Nota introdutória (Alta Linguagem),
Neste texto, Gilberto Freyre trata de abordar uma polêmica atual mas já abordada na década de 1940! A questão do "esquerdismo" dentre hierarcas da Igreja Católica. A principal problemática do texto, todavia, é questão sobre se o cristianismo e, em especial, o catolicismo deve ter algum compromisso com as "direitas capitalistas" ou com a "esquerda" e, em que medida muitas acusações de "esquerdismo" a membros da hierarquia da Igreja velam um desejo por comprometer a religião à política, isso tudo com o plano de fundo de uma acusação de esquerdismo a um bispo brasileiro.
Vozes cristãs
O Jornal, 14 de Agosto. 1943.
Curioso o caso desse bispo de Maura, brasileiro invulgar que parece só ter encontrado até hoje na imprensa do seu país um defensor grande e intrépido do seu direito de ser bispo e ao mesmo tempo “esquerdista”, na pessoa do católico estrangeiro Georges Bernanos. É verdade que quando alguém tem por si Bernanos pode ter tranquilamente contra suas ideias e sentimentos, dezenas de publicistas e centenas de jornalistas menos profundos em questões de consciência—alguns, talvez, simples casos de maria-vai-com-as-outras.
A acusação de maior relevo que se faz ao bispo de Maura é a de que é pessoa meio-louca e um tanto vaidosa ou exibicionista. Mas ou muito me engano ou há dentro da igreja uma “loucura da Cruz”, nem sempre fácil de ser compreendida pelos que não são cristãos senão de ouvir missa e fazer aos domingos o pelo-sinal; pelo que só são católicos de vésperas—mesmo vagas—de eleições para deputados. Ou muito me engano ou são das Escrituras as palavras em que o Apóstolo Paulo se gloria da Cruz: de bater-se pela Cruz. Combinação de “loucura” e de “exibicionismo” que talvez seja a mesma que se encontra, guardadas as distâncias no bispo de Maura.
Também se tem insinuado à boca pequena que o mesmo bispo brasileiro está a serviço, não propriamente de Moscou, mas de políticos racionais, argutos, interessados em desprestigiar as altas autoridades da igreja em nosso país. Acusação que me parece igualmente precária nos seus fundamentos.
O que de verdade se pode alegar contra o bispo de Maura é o seu “esquerdismo”, a aceitarmos essa designação simplista em oposição à igualmente simplista de “direitismo”. Mas desde quando a igreja—a igreja de Cristo, em geral, e a Católica, em particular—se acha comprometida com as “direitas capitalistas”? Seu compromisso é com os direitos da alma, da pessoa humana, do espírito que acredita e proclama imortal. Nada de confusão desses direitos com as "direitas".
O fato de serem das chamadas “direitas” alguns bispos governadores de arcebispados, monsenhores, e cónegos—nem sempre padres às direitas, seja dito de passagem—não significa que a igreja esteja a serviço das predileções de alguns dos seus “leaders”. O que às vezes há é o seguinte: assim como políticos do século procuram tirar partido de suas relações ostensivas de submissão à igreja ou às congregações Marianas, políticos eclesiásticos procuram dar às suas relações com a ordem estabelecida o máximo de cordialidade. Alguns, porém, como que exageram essa cordialidade, a serviço da igreja ou em interesse próprio; e fazem das mesmas relações uma espécie de simbiose em que a igreja e a ordem estabelecida formassem uma só coisa social e uma só causa ideológica. Aí é que está o perigo criado em alguns países e em algumas épocas para o cristianismo por alguns dos seus “leaders”, antes políticos do que espirituais. Felizmente para a igreja e para a civilização cristã tem sempre prevalecido contra esses “leaders” a ideia de que o Cristianismo não depende de nenhum sistema dominante nem de nenhuma ordem estabelecida.
Na última vez que estive em Portugal o meu bom amigo Nuno Simões, antigo governador civil do Porto, me fez conhecer dois padres portugueses que, como o bispo de Maura, no Brasil, passam por “loucos”, “vaidosos” e “agitadores esquerdistas”.
Refiro-me aos padres Joaquim e Manoel Alves Correia, o primeiro, franciscano, o outro padre e missionário das Missões do Espírito Santo. Hostilizados, como é natural, pelos Jesuítas portugueses cuja política é, como se sabe, a das “direitas”, os dois Alves Correia veem realizando uma obra e vivendo uma vida luminosamente cristãs. Os simplistas não hesitam em chamá-los de “esquerdistas”; mas o que eles são na verdade é cristãos para os quais a Igreja não está na dependência de ordem estabelecida nenhuma. Pois a Igreja é principalmente espírito e não forma política nem órgão de sistema econômico.
De um deles, o padre M. Alves Correia, das Missões do Espírito Santo, são estas palavras magníficas:
“O fermento cristão não precisa do 'substratum' dos impérios nem das civilizações. E mais: “Os conservadores” egoístas e maus parecem querer amedrontar o próprio Cristo com a narração do que o espera se os não ajuda [...] a “conservar”. E ainda: “Homens de pouca fé podem temer, quando uma revolução tremenda muda de baixo acima as instituições sociais. Como o Cristianismo vinha informando essas instituições, julgavam aqueles espíritos estreitos que instituições humanas e Cristianismo era tudo um: chamavam temerários e liberais aos irmãos de melhor visão que lhes gritavam:
—Não amarreis o Cristianismo a cadáveres!”
“Podem desfazer e refazer a vida social: o Espírito, não o matam! Seria blasfêmia, se não fosse retórica, esta frase tétrica escrita há pouco numa revista católica brasileira, aliás ponderada e inteligentemente redigida (refere-se ao artigo de Frederico Muckermann na “A Ordem”, do Rio de Janeiro):
—Bolchevismo quer dizer [...] fim do Cristianismo!”
Contra o que brada com sua grande voz cristã o padre português M. Alves Correia num livro—“De que Espírito somos”—cuja leitura recomendaria, se tivesse autoridade, a todos os cristãos brasileiros, católicos e protestantes: “[...] fim do Cristianismo não, porque o Cristianismo é Vida do Espírito e o Espírito é imortal.”
Por esta e outras é que os Alves Correias, em Portugal, e os bispos de Maura, no Brasil, são chamados “loucos” e “vaidosos”. Mas a sua loucura é a da Cruz. Sua vaidade é a do Apóstolo: “[...] longe esteja de mim gloriar-me a não ser na Cruz [...]” É claro que a Cruz cristã e não nenhuma outra.