Texto introdutório (Alta Linguagem): O texto que se segue consiste numa tradução de um artigo acadêmico acerca da figura do molinista inglês Thomas Stapleton. Stapleton em geral foi considerado um "agostiniano moderado" da época da Contrarreforma, todavia a pesquisa mais recente sugere que, além de Sto Agostinho, Stapleton foi muito influenciado pelas teses teológicas do jesuíta Luís de Molina. A importância deste molinista inglês se dá, sobretudo, por suas respostas aos doutores da Reforma, em especial Calvino neste texto, mas também Melanchton e Martin Chmenitz (famoso autor do Exame do Concílio de Trento).
O conhecimento médio de Molina: o “antídoto” de Thomas Stapleton a João Calvino
Antonio Gerace
Universidade de Louvain, Bélgica, e Fundação João XXIII para ciência da religião, Bolonha, Itália
Abstract
O comentador bíblico Thomas Stapleton (1535-1598), um exilado católico inglês em Louvain e Douai, desempenhou um papel vital na “idade de ouro dos estudos bíblicos” (1550-1650). Seu Antidota (1595) tinha como objetivo fazer a “correta” interpretação da Bíblia em resposta aos comentários “envenenados” de Calvino e outros. Essa batalha pela fé “verdadeira” também envolveu Stapleton em debates internos ao catolicismo, especialmente a controvérsia de auxiliis com teólogos jesuítas insistindo no livre arbítrio humano contra seus pares inclinados ao agostinianismo, enfatizando a graça de Deus. Enquanto a pesquisa acadêmica prévia colocou Stapleton dentre aqueles deste último grupo por conta de suas extensas citações de Agostinho, este artigo tem como objetivo estabelecer que Stapleton pertencera na verdade ao primeiro grupo e que sua orientação não vinha de Agostinho, mas na verdade do teólogo jesuíta espanhol Luís de Molina (1535-1600). Através de uma análise do Antidota de Stapleton, e especificamente de seus comentários a Mateus 11:21, este artigo demonstra a dependência de Stapleton na teoria chamada “conhecimento médio” de Molina.[1]
Introdução
Entre 1550 e 1650, desenvolveu-se na Universidade de Louvain [Leuven] e em sua universidade-irmã em Douai, uma chamada idade de ouro dos estudos bíblicos.[2] O ímpeto para esse desenvolvimento partiu do Concílio de Trento, especialmente de sua quarta sessão em 1546, que incentivou estudos textuais críticos da Vulgata, demandando uma nova edição para corrigir os erros de copistas acumulados ao longo de sua longa história. Após Trento, os teólogos e eclesiásticos católicos nos Países Baixos sentiram a necessidade de responder ao “veneno da heresia”—a partir da década de 1560, sobretudo o calvinismo—por meio de um retorno ao estudo aprofundado das Escrituras. O primeiro campo explorado pelos estudiosos de Louvain foi justamente a emenda da Vulgata latina e a elaboração de uma nova edição crítica, cumprindo assim o pedido formulado pelos padres conciliares durante a quarta sessão tridentina.[3]
Além disso, o Concílio de Trento, em sua quinta sessão, promulgou o decreto De instituenda lectione sacrae Scripturis et liberalium artium [Da Instituição de uma Cátedra de Sagradas Escrituras e das Artes Liberais], incentivando o estudo da Bíblia sob a supervisão da Igreja. Isso levou à criação de várias cátedras de Sagradas Escrituras, especialmente pelos monarcas católicos espanhois nos Países Baixos. Em 1546, o imperador Carlos V fundou a cátedra real de Sagradas Escrituras na faculdade de teologia de Louvain,[4] e, em 1562, Filipe II, rei da Espanha, estabeleceu uma nova universidade em Douai.[5] Assim, além desse trabalho textual-crítico, os teólogos de Louvain e Douai também se dedicaram a explicar as Escrituras conforme a doutrina católica. Em poucos anos, essas cidades tornaram-se centros importantes de estudos teológicos e, devido à proximidade com as Ilhas Britânicas, atraíram exilados católicos ingleses, que começaram a deixar a Inglaterra no início da era protestante elisabetana. Neste artigo, abordarei um desses intelectuais que migraram da Inglaterra para os Países Baixos Espanhois: Thomas Stapleton. Ele foi beneficiário das duas instituições: formou-se em Louvain e Douai, onde estudou teologia de controvérsias e Sagrada Escritura, retornando posteriormente a Louvain para assumir a cátedra de Sagrada Escritura (1590).
Naqueles anos, além disso, o catolicismo foi abalado por um intenso debate interno, a chamada controvérsia de auxiliis,[6] centrada no papel da graça divina e do livre-arbítrio humano na economia da salvação. Dois grandes grupos polarizavam o debate: os estudiosos de inclinação agostiniana (antipelagianos), que enfatizavam a primazia da graça, e os jesuítas, que destacavam a importância do livre-arbítrio. Embora fosse membro da Companhia de Jesus, Thomas Stapleton foi inicialmente classificado entre os teólogos agostinianos moderados, já que Santo Agostinho era sua principal referência em seus escritos, e poucos elementos típicos do ensino jesuíta apareciam em suas reflexões sobre o homem pós-Queda. Neste artigo, porém, apresentarei provas textuais da adesão de Stapleton a conceitos jesuítas, em particular sua dependência do jesuíta espanhol Luis de Molina e de sua teoria do conhecimento médio (scientia media), que o jesuíta inglês utilizou para contrapor-se à noção calvinista da presciência e predestinação divinas.
Thomas Stapleton e seu comentário bíblico
Thomas Stapleton (1535–1598),[7] foi um dos vários intelectuais católicos que migraram da Inglaterra para os Países Baixos Espanhois no início da era elisabetana (1558–1603). Quando o Parlamento inglês promulgou o Ato de Supremacia de 1558, conferindo à rainha Elizabeth o título de “Governadora Suprema da Igreja da Inglaterra”, após o breve retorno ao catolicismo durante o reinado de Maria I, os Países Baixos Espanhois tornaram-se refúgio para católicos das Ilhas Britânicas. Os estudiosos, em particular, preferiram estabelecer-se na cidade universitária de Louvain [Leuven][8] e, posteriormente, em Douai, após a fundação da universidade local. Thomas Stapleton, após estudar teologia em Oxford e tornar-se titular da prebenda na Catedral de Chichester, recusou-se a prestar o Juramento de Supremacia (1558)[9] e, “pouco após a ascensão de Elizabeth [...] retirou-se com seu pai e família para Louvain, dedicando-se ao estudo da teologia”.[10]
Em 1569, Stapleton mudou-se para Douai, onde colaborou com outro exilado inglês, William Allen (1532–1594), na fundação do Colégio Inglês. Em 1571, iniciou suas atividades como professor de teologia na universidade, cargo que manteve até 1582, exceto por um breve período em 1576–1577, quando uma facção antiespanhola tomou a cidade durante a Revolta Holandesa.[11] Nesse intervalo, visitou Roma pela segunda vez (após sua primeira peregrinação em 1562).[12] Após renunciar à cátedra e ao cargo de cônego em 1582, Stapleton iniciou seu noviciado na Companhia de Jesus em Douai. Ele rememorou esse período em seu Compendium breve, et verum [Breve e Verdadeiro Compêndio], admitindo que, após quase dois anos, “sucumbia sob o ‘ardor’” da formação jesuíta.[13]
Naqueles anos, o catolicismo estava imerso na controvérsia de auxiliis, que opôs estudiosos católicos antipelagianos e de inclinação agostiniana aos teólogos jesuítas, em debate sobre o papel do livre-arbítrio humano na economia da salvação. Em Louvain [Leuven], o ambiente teológico era predominantemente antipelagiano e agostiniano. Os ensinamentos da Companhia de Jesus não eram bem-vistos por autores eminentes, como Miguel Baio (1589) e Jean Hessels (1522–1566).[14] Um dos episódios mais marcantes dessa controvérsia ocorreu quando o jesuíta flamengo Leonardus Lessius (1554–1623) foi acusado de semipelagianismo devido às teorias expostas em suas Theses theologicae (Louvain, 1586). Ele foi condenado primeiro pela faculdade de teologia de Louvain (1586) e, um ano depois, pela de Douai (1587).[15]
Thomas Stapleton, mantendo-se próximo aos ideais jesuítas e tendo convivido com Lessius em Douai por quinze anos, defendeu-o durante essa controvérsia.[16] A consequência foi seu ostracismo pelos professores agostinianos da Universidade de Douai, que deixaram de conceder-lhe cargos importantes. Somente em 1590, Filipe II nomeou-o professor real de Sagrada Escritura na Universidade de Louvain, já que Stapleton “demonstrava lealdade à Espanha”.[17]
Ao longo de sua carreira acadêmica, Thomas Stapleton escreveu comentários bíblicos para contrapor as exposições bíblicas de João Calvino e Teodoro Beza.[18] Stapleton via esses dois teólogos reformados como os principais alvos polêmicos de seus Antidota.[19] Publicados em Antuérpia e Lyon entre 1595 e 1598, os Antidota eram comentários eruditos sobre grande parte do Novo Testamento—incluindo os Evangelhos, Atos dos Apóstolos e as epístolas paulinas aos Romanos e Coríntios. Stapleton também publicou exposições homiléticas, sendo as mais famosas os Promptuaria [Armazéns] (Antuérpia, 1591–1594), destinados a auxiliar sacerdotes na preparação de sermões. Como a influência do calvinismo era forte nos Países Baixos e na Inglaterra da época,[20] ele considerava crucial a formação do clero em princípios católicos sólidos. Somente assim as ideias de Calvino sobre predestinação, graça e livre-arbítrio poderiam ser combatidas.
Considerando que os pressupostos teóricos dos Antidota são mais relevantes para este artigo do que os ensinamentos práticos dos Promptuaria, focarei agora em uma perícope extraída dos Antidota evangelica in evangelium sancti Matthaei [Antídotos Evangélicos sobre o Evangelho de São Mateus], publicados em 1595. Por meio da análise dessa passagem selecionada — Mateus 11:21 —, pretendo demonstrar a influência jesuíta (ou melhor, molinista) nesta obra, o que é particularmente relevante dada a primazia da autoridade de Agostinho no contexto intelectual de Louvain no início da era moderna.[21]
Um título revelador
A intenção de Thomas Stapleton por trás dos Antidota já é dedutível pelo título: oferecer um “antídoto” contra o “veneno da heresia”, em especial a do calvinismo. O autor busca explicar o sentido genuíno das palavras de Jesus para que os fieis as compreendam corretamente.[22] A metodologia empregada era simples, porém eficaz: ele interpretava o significado de uma perícope à luz da fé católica, citando Santo Agostinho como sua principal fonte antiga. Embora recorra ao bispo de Hipona mais do que a qualquer outro, a perspectiva de Stapleton não deixa de ser influenciada pelo teólogo jesuíta espanhol Luis de Molina, cuja obra De liberi arbitrii cum gratiae donis, divina praescientia, praedestinatione et reprobatione Concordia [Concórdia do Livre-Arbítrio com os Dons da Graça, Presciência Divina, Providência, Predestinação e Reprobação],[23] como demonstrarei neste artigo.
Antes de examinar os detalhes da dependência de Stapleton em relação a Molina, é necessário recapitular brevemente os conceitos de presciência e predestinação de João Calvino, centrais na passagem dos Antidota em discussão. Embora Stapleton não cite as Institutas de Calvino nesta perícope específica—referindo-se, em vez disso, à Harmonia—, é evidente que ele tem em mente um capítulo específico (21) das Institutas: “A eleição eterna, pela qual Deus predestinou alguns para a salvação e outros para a perdição”. Nesse capítulo, Calvino sintetiza seu pensamento sobre a eleição divina. Quanto à presciência, ele afirma que é o conhecimento pelo qual
todas as coisas sempre estiveram e permanecem sob Seu olhar; para Seu conhecimento não há passado ou futuro, mas todas as coisas são presentes, e tão presentes que não é apenas a ideia delas que está diante dEle (como os objetos que retemos em nossa memória), mas Ele verdadeiramente as vê e contempla como estando sob Sua inspeção imediata. Essa presciência estende-se a todo o circuito do mundo e a todas as criaturas.[24]
Calvino explica ainda o que é comumente chamado de “doutrina da dupla predestinação”: Deus, desde a eternidade e apenas segundo seu próprio juízo, decreta quem será salvo e quem será condenado.[25] Uma visão semelhante havia sido rejeitada durante a sexta sessão do Concílio de Trento, no decreto De justificatione [Sobre a justificação]. Embora os Padres conciliares tenham enfatizado a prioridade da graça divina, reconheceram a necessidade do livre-arbítrio humano no processo de salvação. No entanto, o concílio evitou oferecer uma interpretação clara da relação entre a predestinação divina e as ações humanas, deixando aos teólogos católicos a tarefa difícil de resolver esse problema.
Atualmente, Wim François é possivelmente o único estudioso que tem se interessado pela teoria de Thomas Stapleton sobre predestinação, graça e livre-arbítrio humano, conforme exposta em seus comentários bíblicos. François (2009) situa inicialmente Stapleton na escola de inclinação agostiniana de Louvain, uma vez que o inglês utiliza o bispo de Hipona como fonte mais autoritativa em suas obras, embora “sua interpretação de Agostinho seja moderada, mantendo distância do baianismo, já condenado à época”.[26] No entanto, ao aprofundar a leitura de Stapleton, François (2010) identificou elementos claros dos ensinamentos molinistas nos Antidota apostolica in epistolam B. Pauli ad Romanos, em passagens que tratam do homem pós-queda e sua possibilidade de salvação. Embora Agostinho permaneça a fonte mais citada nessas seções—Molina nunca é mencionado diretamente—,[27] François sustenta que Stapleton buscava, na verdade, uma concordância entre a “tradição autorizada de inspiração agostiniana” e o “molinismo jesuíta”.[28]
Seguindo a interpretação de François de um Thomas Stapleton “de inspiração jesuíta”, este artigo analisa seus Antidota in Evangelium sancti Matthaei, com foco em seu comentário sobre Mateus 11:21, no qual ele cita trechos da Concordia de Luis de Molina—obra em que o jesuíta espanhol detalha minuciosamente sua teoria do conhecimento médio.
Mateus 11:21. Corazim e Betsaida
Embora Stapleton demonstre sua dependência de Molina em várias passagens,[29] talvez o exemplo mais claro venha de seu comentário sobre Mateus 11:21. Nessa passagem, Cristo afirma: Ai de ti, Corazim, ai de ti, Betsaida! Pois se em Tiro e Sidônia tivessem sido realizados os milagres que foram feitos entre vós, há muito elas teriam feito penitência com cilício e cinzas. Segundo Stapleton, Cristo está falando aqui sobre a contingência das coisas—ou seja, o fato de um evento poderia ter ocorrido no passado, mas não ocorreu (isto é, o possível arrependimento de Tiro e Sidônia) ou de um evento que poderia ocorrer no futuro (isto é, o arrependimento de Betsaida e Corazim). Assim, ele também discute a liberdade da ação humana. Portanto, na opinião de Stapleton, o cerne dessa passagem é a relação entre a presciência divina e o livre-arbítrio humano.
Com essa interpretação em mãos, Stapleton acusa Calvino de ter distorcido o real e genuíno significado das palavras de Jesus, conforme exposto na Harmonia de Calvino.[30] Nesta obra, Calvino argumenta que Cristo está falando ‘humano more’ (de modo humano): Ele está usando uma simples metáfora para indicar a gravidade do pecado de Corazim e Betsaida, afirmando que era ainda pior que o de Tiro e Sidônia.[31] De fato, Tiro e Sidônia teriam se arrependido se milagres tivessem ocorrido, enquanto as outras duas cidades recusaram-se a fazê-lo mesmo diante da pregação de Cristo. Assim, o pecado de Corazim e Betsaida era mais grave que o de Tiro e Sidônia: no primeiro caso, havia apenas ignorância; no segundo, má-fé—acompanhada do desprezo irremediável de Deus.
No entanto, Stapleton considera a análise de Calvino uma distorção das palavras de Cristo. Ele suspeita que Calvino argumenta que Cristo fala humano more (de modo humano) apenas por não aceitar a ideia de que Cristo mencionaria o livre-arbítrio humano, ainda que este pareça evidente na referência à escolha dos cidadãos de Corazim e Betsaida em não crer. Stapleton afirma que essa passagem do Evangelho simplesmente não sustenta a visão calvinista, pois oferece um exemplo concreto do livre-arbítrio—a “predeterminação infalível”, usando sua expressão—, e não da dupla predestinação divina. Por isso, Calvino precisa sustentar que Cristo fala humano more, adaptando sua linguagem aos homens. Assim, segundo o inglês, Calvino deturpa o sentido real das palavras de Jesus neste caso; para Stapleton, elas não são uma metáfora, mas um veículo de ensinamentos verdadeiros, que ele chama de ‘documenta’.[32] Dessa forma, Stapleton pôde explicar sua visão sobre a relação entre a presciência divina e o livre-arbítrio humano. No entanto, a maior parte de sua argumentação, dividida em sete etapas, baseia-se inteiramente em Luís de Molina. De fato, Stapleton sistematicamente (embora nem sempre com precisão) indica as referências à Concordia (1588), remetendo os leitores àquela obra para um tratamento mais completo do tema.
Mateus 11:21. Onisciência divina e livre-arbítrio humano
O primeiro ensinamento concerne à onisciência divina. Segundo Stapleton, o conhecimento de Deus não depende da existência real do objeto conhecido; assim, Ele pode prever não apenas o que efetivamente será, mas também o que poderia ter sido no futuro. De fato, na visão de Stapleton, há duas formas de conhecer algo:
1.O “conhecimento de visão (meramente livre)”, que depende da existência real do objeto conhecido. Nesse caso, Deus só pode ter “conhecimento de visão” sobre eventos futuros se estes realmente se concretizarem. Aqui, Stapleton também faz referência a Agostinho, ao afirmar que, por meio de Sua presciência, Deus “preconheceu o que seria, não o que não seria”.[33] Portanto, o “conhecimento de visão” é o conhecimento das entidades que Deus livremente escolheu criar.
2.O “conhecimento de simples inteligência (meramente natural)”, que não depende da existência real do objeto conhecido. Aqui, o conhecimento depende inteiramente do sujeito, que é capaz de compreender tanto o que não é quanto o que poderia ser. Em outras palavras, o “conhecimento de simples inteligência” é o conhecimento divino de todas as entidades possíveis que existem em Sua mente.
Portanto, em relação aos futuros contingentes—neste caso, o que Tiro e Sidônia teriam feito se houvesse pregação e milagres—, Deus não pode ter conhecimento de visão, propriamente dito, porque o objeto do conhecimento não existe. Trata-se apenas de uma entidade não criada ou de uma potencialidade não atualizada. No entanto, Ele possui conhecimento de simples inteligência. Assim, Deus compreende esses futuros não existentes, o que significa que Ele pode prever todos os futuros paralelos possíveis, incluindo eventos que não se concretizarão. Stapleton pressupõe que Cristo possui esse conhecimento de simples inteligência—ou seja, que Tiro e Sidônia poderiam ter se convertido se houvesse milagres. Dessa forma, Jesus refere-se ao efeito possível de uma causa que não ocorreu.
A dicotomia entre esses dois tipos de conhecimento divino não é, de forma alguma, uma elaboração original de Stapleton, como ele mesmo admitiu livremente. Trata-se, antes, de um desenvolvimento de Luís de Molina.[34]
De fato, o jesuíta espanhol elabora esses dois modos de conhecimento—“conhecimento de simples inteligência” e “conhecimento de visão”—vinculando-os por meio de um tipo intermediário, que denomina “conhecimento médio” (scientia media). Com base nesse conhecimento, Deus pode prever o que os homens fariam livremente na infinita variedade de todas as circunstâncias possíveis. No entanto, antes de abordar esse último tipo, é necessário discutir o significado de eternidade em Molina, já que esse conceito está intimamente ligado ao de presciência, pois Deus conhece as ações humanas em Sua existência eterna.
Se a eternidade for considerada a condição na qual todas as coisas são presentes, como Calvino sustentara, não haveria espaço para o livre-arbítrio humano, pois as ações dos homens, situadas no futuro, já estariam presentes na existência eterna de Deus. Portanto, Molina, desejando preservar o livre-arbítrio, não poderia aceitar essa visão da eternidade como a “posse simultânea, perfeita e integral de uma vida ilimitada”,[35] ou seja, toda a extensão do tempo desenvolvida simultaneamente. Ele não a via como um presente eterno, sem distinção entre passado e futuro. Na verdade, segundo Molina, a eternidade pode ser concebida como não contendo o futuro.
Ele explica esse conceito por meio de um exemplo geométrico. Tomando um ponto x para representar a eternidade simples, pode-se traçar um círculo ao seu redor para representar o tempo. A circunferência tem um ponto inicial a, o início do mundo. Cada instante do tempo é representado por um ponto único na linha temporal, até b, o presente. Obviamente, o arco ab corresponde ao passado. Deus, de Sua condição eterna x, possui “conhecimento de visão” sobre essa parte do tempo, pois cada instante já existiu. Em termos geométricos, há uma correspondência biunívoca entre o centro e cada ponto do círculo já traçado. Graças a essa correspondência, Deus conhece por “conhecimento de visão”, uma vez que há um objeto de conhecimento.
Assim, o centro do círculo x representa a eternidade simples, à qual cada ponto do círculo corresponde—ou seja, o tempo que passa—, mas só pode corresponder a todos os indivisíveis quando todos os pontos da circunferência forem traçados. Portanto, onde não há correspondência biunívoca, significa que o “futuro” ainda precisa ser delineado.[36] Embora, em sua condição eterno-simples x, Deus possa prever eventos futuros, Ele não pode ter “conhecimento de visão”, pois esses eventos ainda não existem. No entanto, Deus ainda possui presciência infalível deles, mesmo que essa certeza não derive da existência do próprio objeto. Deus ainda é capaz de ver algo incerto e falível graças à Sua onisciência.[37] Isso é possível graças a outro tipo de conhecimento, o chamado “conhecimento médio” (scientia media), uma espécie de intuição[38] capaz de conhecer o livre-arbítrio de cada indivíduo e as formas como será exercido. Esse conhecimento não é “livre”, pois é anterior ao ato voluntário divino da criação. Exatamente por isso, os homens conservam seu livre-arbítrio. Assim, não é Deus, mas o homem, quem atualiza uma potencialidade específica. Quando isso ocorre, Deus sabe o que o homem fará, mas de tal modo que Seu conhecimento não altera a ação humana.
Resumindo, há três tipos de conhecimento:
a) “Conhecimento de simples inteligência (meramente natural)”, ou onisciência. Deus conhece todas as potencialidades, tanto as que serão atualizadas quanto as que não o serão. Esse conhecimento é natural, no sentido de ser constitutivo do próprio ser divino. Assim, é anterior a qualquer intervenção de Sua vontade na escolha do que será ou não criado.[39]
b) “Conhecimento médio” (scientia media), ou presciência dos futuros contingentes. Esse conhecimento não é natural, pois não é constitutivo do ser divino. Portanto, não pode abranger todas as potencialidades. Por meio do conhecimento médio, Deus tem presciência infalível de eventos que ocorreriam no futuro, mesmo que sua existência não seja necessária. Esse conhecimento baseia-se no “conhecimento de simples inteligência”, mas com foco mais restrito: dirige-se não às potencialidades em si, mas apenas àquelas que seriam atualizadas. Além disso, é anterior à vontade divina, pois Deus conhece um evento específico mesmo sem ter (ainda) decidido se o criará ou não — ou, mais precisamente, se o atualizará ou não.[40]
c) “Conhecimento de visão (meramente livre)”, ou conhecimento de “todos os contingentes futuros atuais ou absolutos”.[41] Esse conhecimento é livre precisamente porque depende exclusivamente da vontade divina. “Liberdade” deve ser entendida como um ato voluntário de escolha, sem condicionamento externo. A noção de liberdade em Molina corresponde ao conceito de αὐτονομία (autonomia, “liberdade para usar suas próprias leis”). Assim, o “conhecimento livre” segue o ato voluntário de atualizar (ou não) uma potencialidade específica. O “conhecimento de simples inteligência”, por contraste, é natural por ser parte integrante da natureza divina e atuar antes da vontade.
Desse modo, em uma ordem lógica, Deus (a) vê todas as potencialidades através de seu “conhecimento de simples inteligência”; (b) sabe de antemão daquilo que os homens decidirão fazer, ou quais potencialidades seriam atualizadas, através de seu “conhecimento médio”; (c) sabe qual potencialidade será atualizada através do “conhecimento de visão”.[42]
O uso do conhecimento médio de Molina por parte de Stapleton: os sete ensinamentos
A teoria de Molina sobre o conhecimento triplo é plenamente adotada por Stapleton nos Antidota. Uma prova adicional disso está em seu comentário a Romanos 11:29: “Porque os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento” (DRV). Aqui, Stapleton apresenta uma sinopse da teoria do conhecimento médio, oferecendo uma explicação detalhada do sistema molinista. De certo modo, ele também complementa o esquema já apresentado no comentário a Mateus 11:21, onde havia introduzido apenas as noções de “conhecimento de visão” e “conhecimento de simples inteligência”, deixando de lado o “conhecimento médio”.
No comentário a Romanos 11:29, Stapleton recorda que, em Deus, há:
Um “conhecimento natural” de todas as potencialidades;
Um “conhecimento livre” das potencialidades que serão atualizadas, por serem consequência de um ato livre de Deus;
Entre esses dois, um “conhecimento médio” das potencialidades que, ex hypothesi [de acordo com a hipótese estabelecida], serão atualizadas.
De fato, em si mesma, não é necessário que uma potência específica se torne ato; seu oposto também poderia ocorrer. No entanto, essa potencialidade será atualizada por fazer parte de uma ordem de causa-efeito. Isso significa, por um lado, que a necessidade dessas potencialidades não é absoluta, mas condicional, e, por outro, que a atualização de uma potencialidade é previsível. Esse “conhecimento médio” não é “livre” (por ser anterior a qualquer ato livre de Deus) nem “natural” (pois, por meio dele, Deus conhece tanto as potencialidades que serão atualizadas quanto suas alternativas).[43] Em conclusão, Molina e Stapleton parecem defender que a decisão eterna de Deus de atualizar uma linha temporal específica depende de Sua previsão das decisões livres humanas. Contudo, em outra passagem, Stapleton afirma que a razão da escolha divina é inescrutável. De fato, segundo Molina, Deus concede Sua assistência não com base na previsão do uso do livre-arbítrio pelos homens. Em outras palavras, não há uma relação de causa-efeito entre as ações humanas e os auxílios divinos. Antes, Deus age apenas conforme Sua própria vontade.
O primeiro ensinamento que Stapleton deduz de Mateus 11:21 requer uma longa exposição, pois a noção de “conhecimento médio” é complexa, mas essencial para compreender os seis “documenta” restantes. O segundo ensinamento que Stapleton infere dessa perícope refere-se à correlação direta entre livre-arbítrio e atos humanos. De fato, Cristo afirma: “Ai de ti, Corazim, ai de ti, Betsaida! Pois se em Tiro e Sidônia tivessem sido realizados os milagres que foram feitos entre vós, há muito elas teriam feito penitência com cilício e cinzas”.
Stapleton explica que Cristo atribui um pecado mais grave a Corazim e Betsaida do que a Tiro e Sidônia, pois as primeiras escolheram, em conformidade com seu livre-arbítrio, não crer. Na verdade, segundo Stapleton, é impossível cometer um pecado sem consentimento livre. No pecado, o livre-arbítrio humano está necessariamente envolvido. Ele desenvolve esse conceito citando diretamente a Concordia de Molina e exorta o leitor a consultar essa obra para uma compreensão mais completa do problema.[44]
Em particular, Molina não apenas afirma que Corazim e Betsaida escolheram não crer, mas também ressalta que Deus não lhes negou Sua assistência—como milagres e pregação. Caso contrário, não seria possível culpá-las por desobedecer a Deus. Aqui, Molina remete à explicação de Agostinho: quando alguém deixa de crer, a culpa não está em Deus, mas nos homens, pois Deus não pode negar a Si mesmo.[45]
O terceiro ensinamento busca explicar a eficácia dos milagres e a razão pela qual convertem algumas pessoas, mas não todas. De fato, diante dos mesmos auxílios divinos, alguns escolhem crer em Cristo, enquanto outros não. Por exemplo, os milagres e a pregação não foram suficientes para converter Corazim e Betsaida, embora Tiro e Sidônia tivessem crido se recebessem os mesmos auxílios. Stapleton recorre a Molina para uma análise abrangente da questão. Primeiro, Molina sustenta que, embora não haja mérito antes da graça preveniente, muito depende do livre-arbítrio. A conversão à fé em Cristo não se deve apenas à infusão da graça divina, mas também:
Ao livre-arbítrio humano;
Aos meios externos (milagres e pregação do Evangelho).[46]
Portanto, para alcançar a salvação eterna, há uma relação estreita entre, por um lado, a graça preveniente e, por outro, a cooperação humana. Para embasar isso, Molina cita as palavras de Cristo: “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o atrair; e eu o ressuscitarei no último dia” (João 6:44). Com base nisso, Molina argumenta que ninguém pode ser salvo a menos que:
Deus o conduza à conversão mediante a graça preveniente;
A pessoa coopere por meio de sua livre adesão.[47]
Em outra passagem, Molina esclarece sua posição, explicando a conexão temporal e lógica entre graça, livre-arbítrio e salvação. Ele afirma que, quando Deus concede a graça preveniente a alguém, este pode aceitá-la e seguir Cristo—mas também pode rejeitá-la. A condição anterior (graça preveniente) não anula a liberdade humana em relação ao ato subsequente (conversão). A conversão ainda depende da escolha livre por meio do ato de fé.[48]
Em suma, a conversão é causada pela concordância humana, não apenas pela graça divina. Se alguém deixa de crer, é precisamente por escolher não crer.
O quarto ensinamento afirma simplesmente que, entre os auxílios da graça divina que induzem os homens a crer, estão também os milagres, que atuam como persuasões externas. Deus não induz os homens diretamente à fé, mas usa milagres como meio para convencê-los a se converterem. Eles são “persuasões externas” porque transcendem os sujeitos a quem são dirigidos.[49]
O quinto ensinamento desenvolve o quarto documentum, buscando explicar como Deus usa Seus auxílios para, ao longo da vida, levar os homens a crer nEle. Segundo Stapleton, os auxílios da graça não são concedidos por Deus com base na previsão do uso que os homens farão de seu livre-arbítrio. Em vez disso, Deus os envia apenas por Sua própria vontade. Molina sustenta o mesmo, explicando que, durante a vida humana, Deus concede os dons de Sua graça preveniente, excitante e cooperante, não com base na previsão do uso do livre-arbítrio, mas por Sua vontade divina e inescrutável.[50] Stapleton propõe essa ideia não apenas citando Molina, mas também referindo-se ao De dono perseverantiae [Sobre o Dom da Perseverança] de Agostinho. Nessa obra, o bispo de Hipona discute o caso de crianças não batizadas que morreram, traçando um paralelo com Tiro e Sidônia, para mostrar que Deus não julga os homens com base em ações que previu, mas naquelas que efetivamente ocorreram. Em ambos os casos, Deus não concede Seus dons—o batismo às crianças e os milagres às cidades—, o que leva tanto os não batizados quanto às cidades à morte eterna, por permanecerem vinculados ao pecado original. Agostinho explica que a decisão de Deus de conceder Seus auxílios é sempre inescrutável (referindo-se especificamente ao dom da perseverança), acrescentando que aqueles que recebem os dons foram predestinados a isso.[51]
Parece claro que, na visão de Agostinho, não há espaço para contribuições humanas à salvação. No entanto, Stapleton e Molina buscam conciliar livre-arbítrio humano e predestinação divina, modificando substancialmente a premissa agostiniana ao enfatizar o mérito humano na economia da salvação—um aspecto considerado excessivamente próximo ao pelagianismo pelos círculos católicos de inspiração agostiniana.
O sexto ensinamento concentra-se, mais uma vez, na onisciência divina. Em Deus, há uma presciência infalível dos contingentes futuros, mas também uma predestinação livre e uma eleição gratuita dos fiéis, bem como uma rejeição justa dos pecadores com base em Sua presciência.[52]
É evidente por que Stapleton fala em “presciência” em vez de “conhecimento de simples inteligência” e em “predestinação” em vez de “conhecimento de visão”. De fato, a “presciência” parece ser o efeito imediato do “conhecimento de simples inteligência”: Se possuo onisciência (ou “conhecimento de simples inteligência”), tenho presciência infalível dos contingentes futuros. Quanto à “predestinação”, conheço o que efetivamente será no futuro (conhecimento de visão) e, assim, conforme minha vontade, crio esta linha temporal específica — ou seja: predestino.
Stapleton novamente fundamenta sua teoria citando Molina. O jesuíta espanhol afirma que, antes da criação, Deus já conhece com certeza todos os contingentes futuros, graças ao “conhecimento de simples inteligência (meramente natural)”, mas também predestina, escolhendo criar conforme seu “conhecimento de visão (meramente livre)”. Para explicar a relação entre presciência e predestinação, Molina usa uma metáfora: um artesão não pode saber qual instrumento usará para produzir um artefato até ter uma ideia clara de como fazê-lo. Da mesma forma, Deus primeiro conhece todos os contingentes futuros e, então, escolhe as potencialidades que serão atualizadas. Se não fosse assim, as ações divinas seriam indiferentes, e a criação seria aleatória, sem base em conhecimento prévio — algo claramente contrário à fé católica.[53]
De fato, Deus age em conformidade com o conhecimento médio (scientia media), e por isso Ele prevê o que os homens escolherão livremente. Assim, parece que Deus predestina post praevisa merita (após os méritos previstos), ou seja, após contemplar os méritos, Ele o faz desde a eternidade.
Contudo, a literatura sobre Molina corretamente registra que o jesuíta espanhol nunca usou a expressão post praevisa merita (após os méritos previstos), nem Stapleton, que evitou terminologia técnica em seus argumentos.[54] No entanto, pelas palavras de Molina, fica claro que Deus predestina após ter visto—sem que essa previsão influencie Suas decisões. Em vez de post (após), Molina preferiu a preposição per — per propria merita (por meio dos próprios méritos)[55] — em claro contraste com propter (por causa de).[56]
O que significa per neste contexto? Como Molina afirma, Deus primeiro conhece o que será por meio do conhecimento natural e do conhecimento médio, então cria uma linha temporal específica. No entanto, a razão da decisão divina ainda precisa ser identificada. Evidentemente, ela não pode basear-se em méritos previstos,[57] pois, caso contrário, Deus não seria livre para escolher, já que Sua predestinação seria determinada pelos méritos humanos. Aqui, Molina rejeita inteiramente o pelagianismo, que pressupõe que os homens podem obter a salvação sem a ajuda divina, mesmo após o pecado de Adão.
Além disso, segundo Molina, os homens são predestinados por meio de seus próprios méritos—ou melhor, os homens também alcançam a salvação por meio de seus próprios méritos. Em outras palavras, o livre-arbítrio humano é uma causa concorrente em relação à graça divina. Ambos são duas partes de uma única causa integral.[58]
É importante destacar que Molina usa a preposição “per” para afirmar precisamente que os méritos são a causa instrumental humana para a salvação, enquanto os auxílios divinos são a causa instrumental de Deus. Molina não utiliza a expressão causa instrumentalis (causa instrumental), seja para se referir aos auxílios divinos ou aos méritos humanos, mas é razoável inferir—a partir do exemplo anterior do artesão—que essa categoria se aplica. Como explica Molina, Deus usa Seus auxílios assim como um artesão usa suas ferramentas.
De fato, após contemplar todos os eventos futuros em Sua existência eterna, Deus escolheu criar uma linha temporal específica, durante a qual concede Seus auxílios soberanamente. No entanto, a graça sozinha não é suficiente, pois os homens também recebem a vida eterna parcialmente por meio de seus próprios méritos. Dessa forma, Molina busca preservar o livre-arbítrio humano na economia da salvação. Contudo, Deus apenas “leva em consideração” o que os homens farão, mas, novamente, não concede Seus auxílios com base em seus méritos futuros, apenas conforme Sua própria vontade, conforme exposto no quinto ensinamento.[59]
O problema do pecado permanece, mas Molina responderia que a vontade divina de criar uma linha temporal específica depende de Seu conhecimento médio (scientia media), que é anterior à Sua vontade. Assim, Deus cria simplesmente sabendo o que os homens farão, embora suas ações não sejam necessárias em si mesmas (in se), pois poderiam até fazer o oposto do que farão. Em qualquer caso, segundo Molina, o conhecimento divino não pode influenciar as ações humanas, exatamente porque o conhecimento médio é anterior à Sua vontade—ou seja, precede o ato de criação.
Por fim, o último ensinamento refere-se à vontade divina inescrutável. Deus justamente escolheu não realizar milagres em Tiro e Sidônia. Ele fez muitas outras coisas — que não conhecemos —, mas elas escolheram não crer.[60]
Este último ponto é crucial, pois revela a problemática interna da teoria de Molina. Como mostrado anteriormente, Deus criou uma linha temporal específica ab aeterno (desde a eternidade) e per propria merita (por meio dos próprios méritos), mas é preciso enfatizar que a predestinação ou reprovação não ocorre “por causa de méritos previstos”—baseia-se na vontade divina.[61]
Desde a eternidade, Deus decide de modo inescrutável exercer Seus meios externos—como milagres ou pregação—por meio de algumas pessoas durante suas vidas, mas nunca por causa de seus méritos previstos. Ele concede Seus auxílios apenas por Seu beneplacito, devido à Sua misericórdia e generosidade, mais a alguns do que a outros. Como resume o filósofo italiano Piero Martinetti:
Anterior a cada ato de Sua vontade, por meio de: 1) “conhecimento de inteligência” e 2) “conhecimento médio”, Deus previu: a) as infinitas combinações possíveis de seres; b) as atividades humanas, livres e não livres, em todas as combinações possíveis; c) os auxílios que poderia conceder; d) os efeitos resultantes desses auxílios. Entre todas essas combinações, Ele atualizou ab aeterno (desde a eternidade) a que subsiste hoje e subsistirá até o fim do mundo... em virtude do “conhecimento médio” [...] A razão para a escolha desta [ordem específica] está exclusivamente na vontade divina, não em qualquer ato previsto ou mérito das criaturas. À pergunta de por que Deus, mesmo prevendo a ruína de muitos seres, escolheu esta ordem, Molina só pode recorrer à inescrutabilidade dos desígnios divinos.[62]
Conclusão
A análise dos Antidota de Stapleton sobre Mateus 11:21 revela uma forte influência jesuíta em seu pensamento, decorrente de sua formação em Douai, onde ele tomou posição clara na controvérsia de auxiliis. Nos Países Baixos, em particular, esse debate acalorado opôs duas correntes: o agostinianismo antipelagiano radical, representado por autores como Miguel Baio e Jean Hessels, e o molinismo. Os ideais do agostinianismo católico antipelagiano parecem muito próximos aos ensinamentos calvinistas, pois reduzem o papel do livre-arbítrio humano na economia da salvação. Em contraste, a Escola Jesuíta, inspirada no humanismo e representada por Luís de Molina, defende uma antropologia mais otimista, enfatizando a capacidade do homem de praticar boas obras meritórias para a vida eterna.
Entre essas duas escolas católicas—o agostinianismo antipelagiano e o molinismo—, Stapleton claramente vê a segunda como representante do verdadeiro ensino católico e como o único “antídoto” possível ao “veneno” da teologia calvinista. De fato, Stapleton baseia-se na teoria do “conhecimento médio” de Molina para contrapor as noções calvinistas de presciência e salvação em relação ao livre-arbítrio. Segundo Calvino, a presciência é o conhecimento de como “todas as coisas sempre estiveram e permanecem [...] não há passado ou futuro, mas tudo é presente [...] essa presciência estende-se a todo o circuito do mundo”.[63]
Em clara oposição a essa visão, Stapleton e Molina consideram a presciência divina como “conhecimento médio”: Deus prevê o uso do livre-arbítrio pelos homens, mas, apesar dessa presciência eterna, as ações humanas mantêm sua contingência. De fato, ex hypothesi, os homens poderiam até escolher o oposto do que efetivamente escolhem. Essa diferença leva a duas visões opostas de salvação:
Para Calvino, Deus, por um decreto eterno, divide salvos e condenados por meio da predestinação, sem qualquer referência a méritos humanos.
Para Stapleton e Molina, as boas obras são uma causa instrumental da salvação, atuando em conjunto com a graça auxiliadora de Deus.
Bibliografia
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NOTAS
[1] Para este artigo, usarei a Douay-Rheims English Vulgate (= DRV). Citações patrísticas serão da Patrologia Latina (= PL) e da Patrologia Graeca (= PG), ambas editadas por Jacques-Paul Migne, e do Corpus Christianorum Series Latina (= CCSL) publicado por Brepols.
[2] Ver Wim François, ‘Augustine and the Golden Age of biblical Scholarship in Leuven (1550–1650)’, in Shaping the Bible in the Reformation: Books, Scholars and Their Readers in the Sixteenth Century, ed. B. Gordon e M. McLean (Leiden: Brill, 2012), 235–89.
[3] A referência é ao decreto De editione, et usu sacrorum librorum, promulgado em 8 de abril de 1546.
[4] Wim François, ‘Augustinus sanior interpres Apostoli. Thomas Stapleton and the Leuven Augustinian School’s Reception of Paul’, in A Companion to Paul in the Reformation, ed. R. W. Holder (Leiden: Brill, 2009), 363.
[5] Jan Roegiers, ‘Catholic Universities and the Enlightened State: The Leuven Case’, in Université, église, culture: l’université catholique à l’époque moderne: de la réforme à la révolution XVIème-XVIIIème siècles, ed. M. L. Roche (Paris: FIUC, 2004), 194–96.
[6] São famosas as controvérsias entre o dominicano Domingo Bañez e o jesuíta Luis de Molina na Espanha, e entre Miguel Baio e o jesuíta Leonardus Lessius nos Países Baixos Espanhois. Esse debate levou à criação da Congregatio de auxiliis por Clemente VIII em 1597; em 1607, porém, Paulo V interveio. Molina registrou que o papa “emitiu um decreto proibindo os antagonistas [dominicanos e jesuítas] de qualificar as visões uns dos outros como heréticas ou mesmo temerárias, no jargão técnico da censura teológica. A Santa Sé resolveria a questão, continuou o Papa, em momento oportuno. É um tributo à prudência de Paulo V e de seu sucessor que este momento ‘oportuno’ ainda não chegou”. Luis de Molina, On Divine Foreknowledge (parte IV da Concordia), trad. A. J. Freddoso (Ithaca, NY: Cornell University Press, 1988), viii.
[7] Para uma breve introdução sobre o autor, ver Marvin R. O’Connell, ‘Stapleton, Thomas (1535–1598)’, Oxford Dictionary of National Biography, Oxford University Press, ed. online, 2004–2016; para mais informações biográficas, ver Gordon Albion, ‘An English Professor at Leuven: Thomas Stapleton (1535–1598)’, in Miscellanea historica in honorem Alberti De Meyer: Universitatis Catholicae in Oppido Lovaniensi iam annos XXV professoris, Recueil de travaux d’histoire et philologie, 22–23 (Leuven: Presses universitaires de Leuven, 1946), vol. 2, 895–913; Marvin R. O’Connell, Thomas Stapleton and the Counter Reformation (New Haven-London: Yale University Press, 1964); Michael Richards, ‘Thomas Stapleton’, Journal of Ecclesiastical History 18, no. 2 (1967): 187–99; François, ‘Augustinus’ – este artigo deve ser complementado com Wim François, ‘Tomás Stapleton (1535–1598): La caída de Adán y sus consecuencias para la onne posteridad ¿Exégesis agustiniana o criptojesuita?’, Augustinus 55 (2010): 129–40.
[8] Albion, ‘Thomas Stapleton’, 897. Sobre a relação acadêmica entre Louvain e a Inglaterra, especialmente Oxford, ver, entre outros, C. J. Fordyce, ‘Louvain and Oxford in the Sixteenth Century’, Revue belge de philologie et d’histoire 12 (1933): 645–52.
[9] Ver François, ‘Augustinus’, 397; e François, ‘Tomás Stapleton’, 129–40. Neste artigo, demonstrarei a inspiração jesuítica nas obras de Stapleton, seguindo a sugestão de François na conclusão de seu último artigo.
[10] Albion, ‘Thomas Stapleton’, 901.
[11] François, ‘Tomás Stapleton’, 131
[12] O’Connell, Thomas Stapleton, 28.
[13] A data é objeto de debate. Segundo Albion, Stapleton iniciou o noviciado em 1582 (ver Albion, ‘Thomas Stapleton’, 904). Porém, conforme O’Connell, ele “apresentou-se aos jesuítas em Douai” em 1585 (O’Connell, Thomas Stapleton, 41). François segue Albion, pois Stapleton começou o noviciado após 11 anos lecionando teologia controversa, e em 1582 Wilhelmus Estius o substituiu como professor de teologia controversa na Universidade de Douai (ver Wim François, ‘Thomas Stapleton, controversetheoloog tussen Engeland en de Nederlanden’, in Religie, hervorming en controverse in de zestiende-eeuwse Nederlanden, eds. Violet Soen e Paul Knevel (Herzogenrath: Shaker Publishing, 2013), 50, n. 45). Sobre o período de Stapleton no seminário jesuíta, só sabemos o que ele mesmo registrou no Compendium verum, et brevem: “Experior vires annis de more duobus/Hisque fere expletis oneri succumbo” (Thomas Stapleton, Compendium verum, et brevem, in Opera omnia, 4 vols (Paris: Foüet, 1620), vol. 1, iij) – “Sinto minhas forças por dois anos, conforme o costume/Quase ao final, sucumbo ao fardo”.
[14] Sobre o ambiente agostiniano em Louvain, ver Mathijs Lamberigts e Ledo Kenis, eds. L’Augustinisme à l’ancienne Faculté de théologie de Leuven (Leuven: Leuven University Press e Peeters, 1994). Sobre John Hessels, em particular, ver Wim François, ‘Augustinian Bible Exegesis in Leuven: The Case of John Hessels’ Commentary on 1 John 2,15–18a’, Augustiniana 57 (2007): 399–424.
[15] Sobre Leonardus Lessius, ver, por exemplo, E. J. Van Eijl, ‘La controverse louvaniste autour de la grâce et du libre arbitre à la fin du 16ième siècle’, in L’Augustinisme à l’ancienne faculté de théologie de Leuven, eds. Lamberigts e Kenis, 207–82.
[16] Cf. Van Eijl, ‘La controverse louvaniste’, 234, n. 71.
[17] O’Connell, Thomas Stapleton, 42–44.
[18] Ao buscar todas as ocorrências de “Bez*” na Digital Library of Catholic Reformation, o nome de Teodoro Beza aparece 74 vezes nos Antidota evangelica in Evangelium Matthaei de Stapleton. Em particular, Stapleton refere-se principalmente à Confessio Christianae fidei (1560) e às Annotationes maiores in Novum Testamentum (1594) de Beza. Quanto a Calvino, seu nome surge 1096 vezes (considerando todas as flexões). Stapleton cita principalmente as Institutiones christianae religionis (1559) e os Commentarii in harmoniam ex tribus Evangelistis compositam (1563).
[19] Mesmo em seu Compendium, Stapleton menciona Calvino e Beza, declarando o objetivo dos Antidota: “Antidota aggredior, diris aptanda venenis,/Quae passim haeretici scriptis sparsere sacratis,/Impius imprimis Calvinus, Bezaque posthinc,/Quinque tomos scripsi” (Stapleton, Compendium verum, et brevem, iij) – “Inicio os Antídotos, preparados para venenos mortíferos,/Que os hereges espalharam profusamente em escritos sagrados,/Primeiro o ímpio Calvino, depois Beza,/Escrevi cinco tomos”. Além disso, Stapleton refere-se a Wolfgang Musculus (1497–1563), “De coena Domini” e “De magistratibus” em Loci communes theologiae sacrae scripturae (1560), e a Martin Chemnitz (1522–86), Examen concilii tridentini (1565). Ele apenas menciona Martinho Lutero (1483–1546), Filipe Melanchthon (1497–1560) e Ulrich Zwinglio (1483–1531) nominalmente.
[20] Por exemplo, Stapleton relatou: “Hinc erexerunt Calvinistae per totam Galliam, & in Hollandia, sicut & Anabaptistae […] Puritani in Anglia Calvini sententiam sequuntur” (Thomas Stapleton, Antidota evangelica in Evangelium Matthaei [18:17–18] (Paris: Foüet, 1620), 55) – “Daí os calvinistas se ergueram por toda a França e na Holanda, assim como os anabatistas […] Os puritanos na Inglaterra seguem os ensinamentos de Calvino”.
[21] Sobre a primazia de Agostinho em Louvain, ver Lamberigts e Kenis, L’augustinisme. Além disso, pouco após a controvérsia de auxiliis, Cornélio Jansênio (1585–1638), bispo de Ypres, elaborou uma teologia centrada em Agostinho, exposta em uma obra intitulada, não por acaso, Augustinus — publicada postumamente em 1640 e que se tornou a base do jansenismo. Sobre o jansenismo, ver, por exemplo, Dominik Burhard e Tanja Thanner, eds., Der Jansenismus - eine ‘katholische Häresie’? Das Ringen um Gnade, Rechtfertigung und die Autorität Augustins in der frühen Neuzeit, Reformationsgeschichtliche Studien und Texte, 159 (Münster: Aschendorff, 2014).
[22] “Haec de voce & verbo Evangelii, eiusque vero sensu contra pestilentissimam haereticorum depravationem praemittere operae precium duximus, ut quis si Evangelii finis ac scopus Lector orthodoxus intelligat” (Stapleton, Antidota in Evangelium Matthaei, 4) – “Julgamos útil apresentar estas considerações sobre a voz e a palavra do Evangelho, e seu verdadeiro sentido, contra a pestilenta depravação dos hereges, para que o leitor ortodoxo compreenda o fim e o propósito do Evangelho”.
[23] Luis de Molina, De liberi arbitrii cum gratiae donis, divina praescientia, praedestinatione et reprobatione Concordia (Lisboa: António Ribeiro, 1588). Sobre Luis de Molina e seu pensamento, ver também M. Kaufmann e A. Aichele, orgs., A Companion to Molina (Leiden: Brill, 2014). Para a tradução em inglês, ver Molina, On Divine Foreknowledge. A tradução de Freddoso abrange as disputas 47–53 da Concordia de Molina, pp. 196–271.
[24] John Calvin, Institutes of the Christian Religion, 2 vols, ed. John McNeill, trad. Ford Lewis Battles, Library of Christian Classics, 20–21 (Filadélfia: Westminster Press; Londres: S.C.M. Press, 1960), III.21.5.
[25] “Deus, por seu conselho eterno e imutável, determinou de uma vez por todas aqueles que um dia lhe aprouve admitir à salvação e aqueles que, por outro lado, lhe aprouve condenar à destruição. Sustento que este conselho, quanto aos eleitos, funda-se em sua livre misericórdia, sem qualquer consideração ao mérito humano, enquanto aqueles que ele destina à destruição são excluídos do acesso à vida por um juízo justo e irrepreensível, embora incompreensível”. John Calvin, Institutes, III.21.7.
[26] François, ‘Augustinus’, 385–386.
[27] François refere-se à análise de Stapleton de Romanos 5:12; 5:18–19; 6:12; 6:20; 7:7–13; 10:5–8. Como veremos adiante, nos Antidota apostolica in epistolam B. Pauli ad Romanos, ao comentar Romanos 11:29, Stapleton cita Molina diretamente, referindo-se à sua teoria do conhecimento médio.
[28] François, ‘Tomás Stapleton’, 140.
[29] Outro trecho relevante nos Antidota é o comentário sobre Mateus 23:37, onde Stapleton novamente cita Molina, com paralelo no Promptuarium Catholicum super Evangelium in festis sanctorum, que menciona o jesuíta em uma nota marginal. No entanto, adiarei a análise do comentário de Stapleton sobre Mateus 23:37, tanto nos Antidota quanto no Promptuarium, para uma publicação futura. Sobre Mateus 11:21, Stapleton não analisa essa passagem em seus Promptuaria, exceto por uma breve menção no Promptuarium morale in Evangelia dominicalia, pars hyemalis (Paris: Fouet, 1620), p. 83. De qualquer forma, este último caso não oferece elementos relevantes para este estudo.
[30] Stapleton, Antidota in Evangelium Matthaei [Mateus 11:21], 31. Ao comentar este versículo, Stapleton não menciona as Institutas de Calvino, mas refere-se à Harmonia.
[31] Cf. John Calvin, A Harmony of the Gospels Matthew, Mark and Luke [Mateus 11:21], eds. D. W. Torrance e T. F. Torrance, trad. A. W. Morrison (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1979), vol. 2, 15–16. Sobre o uso da expressão humano more e fontes adicionais, ver, por exemplo, o capítulo Accommodatio Dei de Jon Balserak, in Herman J. Selderhuis, ed., The Calvin Handbook (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 2009), 372–77, esp. 372–73.
[32] Stapleton, Antidota in Evangelium Matthaei [11:21], 32.
[33] Agostinho, On the Predestination of Saints, in Four Anti-Pelagian Writings, trad. J. A. Mourant (Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1992), p. 249.
[34] “O conhecimento divino das coisas que ainda são contingentes e futuras no tempo não possui, propriamente falando, o caráter de conhecimento de visão [scientia visionis] até que essas coisas existam efetivamente no tempo; antes disso, trata-se de um conhecimento de simples inteligência [scientia simplicis intelligentiae], pois seus objetos ainda não existem. Mas, como a duração própria desse conhecimento é a eternidade, e porque na eternidade isso coexiste com o tempo futuro, essas coisas acabarão por se tornar presentes. Assim, o conhecimento divino pode simplesmente ser chamado de conhecimento de visão em relação a tudo que existirá em qualquer intervalo temporal”. Molina, On Divine Foreknowledge, q. 14, ar. 13, d. 49, p. 127. Itálicos no texto original. Tomás de Aquino já havia tratado da scientia visionis e scientia simplicis intelligentiae (cf. Comentário às Sentenças I, d. 39, q. 1, art. 2), mas não introduziu o conceito de conhecimento médio (scientia media), desenvolvido por Molina e no qual Stapleton se baseia, como demonstrarei nas páginas seguintes. No trecho dos Antidota aqui analisado, Stapleton menciona Tomás apenas uma vez, enquanto cita Molina repetidamente.
[35] Boécio, The Consolation of Philosophy, trad. D. R. Slavitt (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2008), 5.6.9–11, p. 169. A ideia calvinista de eternidade, conforme expressa na definição de presciência mencionada acima, é a mesma articulada por Boécio.
[36] Molina, On Divine Foreknowledge, q. 14, ar. 13, d. 49, pp. 125–126.
[37] “Assim, enquanto a plena força do livre-arbítrio criado é preservada, e enquanto a contingência das coisas permanece intacta, como se não houvesse presciência em Deus, Deus conhece os contingentes futuros com absoluta certeza—não, certamente, com uma certeza que emana do objeto (que é em si contingente e capaz de ser diferente), mas com uma certeza que flui da profundidade e da perfeição infinita e ilimitada do conhecedor, que em Si mesmo conhece com certeza um objeto que, por si só, é incerto e enganoso”. Molina, On Divine Foreknowledge, q. 14, ar. 13, d. 51, p. 157. [Itálicos no texto original.]
[38] O filósofo italiano Piero Martinetti definiu o conhecimento médio como “una specie di divinazione misteriosa” [uma espécie de adivinhação misteriosa]. Ver Piero Martinetti, La libertà (Milano: Libreria Editrice Lombarda, 1928), p. 48. Embora este livro seja antigo, o autor explica de forma clara e concisa a teoria molinista da scientia media. Para literatura em inglês e atualizada sobre o tema, ver Juan Cruz Cruz, ‘Predestination as Transcendent Theology: Molina and the first Molinism’, in A Companion to Luis de Molina, eds. M. Kaufmann e A. Aichele (Leiden: Brill, 2014), p. 102, n. 42. Ver também William Craig, Divine Foreknowledge and Future Contingents from Aristotle to Suárez (Leiden: Brill, 1998); Richard Gaskin, ‘Conditionals of Freedom and Middle Knowledge’, The Philosophical Quarterly 43 (1993): 412–30; e o capítulo sobre o conhecimento médio escrito por Freddoso em Molina, On Divine Foreknowledge, pp. 46–61. Além disso, permanece relevante Xavier-Marie Le Bachelet, Prédestination et grâce efficace: controverses dans la Compagnie de Jésus au temps d’Aquaviva 1610 - 1613: histoire et documents inédits (Leuven: Leuven Museum Lessianum, 1931).
[39] Ver Molina, On Divine Foreknowledge, p. 47.
[40] “Talvez alguém pergunte se esse conhecimento médio deve ser chamado de livre ou natural. A isso deve-se responder, primeiro, que tal conhecimento não pode ser chamado de livre, tanto por ser anterior a qualquer ato livre da vontade divina quanto porque não estava ao alcance de Deus conhecer por meio dele algo diferente do que de fato conheceu. Segundo, tampouco se deve dizer que esse conhecimento é natural no sentido de ser tão inato a Deus que Ele não poderia ter conhecido o oposto do que conhece por meio dele”. Molina, On Divine Foreknowledge, q. 14, ar. 13, d. 52, p. 168. [Itálicos no original.]
[41] Molina, On Divine Foreknowledge, p. 47.
[42] Ver Gaskin, ‘Conditionals of Freedom and Middle Knowledge’, 412–13.
[43] Thomas Stapleton, Antidota apostolica in epistolam ad Romanos [Romanos 11:29] (Antuérpia, 1595), p. 701.
[44] Stapleton, Antidota in Evangelium Matthaei [Mt. 11:21], p. 32.
[45] Molina referia-se a Agostinho, In Evangelium Ioannis tractatus centum viginti quatuor, 53, 9, in CCSL 36, p. 456.
[46] “Tertium ex hoc loco documentum, quod cum aequali Dei auxilio alius interdum convertitur, alius non convertitur: de quo vide eundem q & art. eisdem, disput. 12. Quae enim auxilia gratiae apud Iudaeos istos non valuerunt, eadem apud Tyrios & Sidonios valitura fuisse Christus affirmat”. Stapleton, Antidota in Evangelium Matthaei [11:21], p. 32. Cf. Molina, Concordia, q. 14, ar. 13, d. 12, p. 38.
[47] Cf. Molina, Concordia, q. 14, ar. 13, d. 12, pp. 37–40.
[48] Cf. Molina, Concordia, q. 14, ar. 13, d. 12, p. 40.
[49] “Quartum documentum, quòd inter auxilia gratiae, quibus ad credendum homo excitatur, miracula veluti suasiones externae computantur. Quod etiam ex oratione Apostolorum Act. 4. & ex effectu prophetandi quem Paulus describit 1. Cor. 14. colligi potest. Vide eundem Molinam q. & art. eisdem, disput. 38”. Stapleton, Antidota in Evangelium Matthaei [Mateus 11:21], p. 31.
[50] “Quintum documentum, quòd haec & alia auxilia gratiae specialia Deus non confert pro ratione usus liberi arbitrii praevisi aut futuri, nec ad illos omnes, Evangelii praedicatores misit quos ad fidem convertendos praevidit, sed salutis media pro suo solo beneplacito disponit: quod idem ex his verbis docet Molina q. 23. art. 4. & 5. disp. 1. membro 4. & S. Augustinus in libro de dono perseverantiae. cap. 9.”. Stapleton, Antidota in Evangelium Matthaei [Mateus 11:21], p. 32. Cf.: “Quarè licèt Deus dona sua gratiae praevenientis, excitantis, & cooperantis ad accessum ad Christum, non distribuat pro qualitate usus liberi arbitrii & cooperationis adulti praevisae, sed pro sua tantùm voluntate”. Molina, Concordia, q. 14, ar. 13, d. 12, p. 40. Cf. também Molina, Concordia, q. 23, ar. 4 & 5, d. 1, m. 4, p. 321. Neste caso, Molina não cita o De dono perseverantiae de Agostinho, embora tenha se referido ao bispo de Hipona em outras passagens, como De praedestinatione sanctorum, 14.26, PL 44, col. 979.
[51] Cf. Agostinho, On the Gift of Perseverance, in Four Anti-Pelagian Writings, pp. 286, 289–290.
[52] “Sextum documentum, quòd ex loco convincitur certa futurorum etiam liberè contingentium in Deo providentia, & electorum quidem praedestinatio atque electio gratuita, reproborum verò reiectio iusta: quod in eodem vide Molinam q. 14. art. 13. disput. 49.”. Stapleton, Antidota in Evangelium Matthaei [11:21], p. 32.
[53] Molina, On Divine Foreknowledge, q. 14, ar. 13, d. 49, pp. 121–122.
[54] Ver, por exemplo, Martinetti, La libertà, p. 49; Le Bachelet, Prédestination, p. 25; Cruz, ‘Predestination’, p. 104.
[55] Ao buscar “per propria merita” na Digital Library of the Catholic Reformation, essa expressão ocorre apenas dez vezes na Concordia de Molina
[56] “Simul observa, me non dixisse, adultos praedestinatos esse propter propria merita, sed per propria merita: illud enim esset falsum; hoc autem est verum”. Molina, Concordia, q. 23, ar. 4 & 5, d. 1, m. 9, p. 350. Cruz, como afirma, baseou sua análise em Le Bachelet, Prédestination.
[57] Propter, com acusativo, introduz um complemento de causa externa: neste caso, os méritos humanos seriam a causa da decisão divina.
[58] “totus effectus, totaque actio, totalitate ut vocant effectus, & est à Deo, & ab arbitrio nostro, tanquam à duabus partibus unius integrae causae, tam actionis quàm effectus”. Molina, Concordia, q. 14, ar. 13, d. 12, p. 42. Ver também Martinetti, La libertà, p. 49.
[59] “Dio relativamente alla predestinazione non ha potuto non tenere conto dell’uso del libero arbitrio. Non si può dire che Dio abbia distribuito la grazia in proporzione della buona volontà: ma non si può nemmeno dire che Dio non ne abbia tenuto conto” (Martinetti, La libertà, pp. 50–51) — “Deus, em relação à predestinação, não pôde deixar de considerar o uso do livre-arbítrio. Não se pode dizer que Deus distribuiu a graça em proporção à boa vontade, mas também não se pode dizer que Ele não a tenha considerado”
[60] “Postremò documentum, quòd isti Tyrii & Sidonii revera fuissent convertendi (ut Christus disertè dicit) si virtutes ibi factae fuissent, nec propter defectum efficacis gratiae (quae per illa miracula fuisset efficax propter liberi arbitrii consensum quem illa miracula cum auxiliis gratiae indubiè elicuissent, ut Christus docet) sed propter defectum miraculorum, & aliorum mediorum, quae iustè Deus illis subtraxit; alia tamen multa illis faciens quae eos promovebant ad salutem (ait in hunc locum Corn. Iansenius) non fuisse conversos: de quo etiam vide Molinam q. & art. citatis disput. 38. pag. 239.” É interessante notar que, nesta passagem, Stapleton refere-se não apenas a Molina, mas também ao exegeta bíblico de Louvain Cornélio Jansênio (o Velho), bispo de Ypres — ainda que entre parênteses — para confirmar a ideia de Molina sobre os diferentes auxílios concedidos por Deus. Jansênio ensinou teologia na faculdade de teologia de Louvain (1562–64/68) quando Thomas Stapleton era um jovem estudante lá. Seu agostinianismo moderado contrastava com o de seus colegas Michel De Bay e John Hessels. No entanto, as referências a Jansênio (e até a Agostinho) não indicam um desenvolvimento original da teoria de Molina por Stapleton; de fato, o espanhol também citou Jansênio e Agostinho em passagens que Stapleton claramente leu, resumindo o pensamento de Molina com as mesmas fontes. Ver, por exemplo, Stapleton, Antidota in Evangelium Matthaei [11:21], pp. 32–33, e Molina, Concordia, q. 14, ar. 13, d. 39, p. 208. Consulte a obra de Cornélio Jansênio Commentariorum in suam concordiam, ac totam historiam evangelicam partes IIII (Lyon: Landry, 1597 [Louvain: 1572]), II, pp. 358–359.
[61] “praedestinatio non est propter merita praevisa, ita neque reprobatio, sed in solam liberam voluntatem Dei ea reducenda est” (Molina, Concordia, q. 23, ar. 4 & 5, d. 4, p. 309). É importante notar que meritum em latim é uma vox media (termo ambíguo), significando não apenas “mérito”, mas também “demérito”. Assim, Deus age após ver o que os homens obteriam — salvação ou condenação —, mas decreta apenas com base em Sua própria vontade.
[62] Martinetti, La libertà, p. 50 (minha tradução).
[63] Calvino, Institutes, III.21.5.