Tiranicídio e Democracia

Tiranicídio e Democracia

Texto de introdução (Hélio Sena):
O texto a seguir é retirado dos Ensaios de Teoria Política do jurista espanhol Álvaro D'ors, na década de 70, em um contexto onde a teoria jurídica dos moralistas modernos tem sido cada vez mais influente no desenvolvimento do Estado Liberal democrático de direito. Segundo o autor, tal teoria tem se tornado benéfica para o sistema, partindo-se do pressuposto de que a participação ativa na política, usando-se dos meios legais para fazer uma renovação estrutural do governo, tem se demonstrado inútil, uma vez que o sistema é capaz de controlar a opinião pública a seu favor, evitando mudanças que prejudiquem os seus interesses. Álvaro apresenta a doutrina antiga da Igreja Católica para situações de despacho ao poder ilegítimo, nomeada de doutrina do Tiranicídio. Esta teoria, que complementa os ensinamentos da Teologia Política de São Paulo, foi praticada ao longo das eras monárquicas para destituir ou desobedecer déspotas que contrariavam a lei de Deus, sem buscar negar a doutrina paulina. Entretanto, embora esse preceito tenha sido um dos melhores que o pensamento católico nos ofereceu, a sua aplicabilidade nos contextos atuais tem sido difícil, uma vez que as democracias não reconhecem a distinção entre legitimidade e legalidade (Tese na qual D'ors deve ao filósofo e teórico político alemão, e também seu amigo pessoal, Carl Schmitt), tornando a tirania pessoal em uma tirania burocrática. O autor busca uma forma de renovar a doutrina do tiranicídio, apontando que a resistência ao governante despótico não deve ser feita com o derramamento de sangue do mesmo, já que, embora tenha sido uma forma efetiva de resolver, tradicionalmente, a exoneração do poder ilegítimo, tal estratégia se tornou obsoleta no contexto democrático. O que deve ser feito, então? O autor apresenta novas estratégias que podem ser utilizadas para a nossa época, pois "decapitar o tirano" no estilo medieval tem trazido resultados completamente insatisfatórios na modernidade, já que a máquina burocrática não governa da forma como seus antepassados governavam. Para resistir ao sistema, deve-se usar os aparatos do próprio sistema para sabotá-lo, e portanto assim, desarma-lo, como o autor lista algumas possibilidades que podem imobilizar sistematicamente um governo tirânico. 

Tiranicídio e Demoracracia

por Álvaro D'Ors

 

1. A doutrina tradicional afirma o dever, por parte dos súditos, de obedecer ao poder constituído. Por outro lado, a doutrina dos moralistas modernos afirma outro dever dos súditos: defender ativamente o bem comum na luta política do Estado. Esses dois deveres são considerados compatíveis com base na suposição de que essa luta política pode ser realizada pela dialética jurídica das instituições encarregadas de influenciar a opinião pública, como os meios de comunicação, as associações, os atos de propaganda política e os meios legalmente previstos para a realização da eleição dos governantes, ou seja, o voto. Partindo desse pressuposto, a luta para mudar legalmente o governo constituído é compatível com a obediência a ele, uma vez que a obediência não impede a ação para mudar o atual governo: você obedece ao atual governante, mas pode, ao mesmo tempo, lutar para destituí-lo. É compreensível que os moralistas de hoje, que geralmente partem deste pressuposto idealizador, não sintam a necessidade de mudar sua doutrina; quando alguém que protesta contra o atual governo vai até eles, costumam dizer: "não se sinta à vontade para fazer tudo o que for legalmente possível para mudar, de acordo com a sua consciência, o atual governo, mas sempre 'de acordo com as leis dadas por este mesmo governo'” Na verdade, estes moralistas geralmente partem do pressuposto complementar de que todas as leis são justas e obrigatórias em consciência; pois a lei injusta não é lei, mas não se concebe que a declaração desta injustiça depende de um determinado critério.

Na realidade, estas suposições dos nossos moralistas não são reais hoje, mas utópicas. Isso ocorre porque os governos têm recursos suficientes através do controle da mídia, suborno, persuasão, conspiração com patrões, ajuda internacional, mentiras, coerção e a mesma manipulação do escrutínio, etc., para evitar a influência de sujeitos insatisfeitos, a tal ponto que a luta jurídica é inútil e muitas vezes ridícula, precisamente porque parece inconsciente de sua própria inutilidade.

2. Não há outro recurso senão lutar ilegalmente, o que envolve desobediência ao governo legalmente constituído. Os dois deveres enunciados no início – o tradicional da obediência e o novo da participação ativa – tornam-se, assim, incompatíveis. Esta incompatibilidade é explicável, no entanto, se levarmos em conta que ambos os deveres não foram declarados simultânea e conjuntamente, mas que o segundo veio a se sobrepor ao primeiro muitos séculos depois. São Paulo (Rom. 13, 1-7 e Tit. 3, 1) falou do dever de obediência, mesmo a um soberano tão despótico como o imperador Nero (que acabou matando-o), porque São Paulo não impôs ao cristão o dever de influenciar politicamente o governo: nenhum cristão da época se sentiu obrigado a fazer o que pudesse (nem mesmo legalmente possível, o que foi praticamente nada) para tirar Nero de seu trono. Além disso, era evidente que, se naquela época o poder de Nero tivesse sido submetido ao sufrágio democrático, a sua vitória teria sido esmagadora; e a aceitação popular de seu massacre de cristãos poderia ser uma indicação clara de uma pesquisa de opinião. Para São Paulo, o cristão deve suportar resignadamente o governante despótico, e devemos rezar por ele: mesmo sendo despótico, ele representa, de certa forma, o caminho do poder divino para fazer justiça.

3. Mais tarde, a doutrina católica quis procurar um complemento a esta doutrina paulina através do recurso da eliminação violenta do poder tirânico. Assim, alguns teólogos defenderam a legalidade do tiranicídio, significando “tirano” como o governante despótico, contrário à lei de Deus. Numa era de governos monárquicos, esta solução era bastante prática, uma vez que se considerou que o rei, ao se tornar um tirano, havia perdido sua legitimidade e, consequentemente, não deveria ser obedecido, pois não era um poder legítimo. Então, uma vez morto o tirano, eram grandes as probabilidades de que o seu castigado sucessor não perdesse novamente a sua legitimidade original através de abusos despóticos. A doutrina da tirania era, no entanto, um tanto perigosa devido à própria indeterminação do conceito de tirania, isto é, devido ao risco de que o excesso despótico possa ser subjetivamente apreciado, já que não havia nenhuma instituição útil para declarar de forma confiável quando se incorria em "tirania". Esse grande risco foi o que impediu que a doutrina do tiranicídio legal se tornasse geral. Tinha sido difundida esta doutrina na Espanha, sob os Habsburgos, quando não se podia suspeitar mais se aqueles reis cristãos poderiam se tornar tiranos, mas então foi proibida sob os Bourbons, uma dinastia francesa, que não tinha muito prestígio cristão. Na verdade, foi Carlos III, um rei não católico, quem proibiu o ensino nas universidades espanholas da perigosa doutrina do tiranicídio. Os Bourbons reservaram-se o direito de ser despóticos.

A doutrina do tiranicídio legal é a melhor que o pensamento católico concebeu ao longo dos séculos, completando a doutrina paulina da obediência, sem negá-la. Com efeito, foi a distinção entre legalidade e legitimidade que permitiu privar, do respeito devido aos súditos, os reis que perderam a legitimidade por abuso tirânico. Para esses efeitos, foi feita uma distinção entre a legitimidade de origem – a de sangue, numa monarquia dinástica – e a chamada “legitimidade de exercício”. Esta última não foi positivamente facilitadora como a original, mas, na verdade, teve o efeito negativo de não distorcer a original através do abuso despótico de poder. Esta foi adquirida através da legitimidade de origem, mas pode ser perdida devido à ilegitimidade no exercício.

No entanto, a doutrina do tiranicídio legal, nascida num contexto histórico monárquico, tem difícil aplicação no contexto democrático dos nossos dias, uma vez que, numa abordagem puramente democrática, não se pode falar de uma legitimidade diferente da legalidade. Assim, desde que respeitada a legalidade formal, o poder deve ser respeitado, segundo a doutrina paulina, mesmo que seja materialmente tirânico, por exemplo, porque as mesmas leis permitem isso, o que não é difícil, pois as leis são, na verdade, feitas pelo próprio governo: todo governo pode ser facilmente legalizado, já que é ele quem faz as leis.

4. Vale pensar, portanto, na possibilidade de adaptação da antiga doutrina católica do tiranicídio às circunstâncias do Estado democrático moderno. A primeira coisa que fica bastante clara é que, justamente pela despersonalização inerente à democracia, o recurso de matar o governante não é mais eficaz, pois, normalmente, são grupos ou partidos aqueles que podem abusar do poder e não necessariamente homens singulares, já que o governante democrático é, pela sua própria natureza, uma entidade fungível. Além do mais, a morte do governante no poder, em vez de retificar o grupo que o manteve no poder, pode agravá-lo e, claro, provocar a adoção de meios de maior segurança para evitar a repetição do ataque. Em suma, salvo casos muito excepcionais, a morte da pessoa de um governante hoje não põe fim ao abuso de poder, mas agrava-o.

Dir-se-ia, no entanto, que, tal como o ponto fraco da tirania pessoal estava na vulnerabilidade do trono, o ponto fraco da democracia é a necessidade de um grande aparato técnico eficaz. Assim, o ataque à democracia despótica pode ser procurado, melhor do que no tiranicídio, na obstrução da máquina burocrática, na sabotagem contínua, mesmo que seja em coisas aparentemente insignificantes.

O funcionamento da máquina é tal que um grão de areia na burocracia é suficiente para deixar os responsáveis por ela desconfortáveis, e uma ação semelhante, massivamente multiplicada, pode conseguir o deslocamento do grupo tirânico. Além disso, como tal tipo de sabotagem, para ser eficaz, deve ser massivo; o seu sucesso provaria conclusivamente que tal governo não teve a aprovação dos seus súbditos. Porque seria inútil poder exibir uma contagem eleitoral altamente favorável se a realidade posterior demonstrasse que esses mesmos eleitores favoráveis persistiram em um enfraquecimento sistemático e eficaz da máquina estatal.

5. Um dos campos em que esta luta cidadã contra o despotismo democrático pode ter os melhores efeitos é o do erário público, ou seja, a subversão fiscal. Contra violações fiscais isoladas, ainda há uma reação efetiva do governo, mas, se em determinado momento houver um consenso suficientemente geral sobre a subversão fiscal, o incumprimento e o aumento maciço das taxas fiscais deixam o governo desarmado, pois ele pode perder os meios para organizar até mesmo a repressão à fraude fiscal. Além disso, a natureza humana está sempre propensa a evitar o empobrecimento desnecessário; a propaganda da fraude fiscal é provável que encontre sempre seguidores fieis. A isso deve ser acrescentada a grande vantagem da antiga e benéfica teoria dos antigos moralistas, quais as leis tributárias são meras poenalis, ou seja, não obrigam em consciência, e muito menos obrigam quando a consciência os rejeita como injustos. Na verdade, a melhor forma de provar que a legislação fiscal parece justo para o povo está no seu cumprimento voluntário. O consenso dos partidos dominantes no momento da aprovação das leis fiscais não é tão confiável quanto a renúncia popular de fraude fiscal, apesar da consciência de que tais leis, por si só, não são moralmente obrigatórias.

Naturalmente, o campo da subversão fiscal é especialmente importante, mas não é o único. A prática subversiva pode revelar, a cada momento, os pontos mais fracos da máquina burocrática estatal. O uso crescente de máquinas de computação dá ao governo enorme eficiência na administração, mas não devemos esquecer que o aperfeiçoamento técnico carrega a maior severidade da “emergência”, de modo que a sabotagem sistemática dos computadores oficiais pode imobilizar a ação governamental em disputa.

Se não nos resignarmos a manter puramente a doutrina paulina da obediência ao poder despótico, abolindo o que os moralistas modernos dizem sobre o dever e a moralidade da participação política, a doutrina católica deveria se esforçar para substituir a doutrina do tiranicídio legal, atualmente ineficaz, pela da sabotagem legal da máquina estatal, a única viável para produzir o deslocamento de um poder que abusa da legalidade estabelecida por ele mesmo.

6. Concluindo: embora a tirania fosse pessoal, o recurso de resistência poderia ser a morte do tirano. Porém, como a tirania é criada por uma máquina burocrática e muitas vezes simples, sem coração, a tirania só pode consistir em uma sabotagem massiva da máquina. É evidente que esta nova forma de resistência pode produzir consequências mais graves para o funcionamento da vida social, mas não deixa de ser uma consequência da mesma abordagem democrática. Por esta razão, a resistência deve ser enorme. Além disso, as guerras entre povos democráticos são muito mais dolorosas para a população civil do que as guerras de dois reis no passado, que foram duelos entre exércitos e não entre povos. O desgaste social–e os gastos públicos–da luta política num Estado democrático é incomparavelmente maior que as rivalidades nos corredores do Palácio. A democracia totaliza politicamente a coexistência e não pode deixar de agravar estas consequências adversas da vida política e da guerra.

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