Seminário Privado de Mises: memórias de Gottfried Haberler

Seminário Privado de Mises: memórias de Gottfried Haberler

Texto introdutório (Hélio Sena):  Os relatos de Gottfried Haberler, doutor em economia da Universidade de Harvard, narram um pouco das suas experiências enquanto esteve no seminário privado do economista Ludwig Von Mises, um dos grupos intelectuais mais influentes de Viena do século XX. A Áustria, que vivia momentos turbulentos de decaimento político e econômico após a vergonhosa derrota na Primeira Guerra Mundial e a queda do Império Austro-Húngaro, foi também palco, em sua capital, de um renascimento extraordinário da intelectualidade que fervia no coração de Viena durante as décadas de 20 e 30. Surgiam por lá diversas e importantes escolas, com os seus mais numerosos pensadores renomados, que deram os moldes dos ideais metodológicos das ciências sociais e políticas.—Uma vibrante genialidade que teve de ser abruptamente interrompida devido à expansão do nacional-socialismo alemão na Áustria em 1938.

Seminário Privado de Mises: memórias de Gottfried Haberler

(Reimpresso de The Mont Pelerin Quarterly, Volume III, outubro de 1961, nº 3, página 20)

O período entre as duas guerras, de 1918 até a ocupação por Hitler, foi para a Áustria, e especialmente para Viena, uma época triste do ponto de vista político e econômico. Uma calamidade seguiu a outra: colapso da estrutura tradicional da nova Áustria—da antiga monarquia austro-húngara—, exaustões de guerra e destruição, alta inflação, breve renascimento seguido por profunda depressão, guerra civil em duas frentes e, então, a noite escura do governo nazista e, novamente, guerra, destruição e ocupação.

Mas a vida intelectual, especialmente no campo da ciência, era excitante e estimulante em Viena até a ascensão do nazismo em meados dos anos trinta. Existiam vários centros científicos internacionalmente famosos, com inúmeras conexões entre eles. As escolas mais conhecidas eram: a da psicanálise; a teoria pura do direito, fundada por Hans Kelsen e seus numerosos discípulos; a escola do positivismo lógico, centrada em Moritz Schlick e Rudolf Carnap; e, por último, mas não menos importante, um grupo de economistas, sociólogos e filósofos que tinha seu centro no famoso "Privatseminar" do professor Ludwig von Mises, que celebra seu 80º aniversário, jovem e fresco de mente e corpo, como seu amigo e colega dos dias da universidade e, mais tarde, no Institut Universitaire em Genebra: Hans Kelsen. A maioria dos membros originais desses vários grupos deixou Viena antes de 1933, e muitos deles e seus numerosos alunos são ativos em universidades e instituições de pesquisa ao redor do mundo.

Participantes regulares do seminário eram vários membros da Mont Pelerin Society—notavelmente Hayek, Machlup, o falecido Alfred Schutz e, nos primeiros dias, John V. Van Sickle. Acadêmicos visitantes consideravam uma grande honra serem convidados para o seminário—entre eles, Howard S. Ellis (Universidade da Califórnia), Ragnar Nurkse (falecido professor de economia na Universidade de Columbia, Nova York), cuja morte prematura ocorreu há três anos, Karl Bode (mais tarde na Universidade de Stanford e agora em Washington), Alfred Stonier (agora no University College em Londres) e muitos outros. Estavam lá Oskar Morgenstern (hoje na Universidade de Princeton), os falecidos Karl Schlesinger e Richard Strigl, dois dos mais brilhantes economistas de seu tempo, e, acima de tudo, o autor das canções Songs of the Mises Kreis, o inesquecível Felix Kaufmann, filósofo das Ciências Sociais no sentido mais amplo, incluindo o direito e a economia—Ele também escreveu um livro muito debatido sobre os fundamentos lógicos da matemática—que, após sua emigração em 1938, se juntou ao corpo docente da New School for Social Research em Nova York, onde lecionou com grande sucesso até sua morte prematura, doze anos atrás.

Outros membros proeminentes foram a professora Martha St. Brown (Brooklyn College, Nova York), o professor Walter Froehlich (Marquette University, Milwaukee, Wisconsin), a Dra. Helene Lieser (por muitos anos secretária da Associação Econômica Internacional, Paris), a Dra. Ilse Mintz (Columbia University e National Bureau of Economic Research, Nova York), o Dr. Eric Schiff (Washington) e o Dr. Emanuel Winternitz (curador da Coleção de Instrumentos Musicais, Metropolitan Museum of Art, Nova York).

O Seminário se reunia toda sexta-feira às 19h no escritório de Mises, na Câmara de Comércio. Mises sentava-se em sua mesa, com os membros do grupo ao seu redor. A reunião era introduzida por um artigo do próprio Mises ou de outro membro sobre algum problema de teoria econômica, metodologia das ciências sociais ou política econômica. Sociologia, especialmente a “Verstehende Soziologie” de Max Weber, e problemas relacionados eram os tópicos favoritos. A discussão, sempre animada, durava até as 22h, quando o grupo caminhava até o restaurante italiano “Ancora Verde”—“Der grüne Anker” na canção de Kaufmann—onde o jantar era servido. Lá, a discussão continuava sobre pontos mais sutis da teoria e, mais tarde, geralmente assumia tons mais leves. Às onze e meia ou mais, os membros que ainda não estavam exaustos iam ao Künstler Café, em frente à Universidade, o ponto de encontro favorito dos economistas em Viena naquela época. Mises sempre foi um dos corajosos que iam ao Künstler Café e era o último a ir para casa, nunca antes da 1 da manhã.

Na manhã seguinte, fresco como uma margarida, ele estava em seu escritório às 9 da manhã. Aos oitenta, ele ainda mantém seu hábito de trabalhar até tarde e acordar cedo.

Em 1935, Mises aceitou uma oferta de W. E. Rappard e se juntou ao Institut Universitaire de Hautes Études Internationales em Genebra, onde lecionou até 1940, quando emigrou para a América. Alguns de seus alunos já tinham ido embora antes—Hayek tinha ido para Londres e o presente escritor para Genebra. Aqueles que permaneceram em Viena até a noite cair em 1938 sentiram-se solitários e desamparados. A canção de Kaufmann deu uma expressão comovente a esses sentimentos.

A saída de Mises e o desaparecimento das outras escolas mencionadas acima deixaram um grande vazio na vida intelectual de Viena, que nunca mais foi preenchido, nem mesmo após o espetacular renascimento econômico e político da Áustria após a Segunda Guerra Mundial.

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