Ao filósofo cabe a renúncia de todas as certezas. Aqui não estou tentando fazer uma menção particular sem maiores significados ao exercício de Sócrates quando diz que nada sabe nem tampouco exaltando a forma de fazer filosofia de Descartes que define que sua metodologia será a dúvida.
Estou dizendo uma outra coisa. Estou dizendo que o que chamamos de certeza do ponto de vista da filosofia (geralmente tomada como um grau indubitável de crença) deve passar por um processo de reinterpretação para que se saiba o que os filósofos estão fazendo quando fazem filosofia. Abandono aqui a noção de certeza como sendo a da afirmação de que X ou Y é verdadeiro em si mesmo. Veja que não estou dizendo que a verdade não exista, mas que acredito que mesmo as mais altas crenças, aquelas que não ousamos questionar como a existência de um piso debaixo de nossos pés ou de Deus para um homem religioso, estão condicionadas pela nossa descrença nas suas alternativas e pelas dúvidas que surgem em virtude disso.
Clamo que o significado real de certeza reside na interpretação de que se está certo sobre algo quando se tem mais dúvidas sobre outro algo. Como libertário que sou, tenho mais dúvidas sobre o bem que o Estado pode fazer do que sobre seu mal. Como crítico do solipsismo (a crença de que eu sou a única pessoa que existo) tenho mais dúvidas sobre como eu poderia gerar determinadas coisas no tecido da minha mente, sobre como, por exemplo, poderia gerar uma beleza de tipo completamente diferente das que tinha visto até ali como a primeira vez que tive a visão da janela de um avião, ou sobre como poderia aprender qualquer coisa que seja, ou até mesmo ter a sensação de aprender. É nesse sentido dialético que penso eu ter certezas.
Ao filósofo cabe fazer perguntas que ainda não foram feitas. Ao filósofo cabe articular elementos e investigar a rede sem fim de conceitos que surgem ao se ver novos objetos ou a ver velhas coisas de novas formas, reponderando cada elemento em sua teia de crenças em seus trejeitos mais fundamentais, seja porque o tempo de antes já não é o tempo de agora, porque os objetos já não são mais os mesmos ou porque não se é mais o mesmo. Todas essas coisas interferem sobre o processo do pensar. Todas essas coisas criam aparências novas que precisam ser vistas e revistas para que se chegue num estágio melhor para com as coisas do mundo. A busca desse estágio, desse estado para com o mundo, é a busca filosófica por excelência.
Quando se questiona a integridade de um filósofo, está se colocando em xeque a própria atividade filosófica desse indivíduo. Assim, quando se chama um filósofo de mentiroso se está dizendo que ele descreve dúvidas que não estão realmente lá, que ele está colocando artificialmente na matéria ou que está suprimindo dúvidas que realmente existem. É essa a pior acusação sobre a atividade filosófica porque ela faz sucumbir a própria natureza da filosofia. Se a filosofia não advém de impressões, intuições e pensamentos autenticamente obtidos no processo de reflexão do objeto, então não há filosofia sendo feita, há outra coisa: sofismo, interesse de classe, esquizofrenia, chame como quiser, mas não se trata de verdadeira filosofia.
Da mesma forma, quando a academia retira determinadas questões da discussão ao decidir, por um processo de adesão impensada ao conjunto de crenças de certos grupos, que certa questão é boba demais para ser posta em debate porque o grupo dominante a trata como boba demais ou óbvia demais, o processo de discussão da verdade não está em curso e o que está se dando na realidade é o processo de criação de uma cultura intelectual que afasta qualquer perspectiva real de busca da verdade. É nesse sentido que a academia deve ser questionada e criticada, pelas perguntas que lá não tiveram lugar. Não em virtude da sua derrota concreta, mas em virtude de uma reação dos mais diversos grupos que expelem aquela pergunta como ilegítima sem a reflexão que lhe caberia.
Assim é com a cultura marxista. Assim é com a cultura positivista no direito brasileiro. Assim é com todos os conhecimentos que propõe uma superioridade inabalável e artificial sobre todos os outros e que decidem suprimir a mera pergunta. É pela possibilidade de absoluta constância e repetição que 2+2=4 assume o estado de ser verdadeiro. Não importa quantas vezes seja perguntado, o mundo não dirá 5 a não ser que se imponha que se diga 5.
Cabe ao filósofo justamente a tarefa inglória de não ter certezas, mas cabe a ele o prazer de desmontar uma pergunta ainda que momentaneamente, ainda que para ser colocada no lugar várias e várias vezes depois. É a diversão do filósofo ver diminuírem e aumentarem as perguntas, em parte porque agora se sabe como articular uma pergunta que não esteve antes ali, em parte por estar respondendo ou remodelando perguntas em outras maiores e criando descrições da realidade que respondem a mais perguntas, aquilo que chamamos de conceitos. Isso significa que é essa uma atividade inócua?
Se fosse o caso que se tratasse de uma atividade que tivesse que prestar contas às outras atividades, então ela seria evidentemente uma atividade profundamente restrita a fazer certas perguntas das quais se tirasse alguma expressividade em relação a ação moral ou que se tirasse certo nível de evidências para a prática científica. Não é o caso porque a atividade filosófica não pode ser provocada desde fora. É possível ler mil livros de filosofia sem que sequer um minuto de atividade filosófica seja verdadeiramente executado. Assim, as críticas que poderiam ser feitas aos departamentos de filosofia não encontram eco na atividade filosófica em si.
Porque a atividade filosófica é a que possibilita que todas as outras verdadeiras buscas pela verdade sejam feitas. Todo matemático está escolhendo qual será seu escopo, qual será seu objeto e qual a relação desses com a soma do reservatório de conhecimentos dessa área. Assim, fará filosofia para poder sequer se relacionar com o conhecimento presente e verdadeiro que está diante dele. Se fizer uma pergunta que não está lá, colocará todo seu empreendimento em risco. Se deixar de fazer uma pergunta que deveria estar lá, ficará aleijado seu empreendimento.
Isso se repete em cada área do conhecimento e a enriquece para se tornar uma verdadeira e específica busca pela verdade. Nesse sentido, muitas vezes na história tivemos mais filosofia sendo feita fora dos departamentos de filosofia do que dentro deles.
A acusação que costuma vir logo depois que termino de enunciar minha visão filosófica é a de que dou a filosofia a própria tarefa de questionar e isso suscita a típica indignação de meus colegas filósofos. Eles diriam que, de acordo com meu pensamento, quando um matemático acerta ele está fazendo filosofia e quando erra não o está. E diriam que se trata de uma forma muito conveniente de tratar a filosofia para alguém que vive da filosofia.
Mas, a tarefa que atribuo a filosofia nesse caso é outra. Trata-se de tarefa mais primária, mas não por isso menos essencial e que admite sim a possibilidade do erro. Trata-se de uma observação atenta que olha para os horizontes do seu objeto e questiona seus limites, suas relações e que seleciona as perguntas que melhor dizem respeito a esse questionamento, não é mera técnica, mas a técnica feita pelos melhores de seus segmentos, a técnica que observa ao menos de relance a totalidade de conhecimento criado pelos seus pares e se insere ali, adicionando conteúdo e sentido onde for preciso e reduzindo os exageros onde for necessário.
Se a filosofia for assim admitida passa assim a ser um requisito mesmo para a própria vida humana como a conhecemos, um repositório de significado, de aprendizado e de transformações em sentidos dos mais variados, as vezes para trás, as vezes para frente, mas sempre um avanço no sentido do aumento do horizonte da existência que se fez humano.