todas as doutrinas filosóficas geradas no século XVIII recusavam o livre arbítrio. Se o homem, ontologicamente, não era livre, como poderia sê-lo politicamente? Na realidade, o paradoxo nascia de um conceito particular de liberdade, que era o do liberalismo--antes uma atitude de autonomia do indivíduo em face de Deus, de que, realmente, de uma autonomia específica do ser humano como tal. O homem não estava sujeito a Deus, mas, sim, às forças da natureza.
Mas, nem todos os homens seguem os valores dominantes. Uma das maneiras clássicas de negação do valor dominante é a heresia, no sentido genérico da expressão. O herege é o homem que segue verdades em oposição ao valor dominante. Do ponto de vista da verdade como tal, pode ocorrer, e tem ocorrido, que o herege tenha razão sobre seus contemporâneos, como acontece, também, de ser um herege, materialmente falando, um defensor do erro. Comumente, o valor dominante e o valor herético representam aspectos parciais da verdade. Os homens costumam, habitualmente, defender extremisticamente uma parcela da verdade e deixar a outra abandonada.
Há muitas maneiras pelas quais um herege recusa o valor dominante. Podemos destacar três: a heresia fundada no extremismo, ou heresia no sentido literal da palavra, trata-se do caso clássico do dissidente que adota uma visão peculiar do valor dominante, recusando ver “todos os lados da questão”, como temos exemplos clássicos nas doutrinas monofisitas--ou o Cristo era Deus unicamente, ou Homem, apenas; outra modalidade é a do “saudosista”, aquele que defende o valor da situação anterior, fato muito comum; a terceira forma de heresia, é a do “futurista”, que adota valores que acredita serem os valores da situação futura. A heresia, nestes três sentidos que indicamos aqui, realiza um trabalho útil (afinal, as heresias são convenientes) pois permite uma decantação do valor dominante, seja num sentido ou noutro. A experiência da Igreja Católica nesse particular é altamente elucidativa--cada heresia considerada oportunidade para um aperfeiçoamento e melhoria da Teologia. Igualmente o saudosista, analisando a situação antiga, pode, por sua vez, focalizar aspectos novos e construir soluções novas--a História sempre alimentou reformas. E, obviamente, o futurista, por sua própria natureza é homem que lança sementes de transformações.
A oposição ao valor dominante (quase sempre parcial e limitado) exige, habitualmente, e contribuição do pensador independente, que, desligado de outros compromissos além dos que o subordinam à verdade, criam o clima para a meditação solitária, geralmente angustiada, necessária, porém, à renovação da sociedade. O mundo moderno, aliás, está necessitado de focalizar a posição do pensador independente, que será menos o homem sem compromisso do que o homem sem funções diretamente ligados à profissão de pensar. Certamente ele não está desvinculado da cidade e nem isento de subordinação e dos deveres de lealdade. Mas, na realidade, ele pensa em seu canto, mesmo que, assim fazendo, defende Deus e o Rei.