"Relendo um livro de guerra", de Paulo Rónai

"Relendo um livro de guerra", de Paulo Rónai

Texto introdutório, Gabriel Gotthelf
O artigo de hoje nos recorda de um intelectual húngaro, radicado no Brasil: o caso é Paulo Rónai. Ainda hoje seus artigos de jornal não estão recolhidos de forma completa, embora em sua época fosse--“apenas”--querido e lido por muitos; incluo na lista Aurélio Buarque de Holanda (Rónai escreveu um dicionário francês-português) e Otto Maria Carpeaux (O ensino do Latim). O pequeno texto em questão é uma reflexão e comparação de épocas, baseada num só texto. Voltemos a ele e percebemos que, por exemplo, a tática de conquistas do “espaço invisível” não é nenhuma descoberta inovadora do século XX e que não merece este louvor que recebe sujeitos, aliás, deprimentes.

RELENDO UM LIVRO DE GUERRA

Revista do Brasil, Março de 1943.

Retomei nestes últimos dias os Comentários de Júlio César. Entre os autores latinos, nunca foi meu preferido: repugnava-me o ar de infalibilidade que entrevê na sua narração em terceira pessoa, disfarce de falsa modéstia. Aborrecer-me as suas batalhas, os seus estratagemas, os seus planos de campanha, de tão lidos e explicados em minhas classes, com as evoluções sempre parecidas do agmen e as disposições nunca diferentes da castra. O livro dos Comentários que desta vez abri foi um dos que não lera há muito, o sétimo, aquele que refere a revolução de Vercingetorix. Logo no começo, achei-lhe bem mais interessante do que imaginava, e este interesse crescia à medida que ia lendo.

Em 53 A. C., César voltou da Gália conquistada para a Itália a fim de assistir aos distúrbios políticos que ali se sucediam e, eventualmente, aproveitar-se deles para cuidar de seus interesses. Deixara suas legiões acampadas na Gália. Entre os vencidos surge então um chefe, Vercingetorix, moço nobre. Consegue unir as tribos gaulesas contra o opressor. No começo, falta-lhe ainda a força e a experiência para impedir a volta de César a suas bases. Mas após os primeiros reveses eleva-se à altura da situação e, contrariamente à índole impulsiva de seus patrícios, recomenda-lhes uma guerra de desgaste. Ao Blitzkrieg das legiões opõe uma espécie de bloqueio continental e transforma a campanha em uma guerra de abastecimentos. Em vez de oferecer-lhes batalha aberta, com patrulhamento contínuo impede os romanos de se proverem de alimentos e forragem. Atribui a esta última (a gasolina de então) uma importância enorme, e causa ao adversário dificuldades sérias.

Vercingetorix entende porém tirar as últimas consequências de sua teoria. Convencendo-se de que as cidades gaulesas eram incapazes de resistir à investida dos romanos e, tomadas, servir-lhes-iam de acampamento e abrigo, propõe aos seus sequazes uma medida radical e inaudita: arrasar suas próprias cidades. Este princípio, após renhidas discussões, acaba por vencer, e as cidades gaulesas, destruídas por seus próprios habitantes, desaparecem uma a uma, pondo definitivamente em perigo o exército de César por esta talvez primeira aplicação da tática da terra arrasada. 

(Por um resto de fraqueza, Vercingetorix se deixa infelizmente enternecer pelas preces dos habitantes de Bourges, a mais bela e forte das cidades - sentimentalismo fatal, pois os romanos ocupam a Bourges não arrasada e nela encontram lugar para invernar.)

Depois de uma série de reveses mas também de sucessos dos gauleses, a campanha termina todavia por sua derrota com a queda de Alésia, a principal fortificação de Vercingetorix. O que há de mais curioso na descrição do sítio é o caráter de guerra mecanizada de que ele se reveste. Como já antes no sítio de Bourges, há, aqui, um verdadeiro luxo de engenhos de toda a espécie: catapultas, fundas, aríetes, “onagros”, e “escorpiões”; uma multidão de obras: torres, aterros e “vinhas”; como também uma infinidade de fossas e minhas subterrâneas, toda uma maquinaria atrás da qual os homens desaparecem completamente. Em todos estes capítulos que parecem extraídos de algum tratado de engenharia, tem-se a impressão de que desde então o papel dominante na luta pertencia à máquina.

Vários aspectos desta guerra antiga oferecem assim inesperadas semelhanças com os da atual. Nem todos táticos ou técnicos; às vezes são aspectos humanos que evocam cabeçalhos de jornais. Sem falar do costume tão romano quanto gaulês de prender reféns e de assassiná-los, lembre-se apenas um episódio do sítio de Alésia.

Mantendo César o cerco desta cidade durante mais de um mês, os sitiados, como aguardam inutilmente o exército de libertação, usam uma medida extrema: expulsam os não combatentes, isto é, os próprios moradores da Alésia, com suas mulheres e filhos, a fim de diminuir o número de bocas para nutrir. Os expulsos vão implorar a misericórdia dos romanos, que naturalmente os repelem; e assim morrem aos poucos, entre os dois campos, de fome, sede e frio. A população inteira de uma cidade morrendo no man's land! Edição especial!

O nosso pouco ou nenhum progresso em matéria de humanidade já não é nenhuma novidade; mas é interessante ver pela leitura dos Comentários que a própria técnica da destruição tem progredido menos do que se pensava. E se para o arrasamento-relâmpago de uma  Varsóvia ou uma Rotterdam foi preciso esperar até o século XX, não se esqueça que os legionários de Roma, em sua marcha civilizadora, conseguiram exterminar em muito menos de um dia, e sem uso de aviões de mergulho, os quarenta mil habitantes de Bourges. Para aqueles tempos, era sempre alguma coisa.

Se a leitura da história de Vercingetorix pode modificar nossa impressão a respeito do interesse dos Comentários, o fim desta história (que não foi escrita por César) acaba matando toda a simpatia que porventura se conserve para com o historiador. Tudo perdido, para salvar os seus, Vercingetorix entrega-se a César sem condições. Se ao menos o matassem! Mas apodreceria numa masmorra de Roma até, ao cabo de seis anos, integrar o triunfo de seu vencedor e morrer estrangulado. Como não sabiam perdoar estes antigos ditadores! Mas também havia Brutus, esperando o seu momento.

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