Nota introdutória (Alta Linguagem)
Esta publicação faz parte de uma série de textos cuja publicação neste site começou no dia 30 de Setembro de 2024, e no qual a vida intelectual no Brasil em décadas passadas estava envolvida, são textos via inéditos de vários anos atrás publicados em jornais e revistas, pela primeira vez hoje publicados em mídia virtual.
Um bruxo que amava o som
Tribuna da Imprensa, 13 de Março. 1990.
Leandro Konder, especialista em feitiçarias germânicas (como diria Vitorino Nemésio), trouxe-nos, há pouco, a lembrança de um bruxo de fala alemã, o vienense Otto Maria Karpfen, integrado à vida cultural brasileira com o sobrenome mudado para Carpeaux. Se vivo fosse, esse bruxo estaria completando, sexta-feira passada, dia 9, noventa anos. Carpeaux era tão velho quanto o século.
Mas ainda nem tinha atingido a idade do “floruit”, (segundo os romanos) ou do “acmé”, (conforme os gregos) ou seja, os quarenta anos, quando tangido pela insânia nazista, depois de um estágio na Bélgica (Antuérpia), de onde escrevia para uma revista holandesa, Carpeaux e sua mulher Dona Helena desembarcaram no Brasil.
Com precisão, inteligência e ótimo estilo, Leandro Konder evocou para os leitores do BIS flagrantes vários, lances os mais diversos, montando uma imagem viva do velho e querido Otto--como o chamavam os íntimos--engastada, principalmente, no programa literário-jornalístico-político do Rio.
“Carpeaux amava também a música”--assinala Konder. Amava com ardor de especialista, podendo acompanhar a audição de qualquer obra pela leitura do respectivo texto. Deste amor, a consequência duradoura foi o livro “Uma nova história da música”, editada pela primeira vez em 1958 (Zahar), depois revista e aumentada em trabalho da José Olímpio (1967).
Livro para interessados em música, mais do que para músicas, propriamente. Por isso mesmo, quanta irritação provocou. Carpeaux tinha facilidade para fazer inimigos. Tão tenazes quanto os amigos. E em cima da “História da música” tomaram de uma lupa, uma lente de forte grau, e cataram falhas, enganos. Rosnando de triunfo, um dos inimigos sentenciou “um erro por página”.
Inveja, rancor incontido. De desencontrado mesmo, fora da realidade, pôde-se fixar o Choros n.º 5, “Alma Brasileira”, de Villa-Lobos, que é para piano solo, registrado como para piano e orquestra. Também entrou a morte de Rachmaninoff por suicídio, quando então as biografias mais correntes informavam o contrário. Hoje já se acredita que o russo se matou mesmo. A personalidade de Fauré ficou em desacordo com o que dela diz Jankélévitch, mas é da forma como Carpeaux interpreta que o grande público aceita (compositor tradicionalista, acomodado).
Elegantemente, esquecendo os ataques, no prefácio da 2.ª edição Carpeaux agradeceu a todos os que os criticaram, nomeou-os com simpatia e deu-lhes conta que os tinha atendido. Uma nova história da música, agora isenta de desencontros gritantes, passou a ser assiduamente frequentada até por estudantes de conservatório.
Como dissemos acima, é uma obra que deixa de lado os tecnicismos íntimos das partituras e as coloca imersas na totalidade cultural em que foram escritas. Para especialistas, têm menor interesse. Para informação geral é excelente, inclusive quando o estudante de música precisa saber algo mais do que as análises harmônicas ou morfológicas que lhe ensinam.
Tendo tido convivência com Carpeaux, no velho “Correio da Manhã”, até hoje nos causa uma estranheza divertida seus cacoetes e manias musicais. Sibelius, o mestre da Finlândia, era objeto de constante gozação. Carpeaux garantia que “se este saxofonista da “Suômeia” (Finlândia, no original) deixasse de existir, falta alguma faria na música universal. Enesco, ia pouco além de um autor pitoresco. Sua “1.º Rapsódia Romena” era chatinha para chuchu.
Pintura, lembrou-nos também Leandro Konder, artes plásticas em geral, eram domínio de fácil trânsito para Carpeaux. Curiosamente (e cremos que isto o Leandro talvez ignore) o conservadorismo tomava aspectos reacionários, até extremos. Pintores como Marx Ernst, escultores como Sophie Tauber, Carpeaux os abominava. E não era brincadeira, não. Execrava-os sem piedade.
Perguntamos, certo dia: “Dr. Carpeaux, e Picasso?”
Resposta: --“E daí?”. Nem mesmo o gênio maior da arte moderna merecia-lhe consideração. Pintor para ele, era Oskar Kokoschka. Saiu deste estilo, tudo era falso e confuso. Surrealista, dadaísta, nada valiam.
Arte clássica--eis o domínio preferido de Carpeaux. Assegurou-nos certa vez quando perpetuamos pequeno artigo sobre o centenário de Heinrich Woelfflin: “Dantas, neste assunto eu sou quase um especialista. Estudei muito e muito arte clássica. Sou quase um especialista”.
Em literatura, Konder deteve-se com especial atenção, Carpeaux era um mestre. Por isso mesmo desencadeou torrentes de inimizades. Sua vasta “História da literatura ocidental”, foi estigmatizada como fruto de um “enciclopedismo ultrapassado”. Mas o fato é que ninguém na paróquia teve peito de realizar algo tão arrojado. Carpeaux vivia da casa para o trabalho. Dormia pouquíssimo. Estudava diariamente, mantinha correspondência incessante com centros culturais suíços e holandeses. Ninguém podia lhe fazer concorrência. Sem falar na base compósita, de corte nitidamente superior trazida do Velho Mundo. Sectário, sem dúvida, também em literatura, em cultura de modo geral. Bizâncio, para ele, era outro planeta. Reação exagerada ao orientalismo de autores germânicos do início do século passado, tais como Kreutzer, Gladish, Roth. Hoje sabe-se que nunca foi assim. Werner Jaeger, em seu último trabalho (uma conferência sobre o Cristianismo oriental) , sublinhou a importância para os europeus de gênios como São Gregório de Nissa, e mais diretamente Psellos, Plethon, Basarion, Máximo Planudes. “Bizâncio foi a grande educadora do Ocidente”, afirma Basílio Tatakis, convidado por Bréhier para escrever sobre a matéria na própria “História da filosofia” que o mestre francês publicou por volta de 1942 (a tradução espanhola tem um soberbo prefácio assinado por Ortega y Gasset).
Muito ainda teríamos para evocar a personalidade de Otto Maria Carpeaux. Leandro Konder já o fez, com maior capacidade. Só ajuntamos que o demônio, seu “Kako-dáimon” talvez, foi a política. Envolveu-se de corpo e alma na oposição aos excessos de 64. Contam que, apesar da dificuldade de falar, conseguiu dizer, nitidamente, a um militar que lhe pusera a mão no ombro: “Tire a mão de cima de mim. Já fui perseguido por uma ditadura desenvolvida, não vou ter medo de uma ditadura subdesenvolvida”.
Tudo Carpeaux abandonou, espiritualmente, a fim de combater a Revolução de 31 de março. Vivia cheio de raiva. Há quem afirme que isto o levou à morte. Foi enterrado num sábado de carnaval. Coisa de feiticeiro de fala alemã, já adaptado ao calor dos trópicos. Tal como evocou antes de nós, aqui no BIS, um especialista em bruxarias germânicas.